Autonomia radical

por Luiz Alberto Mendes

Há muito tempo me senti incomodado e passei a incomodar. Eram cordas bambas a serem trilhadas. A consciência da precariedade da existência brotava do imediato. Todo dia constituía-se em desventuras que geravam conseqüências. Quando conheci idéias de Herbert Marcuse, percebi estar caminhando certo. Questionar é o que me restava já que o dado não me satisfazia.

Nunca, em tempo algum, consegui sentir que eu fosse melhor que ninguém. Até muito pelo contrário. Não é humildade. Apenas constatação. Cedo fui agredido por minhas fraquezas e mesquinharias. Cercado de mim mesmo, fui vil, egoísta e cruel. Em conseqüência, o mundo se fechou para mim. Foi duro não poder esperar mais nada da vida. Não consegui desistir. Lutei e estou lutando até agora.
Futuro não existia. Estava preso para o resto da vida. Na somatória de minhas penas acumulava 132 anos de condenações. Esperar o que? Cada dia se acabar? Havia um desejo insano de deixar de existir. Só então descobri que nós não temos vida e vamos existindo-a. O ato de viver é a própria vida e não produto da existência. O resto é passado ou futuro. Disposto a ser surpreendido venho, aos trambolhões, derrubando obstáculos.  

Acredito que o tempo é a abstração mais poderosa que construímos. Assim como as provações medem o homem, é o tempo que mede a vida. Era preciso pensar o mundo que tinha como único, tomar atitudes reais. Criei meu tempo, minha cela era meu mundo. Não estava indo apenas além do que fora condicionado. Queria conhecer os fatores condicionantes, aqueles que os criavam e seus motivos.
Estudei muito, pensei e procurei por todos os meios que me eram accessíveis. Quebrei mitos, destruí ídolos, passei por cima de todos esses valores ditos superiores. Coloquei-me contra a parede, desnudo e esvaziado de toda pretensão. Buscava não repetir. Não precisava da segurança que a rotina pudesse trazer. Segurança para que? Para continuar preso?

Claro que a vida foi sombria na maioria das vezes. Mas não podia sucumbir e me refugiar em estruturas além de mim mesmo. A cerâmica vem da macia argila e pode se tornar mais resistente que o aço. Mesmo fragilizados, ultrapassamos e geramos forças muito acima de nossas possibilidades.
Não havia nada que pudesse centralizar a razão de viver. Esforçava-me por inventar motivos de existir para cada ocasião. A vontade provou-se força plástica que imprime e forma aquilo que vamos sendo. Uma carta (recebia e remetia cerca de 3 a 4 cartas diárias), uma possível namorada (conquistar é maravilhoso...), um livro instigante, um novo amigo (tesouro maior), uma nova idéia, uma conversa interessante (diálogo é um dos meus maiores prazeres), um conhecimento renovado, a visita de parentes e amigos...
Enfim, luta para preencher o tempo de significados que me fizessem sentir que estava existindo, mesmo que aprisionado. A aranha vive do que tece. Vida e omelete se faz com o que se tem à disposição. O problema é suportar a ansiedade gerada pela fome, pela urgência, de existir. Quem de nós pode esperar por viver?

A liberdade me atingiu em cheio. Absolutamente inesperado. O impacto foi de alta voltagem. Ali estava o futuro e sua problematicidade. Prisão agora era memória e o registro eu moveria para onde me fosse conveniente. Precisava agora saber o preço de toda essa gratuidade. Não podia desobedecer à desordem geral, mas agora poderia tornar as paixões inteiras, como as manhãs. A vida, até então lida como biologia, agora se transformaria em biografia. Afinal eu teria uma história. Já podia pensar futuro, planejar e deitar a pior parte do passado em cova funda.

Existia o caos e eu conseguira sobrepujá-lo. Essa é uma verdade da qual tento me convencer todos os dias, sem muito sucesso. A sensação é de que nunca vai acabar. De qualquer maneira, aquela era uma ruptura fecunda. Uma brecha que eu ousei empreender. Uma autonomia radical.

fechar