A palavra cumprida

por Luiz Alberto Mendes

Às vezes a realidade me parece uma complexa rede de contradições que se sustentam e se dissolvem num fluxo permanente.

De repente lá estava eu no aeroporto de Cumbica, embarcando para Salvador, Bahia. Não estava acreditando. Tudo parecia esfumaçado; longínquo como um sonho. Às vezes a realidade me parece uma complexa rede de contradições que se sustentam e se dissolvem num fluxo permanente.

Nesta era da indeterminação fica cada vez mais claro de que não há mais nada permanente, imutável, imóvel ou seguro. A palavra é uma das obsolescências resultantes desse processo. Acerca de oito anos conheci Milton Julio. Estava preso na Penitenciária do Estado.

Ele estava montando sua tese de doutorado em antropologia e precisava de minha colaboração. Conversamos bastante, até que fui desterrado para uma penitenciária quase na fronteira do Estado. Ele foi atrás e me deu a assistência de que necessitava. Era quase impossível receber visitas. Julio, agora um amigo, foi a minha casa e tirou fotos de meus filhos e me trouxe. As preocupações eram extremadas, ele salvou meu coração de pai.

Nossa amizade prosseguiu depois da defesa e da aprovação da tese. Falava-me de Salvador. Quando nos despedimos, prometeu que um dia me levaria à Bahia para conhecer o que me dizia de sua terra. E, depois de tantos anos, estava acontecendo. Fui contratado pelos alunos de direito da Universidade Federal da Bahia para fazer uma palestra. Julio é professor desse curso; é obvio que foi através dele que chegaram a mim.

Cansei de olhar nuvens. Era nuvem que não acabava mais, até chegar ao aeroporto de Salvador. O hábito é qual grosso cobertor de lã. Faz tudo ficar aceitável, como um anestésico, escondendo a realidade. Quando viajamos, acho que esse manto de hábitos nos é retirado subitamente. Então, sem essa proteção, passamos a viver na carne viva. Enxergamos tudo mais apuradamente, nos tornamos revolucionários. Incorporamos vivências das leituras que fazemos.

O amigo me esperava. Há anos não nos encontrávamos, foi uma alegria. O hotel pequeno na praia de Amaralina, em frente ao mar, era mais do que eu poderia esperar. Abrir a janela e sentir o mar batendo na cara foi uma explosão do prazer aguardado por anos, das falas do amigo. Nesse momento essas lembranças como que atravessaram em minha frente como um rio profundo, intransponível.

Não demorou e o amigo veio me apanhar para que fôssemos à Universidade. Fui acolhido com imensa simpatia pelos professores, mas, ao olhar o salão onde falaria, assustei. Um orador falava e o recinto estava lotado. Gente sentada, em pé ao fundo, nas escadarias, gente, gente, muita gente. Quase todos jovens e belos. Depois de ler um pouco aquele público, não me senti intimidado. Conheço o coração do estudante. É aberto e generoso. Quando chamado, vesti minhas circunstâncias e fui para cima, disposto a dar o melhor de mim.

No princípio as idéias estavam pontudas e a conversa não fluía. Depois, aos poucos fui adquirindo confiança e soltando a voz. O prazer de estar conseguindo conquistar aquele povo me empolgava. Falei duas horas e só parei para as perguntas. As questões apresentadas tomaram mais de uma hora e achei a melhor parte. Eu rendo muito mais conversando que discursando. No encerramento, o aplauso foi de pé e por um bocado de tempo. Não sei por que, o aplauso me constrange. Talvez porque não me sinta merecedor.

Fomos almoçar no restaurante Iemanjá que, segundo os professores que nos acompanhavam, é o que há de melhor em Salvador. O bobó de camarão derretia na boca, uma delícia impossível de descrever. E veio caruru, vatapá, acarajé, casquinha de siri e outras maravilhas da culinária baiana. A mesa ficou repleta de pratos diversos. Fui experimentando um pouco de tudo, comi até doer o estômago e ainda levei o que sobrou do bobó para comer no hotel.

À noite fomos passear. Andamos pelo Pelourinho e pelas ruas centrais, tomando chopes e comendo casquinha de siri ou acarajé pela noite adentro. Claro que sempre há o melhor e o pior. O pior é a miséria que vi o povo vivendo nas ruas. Homens disputando com crianças as servidões possíveis. Dei uma moeda a um menino e logo fui rodeado por muitos que se achavam no direito de querer também. E me olharam com rancor, com ódio mesmo, quando recusei.

Foi chocante me sentir alvo de preconceito racial. Garotos e homens se aproximavam falando inglês comigo. Para eles eu era gringo e representava dinheiro, sobrevivência. A princípio me aborreci e quis até brigar. Mas depois percebi que aquilo era normal, rotina para eles. Fiquei tão perturbado com isso que abandonei o passeio e quis voltar ao hotel.

Antes de voltar, dei uma entrada no mar numa das pontas da praia de Amaralina, precisava daquele encontro. Julio me levou ao aeroporto e falou da satisfação e do prazer que sentia em haver cumprido sua promessa comigo. Para mim esse foi o melhor momento. Voltei para São Paulo com a confiança na vida e nos homens renovada. A palavra cumprida é uma das mais belas e realizantes atitude humana. Isso é moral.

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