Para repensar a cidade, um bar clandestino em uma árvore no terreno do Playcenter
Durante um mês, um micro bar clandestino montado numa árvore levou quase cem pessoas a invadir o terreno onde funcionava o Playcenter, em São Paulo. A ideia foi do americano N. D. Austin, que inventa experiências para que as pessoas pensem sobre as cidades de um jeito diferente.
"Oi! Eu e o Rodrigo queremos muito te oferecer uma experiência única e super secreta. Você só precisa dizer onde está, para uma pessoa te levar o convite. E precisa guardar segredo até setembro".
A mensagem da Carla chegou no começo de agosto, via whatsapp. Como eu respondi sim, no dia seguinte, uma sexta-feira, recebi a visita que me trouxe de presente um relógio de bolso prateado. Dentro dele, um papelzinho com as instruções básicas e um link por onde eu deveria me inscrever.
“Válido para duas pessoas
The Night Heron
20h – 24h. Sex Sab Dom - Agosto 2014
Você pode visitar o Night Heron uma única vez. Entrada somente com a apresentação deste relógio. Vista calçados de aventura e agasalhe-se. Esteja preparado para escadas e alturas. Não atrase”
Como tenho direito a acompanhante, ligo pra uma amiga: "olha, você vai me achar uma louca, mas eu quero te convidar pra uma coisa que não sei o que é. Tem planos pra hoje à noite?". Explico o pouco que sei e repasso as informações que recebi por e-mail, depois de preencher a inscrição: a gente teria que estar às dez da noite em uma pracinha da Barra Funda e esperar um motorista de chapéu nos buscar. Ela topa.
Não aguento a curiosidade e dou um Google em "The Night Heron". O primeiro link mostra um “speakeasy” (bar secreto) que funcionou clandestinamente durante dois meses no ano passado em Nova York – precisamente, dentro da caixa d'água de um prédio abandonado em Manhattan. O link seguinte mostra um vídeo produzido lá – uma festa incrível, para poucas pessoas, nesse cenário absurdo. Ligo de volta pra amiga e ela, que obviamente já fez a mesma busca, arrisca um palpite: “Já sei, vão levar a gente pra um prédio abandonado, vamos subir muitas escadas e lá em cima vai ter um jantar”.
Às 22h em ponto de uma das noites mais frias de agosto lá estamos na praça, ao lado da rodoviária da Barra Funda, com outras quatro pessoas à espera do mesmo motorista de chapéu. Alguns minutos depois ele aparece, numa kombi, e avisa: estamos embarcando numa empreitada que tem certos riscos. Devemos deixar nossos celulares guardados em uma mochila que ficará com eles. E iremos sentados no assoalho do carro, que teve os bancos removidos.
O percurso é rápido, uns 5 minutos. Quando a porta abre, duas garotas nos recebem fazendo sinal para que fiquemos em silêncio e nos levam até uma portinha. Seguem-se uns 15 minutos de caminhada silenciosa em fila indiana por um lugar escuro, cheio de árvores cujas raízes e galhos temos que ultrapassar com certa dificuldade, e ao lado de um riacho transformado em esgoto a céu aberto. Começo a achar que entrei numa roubada. A moça que vai na frente tem um rádio com fone de ouvido e comunica nossos passos, sussurrando em inglês, para alguém que não sabemos quem é. Em um ponto do trajeto o espaço se abre, um descampado onde há alguns galpões, onde ela pede que a gente se abaixe. Me perguntando se o risco de sermos vistos (por quem?) é real ou se aquilo é tudo um teatro. Estou levemente irritada.
Como tudo sempre pode piorar, chegamos ao ponto em que é preciso atravessar uma ponte improvisada sobre o riacho. Ponte, não: temos de passar, na verdade, entre dois cabos de aço paralelos, envoltos por uma rede de proteção. Lembro das Olimpíadas do Faustão, mas não consigo achar graça. Minha amiga é direta: “Não vou subir nisso nem a pau”.
Encaro a travessia e não posso negar que, ao final, a sensação de ter conseguido é boa. Quando a “ponte” termina, há uma escada de madeira encostada numa árvore. Encaro mais essa e nos últimos degraus vejo um novo rosto que sorri, me oferece a mão e em seguida, um copinho de água. Fico sabendo que é a Maria, colombiana que vive em São Paulo e que está ajudando “o grupo”. Que grupo?, eu pergunto. Ela ri.
Estamos numa casinha de madeira montada no topo de uma árvore gigantesca. Há bancos para sentar, uma iluminação bonita, um “barzinho” com garrafas e copos e uma placa com letreiro antiguinho: “The Night Heron”. Um moço de bigode, usando chapéu e fraque, prepara um drink. Ele é gringo e se chama Nathan. Num patamar um pouco mais alto, uma moça toca sanfona, a Lívia.
Minha amiga enfim aparece: de algum jeito a “líder” lá embaixo a convenceu a atravessar a ponte. Tomamos nossa água, olhamos em volta e nos damos conta de que estamos de frente pra Marginal do Tietê. Já não estou tão irritada, mas continuo cética e comento baixinho: "quer ver que isso é um lançamento de bebida e que vamos odiar essa gente?”. Damos risada dessa desconfiança. Conseguimos relaxar.
Passamos a próxima hora e meia ouvindo a Lívia tocar e cantar, tomando o drink do Nathan, conversando e até dançando, apesar do espaço exíguo. Juntando os seis convidados (nós) mais a cantora, o anfitrião, as meninas que nos conduziram (Luciana e Carola) e a Maria, são onze pessoas se divertindo. No topo de uma árvore, a uns 10 ou 12 metros do chão. Quase meia-noite de uma sexta-feira. De frente pra Marginal. Começo a achar que aquilo é genial. E que o drink, uma mistura de cachaça, vermute e não sei mais o quê, é muito bom. Fico sabendo que estamos dentro do terreno onde funcionava o Playcenter, o parque de diversões em que todo paulistano se divertiu inúmeras vezes na vida, e que foi fechado há dois anos para dar um lugar a torres comerciais. Estou de queixo caído.
Perto da meia-noite eles avisam que é quase a hora de descer e nos dão um papel que explica que aquilo é uma espécie de “ação de guerrilha” e que podemos oferecer a mesma experiência a alguém: por 200 reais, um amigo pode receber o relógio e chamar mais uma pessoa para a aventura secreta. Eu e minha amiga, ambas bem distantes da categoria mulheres ricas, estamos tão excitadas que compramos dois relógios. A ideia de oferecer a experiência a mais gente faz o maior sentido naquela hora.
Finalmente descemos da árvore. Não é preciso fazer o complicado caminho de volta: um atalho nos leva a uma grade por onde a gente se espreme e sai andando pela Marginal. A kombi do Brad (esse é o nome do motorista de chapéu) nos espera e leva de volta à pracinha inicial. Me sinto quase em “Meia-Noite em Paris”, o filme do Woody Allen em que o protagonista é transportado todas as noites a um outro tempo, sem que a mulher dele ou qualquer outra pessoa suspeitem. Umas horas depois estamos bêbadas numa festa, sem poder contar nada pra ninguém. “Você se deu conta de que acabamos de passar por um perrengue e ainda deixamos 400 paus praquele gringo?”, eu pergunto. Não conseguimos parar de rir. E de achar que é um puta presente, este que vamos dar a quatro amigos. (Nesta mesma lógica, quase cem pessoas foram presenteadas com o relógio e estiveram lá).
Na semana seguinte vou almoçar com o Nathan – ou N.D. Austin, como ele prefere se apresentar – para entender a história. Antes de encontrá-lo, já descobri em matérias da New Yorker e do New York Times que se trata de um americano de 32 anos nascido no Alaska em uma família bastante hippie e que aos 17 se mudou pra região de Boston pra estudar cinema. Também já sei que há alguns anos ele se dedica a “construir experiências” por meio de projetos como o Wonderlust. Hospedado na Vila Madalena, ele escolhe a Mercearia São Pedro como ponto do nosso encontro. E arrisca umas das opções do menu da terça-feira: dobradinha. É um rapaz que curte fortes emoções.
Depois da ação em Manhattan, que levou cerca de 700 pessoas à tal caixa d'água transformada em bar – e que só foi divulgada depois de desmontada – ele recebeu convites para levar o projeto a diversas cidades do mundo. Escolheu São Paulo por ser uma cidade difícil, feia, onde as pessoas “estão sedentas por mudanças, por novas soluções”.
“Anos atrás fiz um projeto no Rio de Janeiro [o FlutuArte, que reuniu pinturas feitas no topo de barcos pesqueiros na Urca], mas eu não gostei de lá. É tudo tão bonito, adorável, que as pessoas só querem ir à praia. Claro que é ótimo, mas num lugar assim você não vê essa vontade das pessoas de transformar a cidade, que vejo em são paulo. Aqui há um movimento das pessoas ocuparem espaços, fazerem as coisas por si mesmas, sem esperar a autorização do governo”.
Enquanto traça a mistura de bucho, linguiça e feijão branco, ele conta que cogitou vários lugares para montar seu bar secreto, e se encantou por aquele terreno por causa das árvores maravilhosas (escondidas atrás de tapumes e grades enquanto a construção das torres não começa) e sobretudo pelo rio poluído [precisamente, o córrego Quirino dos Santos, parte da imunda bacia hidrográfica do Tietê]: “A ideia é trazer um pouco de amor a lugares que não são amados. Chamar a atenção para lugares que as pessoas abandonaram. Esse rio nem sempre foi assim poluído e não seria tão difícil limpá-lo hoje. Por que, então, acham que o melhor é cimentá-lo, cortar as árvores em volta e construir mais prédios?”, questiona.
Brad Haynes, o motorista da kombi, é na verdade um correspondente da agência Reuters em São Paulo. Amigo de Nathan desde a faculdade, ele o ajudou a pesquisar os possíveis lugares para o projeto e a formar o grupo que pôs a empreitada de pé – da construção da casa na árvore, que levou uma semana, a todas as questões logísticas envolvidas na ação, que levou quase cem pessoas a invadirem aquele terreno na calada da noite e admirar a cidade de um ângulo totalmente novo. Conversei com Brad depois do fechamento do Night Heron em São Paulo (o último encontro foi na noite de 24 de agosto, quando finalmente os participantes foram liberados a contar o segredo para quem quisessem). O jornalista, de 29 anos, acha que o projeto contribui com uma reflexão sobre a ocupação dos espaços – e sobre o mercado imobiliário voraz que está transformando as paisagens sem muito critério. “Esse terreno do Playcenter tem um grande valor nesse mercado de hoje. Mas será esse o único valor a reconhecer ali? Ninguém reconhece o valor desse riozinho? E dessas árvores?”.
Na mesma semana, os dois estiveram em um debate no prédio O Farol, no centro, debatendo o que eles chamam de “Urban Hacking” – termo que vem da ideia de “hackear” as metrópoles: quebrar os códigos que limitam o que se pode ou não fazer com os espaços. “Às vezes precisamos de atos de transgressão para que as pessoas conheçam lugares assim, aparentemente vazios, mas cheios de potencial. Eu acho muito válido, nem que seja apenas para despertar a imaginação”, diz Brad.
“A noção de que tudo precisa ser limpo, seguro, padronizado, leva as pessoas a viverem dentro de bolhas. Mas vejo muita gente querendo desafiar esse sistema e experimentar a cidade de outras maneiras”, completa Nathan, que neste mês já volta pra casa no Brooklyn, em Nova York.
Não tenho como discordar. Estar naquele lugar naquela noite foi tão impactante que voltei ao terreno dias depois, durante o dia, para entender o que tínhamos vivido. Não cheguei a pular a grande e andar à margem do rio-esgoto, mas enxerguei aquele lugar como jamais havia enxergado? Andando a pé pela Marginal por onde os paulistanos só circulam dentro dos carros sem prestar atenção ao que está em volta, entendi que às vezes são necessários malucos como esses gringos para nos fazer ver coisas óbvias – e se inspirar. Agora é com a gente.