Felipe Neto: Diante de ameaças, seu silêncio é cumplicidade

por Redação

No Trip Transformadores, o influenciador conversa com o historiador Leandro Karnal sobre o preço da exposição, a política do ódio e os caminhos para a educação digital no Brasil

Aos 33 anos, Felipe Neto é uma figura que desperta amor e ódio. O youtuber eleito pela revista Time como uma das 100 personalidades mais influentes do mundo acumula mais de 50 milhões de seguidores, mas também precisa conviver com agressões na internet e só sai de casa acompanhado por uma equipe de seguranças. Ainda assim, não se arrepende de defender o que acredita nem das críticas ferrenhas ao governo de Jair Bolsonaro. "Eu não acho que os influenciadores precisem se posicionar politicamente, mas quando você tem ameaças reais a vidas, a liberdades e à nossa democracia, o seu silêncio passa a ser cumplicidade", diz. "Numa luta contra fascistas, o silêncio é fascismo".

Homenageado pelo prêmio Trip Transformadores 20/21, o influenciador fundou, no ano passado, o Instituto Vero, dedicado à educação digital no Brasil. "A luta mais importante neste momento é contra as teorias conspiratórias no ambiente digital que disseminam as desinformações, as fake news e o assassinato de reputações", diz Felipe Neto. "Temos uma população que não consegue diferenciar uma notícia que recebe no WhatsApp de uma publicação de um veículo tradicional de imprensa. A internet é a maior arma já criada pela humanidade. E entregamos para todas as pessoas sem manual de instrução". No programa Prêmio Trip Transformadores, Felipe Neto bateu um papo com o historiador Leandro Karnal sobre ódio, educação, fama, luta e, é claro, política. A série vai ao ar todo sábado, às 22h, na TV Cultura. Assista a um trecho do papo ou leia a entrevista a seguir.

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Leandro Karnal. A minha primeira pergunta é geógrafo-psicológica. Qual é a distância sentimental, material, pessoal, entre o Buraco do Padre e a Barra da Tijuca?

Felipe Neto. Essa distância é imensurável em termos emocionais. Eu tenho muito orgulho das origens que tive, da luta, da vida que vivi. A Barra da Tijuca é muito mais uma fuga do que necessariamente uma vitória. Na situação de violência que a gente vive no Rio de Janeiro, e a perseguição e as ameaças que eu sofro, acaba sendo um local onde consigo ter alguma segurança. Mas é claro que eu vim de um lugar humilde e hoje tenho uma estrutura muito boa. E agradeço a cada segundo por todos aqueles que tornaram isso possível.

“Nós não somos apenas aquilo que dizemos, mas também como somos interpretados. E a gente não pode se eximir dessa responsabilidade”
Felipe Neto, influenciador

Você é um grande influenciador, tem milhões de seguidores. Ser também um personagem, ter uma persona pública, isso te prende? Sem dúvida. Quando a gente se comunica temos sempre traços de personalidades distintas e às vezes de personagens que criamos. Seja na frente de uma câmera ou numa conversa de bar, a gente sempre está manifestando alguma persona. Então quando a gente tem uma exposição muito grande, como é o meu caso, precisa, sim, refletir sobre o que eu estou dizendo, como eu estou dizendo e como as pessoas estão recebendo essa minha mensagem. Porque nós não somos apenas aquilo que dizemos, mas também como somos interpretados. E a gente não pode se eximir dessa responsabilidade. Se eu falo uma coisa e as pessoas interpretam diferente, isso não significa que as elas são burras, e sim que eu falei da maneira errada. Então é um aprendizado, uma luta constante pra não se tornar o vilão da história e tentar evoluir, tentar aprender, e ao mesmo tempo não soar chato. Então são muitos pratos para serem equilibrados e acho que venho fazendo um trabalho suficiente pra me manter estável com meu público. 

Essa década que você atravessou mudou muito seu enfoque e o tipo de conteúdo que você produz. Isso é idade, a responsabilidade, a reflexão? Eu acho que os 30 anos me mudaram muito. Até ali eu ainda estava naquela corrida pra me estabelecer financeiramente, que é o grande desejo das pessoas no âmbito econômico capitalista. Hoje eu tenho 33 anos e, quando eu consegui atingir essa estabilidade, as prioridades também começam a mudar. Você começa pensar: de que forma posso usar esse dinheiro para outras causas, usar meu tempo pra ajudar pessoas, estudar mais, absorver mais conteúdo? Meu consumo de literatura aumentou consideravelmente depois dos meus 30 anos e minha quantidade de trabalho diminuiu um pouco. Hoje eu trabalho um pouco menos e leio um pouco mais. Os livros, o tempo inteiro, me transformam. E eu gostaria muito de levar isso pra mais gente, influenciar os jovens que me seguem a lerem mais. E pretendo criar projeto nesse sentido.

“Quando você sai da escola, descobre que o mais bem-sucedido é aquele que mais faz perguntas, que mais fica inconformado com poucas respostas”
Felipe Neto, influenciador

O que o público não sabe é que uma vez nós tivemos uma longa conversa sobre uma interpretação que você discordava da vida de Mozart. Eu acho que a sua interpretação é mais correta do que a minha, mas também imagino que o público não saiba que significa que você é uma pessoa que pensa autonomamente e não pensa exatamente na ideia da autoridade. Você foi um aluno rebelde? Eu era um aluno inconformado. Não necessariamente rebelde, mas inconformado. Eu não conseguia compreender por que a escola não tirava nada de mim, por que ela não me ajudava a ser aquilo que eu sabia que seria bom. Eu já era um bom designer gráfico, trabalhava desde os 15 anos, e o Ensino Médio foi muito traumático porque eu sentia que não era uma espaço pra mim. Não era um espaço pra criatividade, pra quem queria pensar, refletir, questionar. Era um espaço pra você aprender uma única resposta pra cada pergunta e a não fazer perguntas de volta. A escola hoje é um ambiente que desestimula muito a pergunta, infelizmente. Acho que a criatividade é uma das mais fundamentais capacidades humanas e, infelizmente, por um sistema muito rígido que precisa fazer que você tire uma boa nota no Enem ou no vestibular, poda seu potencial criativo pra te encaixar num mundo de uma única resposta pra uma única pergunta. Quando você sai do ambiente da escola, você descobre que o mais bem-sucedido é aquele que mais faz perguntas, que mais fica inconformado com poucas respostas. A escola deveria inverter um pouco essa equação e passar a fazer os alunos fazerem mais perguntas. Esse é o meu sonho pra ter um sistema escolar um pouco mais focado no indivíduo.  

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A partir do momento que você percebe falhas – que naturalmente eu também percebo – na educação, quando você chega a esse grau de exposição e de sucesso material e profissional, você tem como projeto o Instituto Vero. Por que este e não outros projetos? Eu criei o Instituto Vero porque eu acho que a luta mais importante nesse momento é a luta contra as teorias conspiratórias no ambiente digital que disseminam as desinformações, as fake news, o assassinato de reputações e toda a arquitetura do ódio que a gente está vendo acontecer no mundo. Eu costumo citar um ex-espião do FBI que a filha tem uma conta no TikTok e em um dos vídeos ela pergunta qual é o maior medo que ele tem hoje. Ele fala: "As teorias conspiratórias na internet, porque elas podem resultar em guerras civis". Eu concordo plenamente com ele. Se a gente não colocar novamente a humanidade no campo do caminho científico, de ter um respeito pela comunidade científica, por aquilo que é ciência, talvez possamos caminhar pra verdadeiras batalhas sangrentas, como aconteceu nos EUA recentemente. Poderia ter sido algo muito maior, mas foi sangrento, foi horrível, morreram pessoas naquela invasão ao Capitólio, que foi motivada pelo que, senão a internet, as teorias conspiratórias e as mentiras?

“A luta mais importante é contra as teorias conspiratórias que disseminam as desinformações, as fake news e o assassinato de reputações”
Felipe Neto, influenciador

A internet é a maior arma já criada pela humanidade, tanto pro bem quanto pro mal. E entregaram essa arma na casa de todas as pessoas, sem manual de instruções. E as pessoas obviamente usaram como era possível compreender. Em 2017, segundo uma pesquisa, 55% da população brasileira achava que a internet era o Facebook. Hoje temos uma população com pouquíssimo acesso à informação e que, ao receber uma notícia no WhatsApp com título em negrito, texto em itálico, partes sublinhadas, não consegue diferenciar aquilo de uma publicação de um veículo tradicional de imprensa. A educação digital é o primeiro passo, o mais importante, e por isso a criação do Vero, que é um instituto criado justamente pra educar. Temos conversas com alguns prefeitos para tentar levar cursos de educação digital para o ambiente escolar e poder começar a ver resultado, daqui a alguns anos, de uma juventude mais educada em como utilizar a internet.

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Você já fez vídeo cobrando que os outros influenciadores se posicionassem politicamente. Você sempre se posicionou, especialmente nos últimos anos, de forma muito clara. O que você acha que ganhou e perdeu com essa posição clara política? Eu não acho que os influenciadores precisem se posicionar politicamente, acho que eles precisam se posicionar contra a desumanidade. Eu jamais cobraria que influenciadores se posicionassem num ambiente onde a democracia estivesse sem ameaças, onde nós estivéssemos lidando apenas com políticos questionáveis, corrupção, problemas institucionais. Mas quando a gente sabe, com dados e conversas, que estivemos a um passo do fechamento do Supremo Tribunal Federal; quando você sabe que essa é a realidade que estamos vivendo hoje, o silêncio passa a ser cumplicidade. Quando você tem ameaças reais a vidas, a liberdades e à nossa democracia, o seu silêncio passa a ser cumplicidade. Numa luta contra fascistas, o silêncio é fascismo.

“Quando você tem ameaças reais a vidas, a liberdades e à nossa democracia, o seu silêncio passa a ser cumplicidade”
Felipe Neto, influenciador

Em relação a ter ganhado ou perdido, o meu ego ganhou muito. Então controlar esse ego é um exercício diário. Em outros âmbitos, eu tive muitas perdas. Eu perdi muito dinheiro, eu perdi quase todos os meus patrocínios. Hoje quase nenhuma empresa brasileira quer trabalhar comigo, e perdi também paz, sossego, tranquilidade, que são coisas que valem muito, muito mais que dinheiro. Ter que sair na rua com escolta é uma coisa que eu não desejo pra ninguém. Ter que viver uma vida de controles e seu chefe de segurança ter que visitar qualquer lugar que você decida ir antes pra ver rotas de fuga é assustador e triste demais. Então eu perdi muito mais do que eu ganhei porque o meu ego eu tenho que manter sob controle. Trocaria tranquilamente a Time, o New York Times, o Le Monde e toda a repercussão que minha imagem teve por um país onde a gente não tenha risco à democracia. Trocaria sem pensar duas vezes. Fiz minha parte. A única coisa que eu tenho consciência é que, de tudo, eu ganhei uma coisa principal: eu sempre vou dormir tranquilo, sabendo que eu fiz o que eu precisava fazer, que eu tentei. Então mesmo que o bolsonarismo persista no Brasil, e que ganhe, e que seja reeleito, e que montem uma verdadeira dinastia, eu tentei e posso dormir sabendo que eu tentei. Isso é o que faz tudo valer a pena.

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Como lidar com os haters? Aqueles que te seguem sistematicamente, devotadamente, apaixonadamente, leem tudo que você publica, veem tudo que você faz e te odeiam do fundo do coração. Como você se desvencilha desses encostos? Olha, esses eu gosto. Levei alguns anos pra aprender, mas hoje gosto mesmo. Eu até identifico alguns quando vejo comentários, falo: "Olha, ele aí de novo". Essas pessoas claramente estão confusas. Você não consegue consumir tanto algo que você odeie. Se eu não gosto de determinado estilo de música, imagina se eu vou chegar em casa todo dia e colocar esse som pra ficar em casa gritando "eu odeio isso, eu odeio essa música" enquanto ela está tocando altíssimo. Ninguém faz isso. Agora, existe outro tipo de hater, que é o que não te consome. O hater que se torna hater porque ouviu falar, porque viu uma matéria, porque soube de alguma coisa, e normalmente essas coisas são mentiras. Então tem gente que me odeia porque acha, realmente acha, que eu tenho algum envolvimento com pedofilia, porque essa foi uma narrativa inventada pela arquitetura do ódio no Brasil, como eles fazem sistematicamente com quem consideram detratores. É muito difícil lidar com essa arquitetura do ódio que foi criada, que visa fazer com que pessoas te odeiem sem saber quem você é. E aí eu acho que a gente tem que entender juntos como lidar com isso porque eu tenho muita dificuldade.

“É muito difícil lidar com essa arquitetura do ódio que foi criada, que visa fazer com que pessoas te odeiem sem saber quem você é”
Felipe Neto, influenciador

O que você diria para esses jovens, que são o grosso do seu público, que gostam de games, que olham para você como um especialista nisso, hiper informados e ao mesmo tempo informados de uma forma aleatória, ou de uma forma não-sistemática? Façam perguntas, mesmo que essas perguntas incomodem. Eu acho que esse foi meu grande diferencial quando jovem. Eu fui criado por uma mãe extremamente católica e um pai macumbeiro, então eu naturalmente me levantei questões como "quem diabo está certo?". Como é que eu posso ter um pai macumbeiro e uma mãe extremamente católica? Na visão daquilo que minha mãe segue o que meu pai faz é pecaminoso, e na visão do meu pai o que minha mãe faz não tem problema nenhum. Eu ficava: "Meu Deus, mas eu cresci achando que macumba era um troço do demônio e meu pai faz macumba? Como é que pode isso?". E aí eu comecei a fazer perguntas, fazer perguntas para a própria Bíblia. Comecei a perguntar para padres, para pastores, e aquilo me levou a um caminho de questionamentos. Eu acho que os jovens precisam entender que a vida é muito mais complexa que uma resposta certa e que fazer perguntas é mais importante do que ter respostas. 

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