O maior cientista brasileiro vivo encontra o homem que criou o Projeto Axé
A segunda-feira de 22 de agosto amanheceu atipicamente fria e úmida na cidade de São Paulo. Cesare La Rocca, nosso primeiro convidado, chega vestindo camisa de manga curta, diz estar com saudade do frio. Italiano, Cesare vive no Brasil há 44 anos e escolheu cidades quentes para habitar, como Manaus e Salvador, onde coordena o Projeto Axé. Cesare está curioso com o que a tarde nos reserva e se entusiasma com as duas entrevistas que dará e o encontro com nosso segundo convidado, o cientista Miguel Nicolelis.
Nicolelis chega pontualmente às 14h, tem a agenda enxuta e muitas tarefas para dar conta. Em seu dia-a-dia, ele se divide entre a direção de pesquisas no laboratório de neurociência da Universidade de Duke, na Carolina do Norte, e o Instituto Internacional de Neurociências de Natal Edmond e Lily Safra (IINL-ELS), na periferia de Natal (RN).
Tanto Cesare quanto Miguel dedicam-se a transformar a vida de crianças e adolescentes pobres do Nordeste brasileiro. Um por meio da arte. O outro, pela ciência. Eles cumprimentam-se com reverência e expressam admiração pelo trabalho do outro. Têm muito a conversar, o tempo é curto, temos que começar.
O ponto de partida da conversa é como cada um vê a complementaridade entre arte e ciência. Cesare busca referências de berço. “Leonardo da Vinci é a síntese: cientista e artista universal. Tenho a convicção profunda de que não é possível educar, nos dias de hoje, sem a arte e a ciência. Ciência é arte. Nós, no Axé, superamos a visão instrumental da arte, que diz que ela é um bom instrumento para se educar. Não! A arte é educação, é “arteducação”,sem hífen, uma única palavra”.
Ao saber que o interlocutor é de Florença, Miguel encontra novo link. “Minha família é de Luca (também na Itália). A gente poderia ficar aqui falando por umas 20 horas”. Conta que no Instituto existe uma oficina que se chama 'arteciência', onde as crianças expressam conceitos científicos por meio da arte. “O repente é uma tradição de improviso forte no Nordeste, é um exercício de lógica e raciocínio impressionante, que forma grandes escritores e grande poetas que não deixam registro no papel. É instintivo na criança estabelecer a relação de causa e efeito e expressar essas relações de maneira artística. E essa abertura de expressar um projeto de educação científica pela arte só poderia acontecer no Brasil. Não vejo isso em nenhum outro lugar. Esse é o século dos trópicos, e não tem tristeza neles”, diz, referindo-se ao ensaio “Tristes Trópicos” de Claude Lévi-Strauss.
Eles se alegram em declarar que ambos estão fazendo algo em lugares do Brasil onde a elite brasileira achava que não havia nada de bom. Cesare conta como desenvolveu sua “pedagogia do desejo”, que aplica no Axé, a partir de duas frases. A primeira ele ouviu de um menino de rua de 10 anos, que dizia que não tinha nada a perder e que, portanto, viver ou morrer tanto fazia. A segunda veio depois de levar uma turma de 50 meninos e meninas de rua para assistir a O Lago dos Cisnes, no Teatro Castro Alves. À saída, conversando com a molecada na calçada, uma menina de rua manifestou a vontade de ela também, fazer o mesmo. “E por que não nós também?”, ela disse. Pronto, havia nascido um desejo, impulso para o Axé deslanchar.
O encontro entre os convidados é pontuado por referências ao mundo das artes, especialmente as italianas, trazidas pelos dois convidados, e pelo universo da ciência, trazido por Nicolelis. Ele explica que o cérebro humano reconhece o preceito básico da biologia humana de que somos uma única espécie, sem fronteiras nem divisões políticas e econômicas. “Mas quando o homem esquece desse preceito, ele empunha armas e vai à guerra, promovendo genocídio e tragédia”.
A partir dos avanços que a ciência promove no entendimento do funcionamento cerebral, Nicolelis acredita na criação de uma nova raça humana capaz de construir uma convivência pacífica entre todos os homens. “O segredo de uma nova sociedade é permitir que a natureza humana, que se reconhece como uma única espécie do ponto de vista científico, se expresse dessa forma. Como espécie, ela é una, indissociável. No entanto, tentamos coibi-la, colocando o capital acima do trabalho e da felicidade. A educação nunca foi um instrumento de busca da felicidade individual e coletiva e pra mim ela é o passaporte”.
A escola não teve papel fundamental na formação dos dois. Pudera. Cesare cresceu em Florença, onde os museus, as galerias e a arte por toda a parte foram a base do seu processo educativo. Quando garoto, Nicolelis frequentava a casa da avó materna, imigrante italiana. Foi lá que ele gozou de imensa liberdade e fez grandes experimentos intelectuais. Sua avó dizia, “esquece tudo o que você ouve na escola”. Por meio da música, da ópera, ela lhe contava a história do mundo e de um país, a Itália.
É por essas e outras que nenhum deles considera a escola fundamental no processo educativo do cidadão. Ao contrário, acreditam que ela aniquila a criatividade e o prazer de aprender. Nicolelis aposta que, se Santos Dumont tivesse ido para a escola, certamente, naquela época, seu professor teria dito, 'menino, esquece essa coisa de voar, isso é para passarinho, vai já fazer a tabuada'. Para ele, nós criamos, no Brasil e no mundo, um produto que o cliente não quer comprar, a escola. Cesare concorda com o colega e arremata que gostar ou não gostar de ir pra escola é a melhor avaliação que se pode fazer do sistema de ensino.
Convictos de que é preciso formar um novo cidadão e uma nova sociedade planetária, cada um partiu para projetos transformadores próprios. O Axé não vai mudar o mundo, conta Cesare, mas têm um efeito demonstrativo competente. “Se conseguimos contaminar o poder público com experiências bem sucedidas, mas limitadas no tempo e espaço, para que faça disso um incentivo de implementação de políticas públicas cuja característica fundamental é a universalização, então teremos sucedido”.
Nicolelis concorda, mas vai além na provocação. “Nossa missão é envergonhar o poder público, mostrando como crianças consideradas violentas e indisciplinadas, que foram rejeitadas e deixadas à margem das políticas públicas, podem evoluir”. É por isso que lá na periferia de Natal o projeto pedagógico baseia-se em amor, oportunidades e caminhos para que a própria pessoa busque sua felicidade. Os dois convidados concordam que a atual geração sabe decidir sobre o que quer, melhor do que as anteriores.