Um dos nomes mais promissores do humor brasileiro, ele fala sobre racismo, televisão, perspectivas para o futuro e o lado amargo da comédia
"Eu não sou comediante. Acho que a comédia é a maneira mais palatável que eu encontrei de passar pela vida", diz Paulo Vieira. Aos 27 anos, o ator e roteirista é um dos nomes mais promissores do humor brasileiro e, desde o ano passado, está na TV Globo, onde apresentou o programa Fora de Hora e um quadro no Fantástico. Paulo nasceu na cidade de Trindade, no estado de Goiás, mas cresceu em Palmas, no Tocantins, onde começou cedo a carreira artística, atuando em grupos de teatro locais desde os 12 anos de idade. Em 2010, fundou com mais dois humoristas o primeiro grupo de stand up tocantinense, batizado de “Tô na Comédia”.
Foi fazendo os outros rirem que Paulo ganhou espaço na mídia e levou para casa os principais prêmios de humor do país – o Prêmio Multishow de Humor e o Risadaria, e também o primeiro lugar no quadro “Quem chega lá”, do programa Domingão do Faustão. Além do sucesso nos palcos dos clubes de comédia, o comediante conquistou o grande público através da televisão e da internet. Entre 2016 e 2018, fez o quadro "Emergente como a Gente", no Programa do Porchat, na TV Record. Hoje, além de atuar nas principais atrações de humor da Globo, ele se mantém ativo na quarentena levando graça e leveza aos seus 700 mil seguidores no Instagram com o "Diário do Coronga". No Trip Fm desta semana, o humorista conversa com Paulo Lima sobre racismo, televisão, perspectivas para o futuro e o lado amargo da comédia.
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Trip. Você deve ser a pessoa mais famosa do Tocantins, ou pelo menos da sua cidade, de Trindade. É isso mesmo?
Paulo Vieira. Pior que não sou. Eu nasci em Trindade, mas me considero tocantinense. Eu sou tão tocantinense que vim de Goiás, como o próprio Estado. Eu na verdade não sou nem a pessoa mais conhecida de Palmas – e nem o mais rico. Do Tocantins também tem Anavitória, Henrique & Juliano, Felipe Fraga no automobilismo... Das celebridades locais eu sou a mais humilde, nem entro na contagem da Forbes tocantinense. Mas uma coisa é verdade: talvez eu seja o que tem o maior fã-clube no Tocantins porque eu comecei lá muito cedo, as pessoas acompanharam. Eu comecei a fazer aula de teatro com cinco anos de idade e aos doze estreei profissionalmente na cena cultural de Palmas. Elas me viram crescer – e olha que viram crescer muito, né? Então quando o tocantinense me vê lá na Globo, com alcance nacional, tem um ar de "eu sabia".
Uma das fontes do seu humor é zoar com a sua própria pobreza. Nessa época em que as discussões todas carregam um certo ódio, você fala de um jeito muito empático, interpreta o sofrimento do outro, seu próprio, e faz graça disso de uma maneira leve. Você tem uma origem humilde? Eu venho realmente de uma origem humilde, minha família é pobre. Agora que as coisas estão começando a mudar pra gente lá em casa. Eu costumo sempre falar que essa coisa da classe C, principalmente os assuntos que eu abordo, estão muito mais ligados à cultura do que à questão financeira. É como eu digo, ser pobre no Brasil é uma questão de lifestyle. Essa coisa de dar um jeito em tudo, de fazer gambiarra, a maneira como a família se organiza... Então, por mais dinheiro que eu ganhe na vida, esse lifestyle vai continuar comigo, minha mãe vai continuar colocando forro em tudo. Eu falo que, pra eu sair da linha da pobreza, eu tenho tanto dente pra arrumar de parente, tanta casa pra rebocar. E eu ainda tenho muito material para explorar da minha própria família. Mas respondendo à pergunta, eu venho realmente desse lugar. Você comentou sobre a dificuldade de falar sobre coisas delicadas nesse tempo que a gente está vivendo e eu realmente não saberia como falar de outra coisa. Eu tenho outros assuntos que me interessam, obviamente, mas fazer este trabalho agora, falar sobre isso, é o que me motiva. Porque eu falo sobre a maioria da população. E um papo na primeira pessoa. Quando eu falo sobre a família pobre, eu não estou falando na terceira pessoa, eu estou falando sobre lá em casa. Então talvez seja isso que aproxime mais as pessoas desse trabalho, porque ela falam: "É, isso é verdade, esse menino realmente sabe do que ele está falando".
Tem uma outra fonte do seu humor, que nesse momento deve estar reivindicando direitos trabalhistas, que é a sua mãe. Ela não fica brava com isso? Nada, ela adora. Na série, a mãe realmente toma a cena porque ela é o pilar central da casa, como é na minha família também. Meu pai um dia desses reclamou que o pai quase não aparecia na série. Ele estava meio chateado, porque a maioria das coisas que eu conto lá aconteceram na nossa família. Mas é porque eu falo sobre o dia a dia familiar e meu pai trabalhava de cinco da manhã até às dez da noite. Essa rotina, almoço do dia a dia, resolver problema na escola, em casa, tudo ficava para minha mãe. Então é natural que ela seja realmente a estrela da série.
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Parte do repertório do humor é também zoar um pouco com a televisão. Você teve muita exposição no Programa do Porchat, na Record. E depois você foi para a Globo, que, em tese, é a melhor TV, a mais equipada, a mais estruturada e de maior abrangência. O que a Record tem que a Globo não tem? Primeiro a benção, né? A Record tem a benção. Mas na Record eu me sentia livre. Eu era só o carinha do canto, achavam que eu era assistente de palco, o Helen Ganzarolli gordo do Fábio. A estrela do programa era o Fábio e tudo o que viesse de mim era lucro. Então o público não esperava nada de mim, nem os patrocinadores, a imprensa muito menos. A maneira como eu fiz o quadro "Emergente como a Gente", que depois virou o "Isso é Muito Minha Vida"... Eu menti que o roteiro mandou uma cena, falei com o diretor, a gente gravou, eu editei. Eu pegava o meu material, escrevia a minha série, ia para a ilha de edição, era 100% responsável pelo que as pessoas estavam vendo. E foi lá que eu me apaixonei por esse lugar na televisão, que é o que realmente importa para mim. Poder ser responsável não só pela piada ou pelo texto, mas pela maneira como isso vai ser contado. Tudo isso me empolga muito e eu aprendi na Record. Então essa liberdade me fez ousar. Mas é muito mais relacionado a quem eu era naquela época e a falta de expectativa sobre a minha pessoa do que sobre a empresa.
Há dez anos, o Trip Fm entrevistou o Eduardo Sterblitch, que, entre outros personagens engraçados, criou o Freddie Mercury Prateado. Ele falou uma coisa que não é exatamente inédita, mas bem interessante: quase todo humorista é um cara melancólico, triste, cheio de questões. Faz sentido essa generalização? Eu não falaria todos porque eu conheço comediantes muito felizes. O Fábio [Porchat], por exemplo, é uma pessoa feliz, solar. Ele acorda animado, tudo está ótimo, não tem tempo ruim. O Fábio é assim e eu conheço vários comediantes que são super felizes. Eu tenho uma implicância com besteira. Sabe aquela bobajada, que parece que você está na reunião da quinta série, está idiota com seus amigos e vocês riem de qualquer coisa? Eu não tenho muita paciência pra isso. Eu sou do tipo pensativo, eu faço comédia para sobreviver. Eu não sou um comediante. Acho que a comédia é a maneira mais palatável que eu encontrei de passar pela vida. O comediante é muito observador e existe uma coisa ruim nisso, que é enxergar coisas que muita gente não está vendo. A comédia sempre vem de alguma crueldade, então você precisa de um pouco de cinismo para fazer humor. Quando você faz a piada, o público ri, mas o comediante fica com o retrogosto daquilo. O amarguinho do final fica com quem fez a piada. Sempre quando eu vejo uma cena, quando eu olho para a vida, imediatamente me vêm duas visões: uma que é engraçada e a outra que é triste. Geralmente eu conto a engraçada, mas a triste fica comigo. Então eu sou uma pessoa reflexiva, penso muito sobre as coisas, sou o cara mais recolhido. Eu acho que a comédia é um óculos e o nosso papel é dar algum conforto para as pessoas oferecendo esse óculos. Quando eu falo “olha, minha mãe faz isso, isso e isso”, a pessoa se identifica e fala: "Caramba, a minha também, nunca tinha reparado". E ela ri. Mas quando você tira os óculos, dá uma olhada pra vida, fala: "Cara, é um esforço diuturno pra não virar um niilista". Tem um pouco disso.
Queria te ouvir um pouco sobre esse momento em que está tendo uma reação muito grande no mundo em relação ao racismo. Como você tem sentido a movimentação da sociedade, no sentido de mudar a forma como a gente lida com o racismo? Tem sido efetivo ou ainda é muito pouco? Eu detesto ser o pessimista da história, mas eu olho com desconfiança esse movimento. É importante, lógico, ele precisa acontecer, mas o que me causa desconfiança é o objetivo de acabar com o racismo estrutural. Eu temo que ainda seja um meme, sabe? E igualdade racial não se faz com comédia, com tela preta, com conversinha, com challenges. A igualdade racial se faz com ações práticas no dia a dia ela, com representatividade, com educação, com reconhecimento de privilégios. Eu não vi ainda uma onda tão grande quanto o meme, na vida prática. Nós somos tão colonizados que a gente precisa que os Estados Unidos paute a nossa movimentação. E não estou falando aqui contra a movimentação. Só me revolta um pouco a gente precisar que isso venha como uma modinha americana, tal qual a calça jeans, a Coca Cola. Você vê empresas americanas que têm sede no Brasil se posicionando contra o racismo, mas na verdade traduziram o tuíte da matriz americana. Quando você para pra pensar em representatividade, a gente não tem tantos avanços. A minha torcida é para que esse movimento desperte ações concretas, e que ele desperte quem mais me interessa nessa história toda, que é o povo preto. Tem muita gente dizendo que é pardo, tem muita gente que não se inclui nessa luta, que nem sabe que foi escravizado. O povo preto precisa saber o que todo o século de escravidão no Brasil fez na vida dele hoje. E é aí que está a minha esperança, é nesse despertar do povo preto. Por enquanto eu acho que ainda é meme. Um meme importante, mas que não resolve a vida do jovem e os seguranças no shopping, não resolve a vida do cara que a juíza deu mais tempo de prisão por causa da raça. São ações práticas que resolvem.
Tendo em vista essa sua visão crítica, quem são suas referências, pessoas cujo trabalho está sendo efetivo nesse sentido? Me ocorre, mas é tão óbvio que vai parecer puxa-saquismo. O Fábio [Porchat], para além das redes sociais, tem ações práticas na vida dele que combatem o racismo. No próprio Porta dos Fundos, que está revendo todo o processo de contratação, tanto de elenco quanto de roteiristas. O Fábio é uma pessoa que sempre lutou por representatividade nos convidados dos programas dele. Ele é um cara que pega a lista da produção e fala: “Tá, mas cadê os negros? Não tem negro”. Então ele fica sempre puxando essa pauta, que é o que se pode fazer. A branquitude precisa abrir espaço pro povo preto e ele faz isso muito bem na vida dele prática. Uma ação que também achei bonita foi o Zorra, aquela turma toda do humor da Globo que era do Tá no Ar. Eles fizeram uma esquete falando sobre só ter branco e aí a militância levantou a questão de que no próprio elenco do programa só haviam brancos. Isso deu um estalo no grupo de humor lá da Globo, que começou a promover oficinas em comunidades e formar roteiristas. Então hoje você tem um grupo muito grande de roteiristas negros que foram recém-contratados. Isso é uma ação prática. Não é só falar: “Ai, quero contratar negros”. Aí você faz uma seleção e obviamente vão aparecer os brancos que puderam pagar o Uber até lá. Você faz uma coisa prática quando você vai lá, forma, dá bolsa, permite, porque é um outro lugar de ausências. E empresas como um todo. Tem empresa que está atenta, mas a grande maioria eu acho que entra mais pelo meme.
Interessante o fato de você ter mencionado como referência de ação positiva e eficaz um branco. Ah, porque eu achei que era para mencionar branco, achei que era essa a pauta. Eu acredito muito que, quando se fala de mudança efetiva, ela está na mão do branco. Nós, negros, a gente levanta a bandeira, luta, grita, protesta, educa, escreve artigo, livro. O que mais tem é negro intelectual no Brasil. Conceição Evaristo, que talvez seja uma das figuras mais importantes do movimento negro, a Djamila Ribeiro, que faz um trabalho muito importante e conseguiu que ele fosse pop, no melhor sentido da palavra, para que informações importantes chegassem às pessoas. Aí você tem a Tia Má, que faz um trabalho super importante também. Enfim, tem uma galera. Mas minha coisa de mencionar os brancos é porque é quem tem que mudar, quem tem que abrir espaço. Infelizmente o poder ainda está nas mãos de uma maioria branca. É o chefe, é quem pode falar: “Metade da minha empresa vai ser de negros e mulheres”. Então por isso que meus primeiros nomes foram de brancos.
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Eu conheço uma empresa próspera dirigida por um negro bastante bem sucedido, a Viva Jalapão. Me conta desse seu lado empresário. Você tem uma empresa de turismo, é isso? Eu tenho uma empresa que chama Viva Jalapão e a gente vende pacotes para as pessoas conhecerem o Jalapão. Ela surgiu porque, desde que eu comecei a aparecer na televisão e vou ao Jalapão, as pessoas falavam: “Faz alguma coisa pela gente”. Eu me sentia meio um político lá, sabe? E realmente é um povo muito necessitado, em sua maioria. E aí quando eu fui melhorando de vida eu tive a ideia de fazer uma empresa pra poder bancar as ações sociais lá. Então eu criei a Viva Jalapão, em que parte do pacote que a pessoa compra é revertido em ações de educação na região. A gente equipa bibliotecas, doa computador, livros e nós estamos agora construindo uma escola numa comunidade quilombola no Jalapão. Não começamos essa construção por causa da Covid, mas vai acontecer. Eu acredito muito no poder da educação. A educação é libertadora. Eu sou a pessoa que foi liberta pela educação, pela cultura. Eu fui informado do que é o mundo, e de que não existem limites nesse mundo para mim, através da educação, da cultura. Depois da última eleição, onde eu me vi em brigas tão rasas, eu pensei: por que essa pessoa não tá entendendo o que eu estou falando? E aí eu cheguei à conclusão de que o que faltava eram oito anos de Ensino Fundamental bem feitos. Eu pensei: não vou ter tempo hábil pra conversar com essa pessoa sobre história, ciência, fascismo, sobre tudo isso. A única solução é a educação. Foi quando a gente inaugurou a Viva Jalapão, muito nessa ideologia de libertar pessoas através da educação e de mudar mundos. Eu não posso fazer uma escola em cada bairro desse país, então eu faço onde eu posso e tento mudar a realidade ali.
Eu quero fazer um convite para que você se transforme na Mãe Dináh e me diga onde o Brasil estará daqui a cinco anos. Vamos estar num buraco desgraçado, numa vala comum, ou teremos dado um salto quântico-triplo-olímpico-carpado na direção de um futuro melhor? Talvez a maior angústia desses tempos seja justamente essa falta de perspectiva do mês que vem. Mas eu acredito que nós vamos eleger em 2022 um presidente democrata, acredito que a nossa economia vai melhorar. Acredito que as pessoas terão mais empregos e que a gente vai caminhar para uma população mais educada e mais consciente de quem ela é, uma população que entenda que, se um cara prefere tirar do trabalhador para dar ao empresário, ele não é tão legal. Eu acho que a gente vai aprender a dialogar mais entre as pontas. Eu acredito nisso. Na verdade eu nem sei acredito, é mais uma oração do que uma previsão. E aí o hexa vem, o Neymar faz 7 a 0 na Alemanha e a gente vai sonhando. Mas a gente precisa sempre acreditar que as coisas vão melhorar porque, imagina, se não fosse a esperança esse país já tinha acabado há muito tempo.
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