Existe caminho para o desprendimento numa pandemia?

por Redação

O neurocientista Stevens Rehen, o físico Luiz Alberto Rezende de Oliveira e o poeta, escritor e ator Michel Melamed discutem se o desprendimento pode operar milagres em meio ao caos

Está lá na Eclesiastes: não há nada novo debaixo do sol. Aparentemente, a mudança é a única constante do universo. Pensando nisso, o Trip Com Ciência investiga de que forma o desprendimento de quem somos (como indivíduos e sociedade) nos ajuda a garantir um futuro para a espécie. Os paralelos entre arte e ciência, sobre a ilusão do controle e sobre como navegar em um mundo cheio de realidades paralelas dão pistas preciosas para esse mistério.

Neste episódio, o neurocientista Stevens Rehen convida o ator, poeta e escritor Michel Melamed e o físico Luiz Alberto Rezende de Oliveira para discutir se o desprendimento pode operar milagres em meio ao caos. Para ouvir o podcast, clique no play abaixo, ouça no Spotify ou leia a entrevista na sequência.

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Stevens Rehen. Michel, em 2004 você criou a peça "Regurgitofagia", onde mesclou teatro, poesia e performance para criticar o mundo contemporâneo – que então era bem diferente do de hoje, né? Dá para fazer um paralelo entre o que te preocupava naquela época e o que te preocupa hoje?

Michel Melamed. Que pergunta interessante, porque eu vejo duas coisas. Uma que "Regurgitofagia", ali, era o início de uma coisa que só aumentou. Quer dizer, era uma reflexão a partir do Manifesto Antropofágico e uma crítica sobre a ideia de se a gente continuava a deglutir as vanguardas e transformar, no caso, numa arte genuinamente brasileira, ou se as coisas vinham sendo enfiadas goela abaixo. E isso só se intensificou. A sensação hoje é que a gente mal tem controle sobre o que consome – ou poderia dizer o contrário, que a gente vive dentro de uma obra de arte total. Consumimos fragmentos que vão se encaixando e desencaixando 24 horas por dia nas mais diferentes mídias. E a conclusão da peça era: é necessário razão crítica para colher da náusea a flor, o que a gente quer, de fato, consumir. 

Quer dizer, tudo que você colocava na peça se amplificou nos dias de hoje. É, acho que sim. Eu, pelo menos, vivo isso cotidianamente. Você acorda de manhã, pega o celular, vê mensagem do WhatsApp, entra no Twitter, aí vê um fragmento de vídeo, aí vê outra coisa e isso tudo vai formando esse Frankenstein. O quanto a gente consegue realmente digerir dessas experiências todas, responder a isso, principalmente sem ser sufocado por isso tudo? Não só a quantidade, como a qualidade do que se consome.

Isso aí. Luiz, o que que está te sufocando, quero dizer, te preocupando mais?

Luiz Alberto Rezende de Oliveira. O fato é que a gente está vivendo um momento muito peculiar da civilização, no qual aquilo que foi a plataforma, o motor que impulsionou o que a gente chama de desenvolvimento, que foi o conhecimento baseado em evidência, começou a ser atacado por razões políticas. O que é uma coisa um pouco bizarra. Os semitistas sempre procuraram manter a paz, fazer com que seus enunciados, de algum modo, não refletissem a temperatura do ambiente político em volta deles. Hoje essa postura reativa não é mais possível de ser mantida, porque vemos lideranças políticas, religiosas, empresariais promovendo ativamente a ignorância e a superstição – o desconhecimento. Isso é um signo do nosso tempo, de fake news a fanatismos. E vai exigir que nós, os realizadores do conhecimento baseado em evidência, tomemos uma postura claramente política. Da mesma maneira, a gente vai passar a ter uma situação muito mais proativa no enfrentamento desses discursos ignóbeis.

Falando em engajamento, vou puxar aqui uma característica do trabalho do Michel no teatro, especialmente na Trilogia Brasileira, que é o fato do público observador influenciar diretamente o resultado da peça, do experimento observado. De onde surgiu essa ideia de abrir mão do controle da peça? Ou você nunca teve esse controle?

Michel. Acho que a gente não tem. Muitas obras – ou grande parte delas – têm muitos aspectos em aberto, que dependem mesmo da experienciação da rede de informação e do conhecimento do espectador. No caso específico desse espetáculo, eram coisas que, objetivamente, mudavam o que estava sendo contado, integravam diversas linguagens, entre elas, a performance – que nos seus cânones tem alguns pontos de partida como, por exemplo, a presentificação. No caso do "Regurgitofagia", os choques interferiam objetivamente no corpo do ator. Trabalhando com essas coisas, inventando esse tipo de interface é que percebi que um dos objetivos seria estabelecer relação com o público. Isso como ponto de partida. E aí passo a palavra ao citar o princípio de Heisenberg, que se juntou ao meu conhecimento de performance para perceber que havia um interesse sobre essa questão de que a experiência singular, a experiência de cada um, é parte indissociável da construção do mundo.

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Vou levar para o Luiz para que ele explique para gente o que é o efeito do observador da física, e se esse fenômeno pode ser medido além do nível quântico.

Luiz Alberto. O princípio de Heisenberg que o Michel mencionou, no fundo, descreve um fato absolutamente extraordinário: o de que os componentes microscópicos dos nossos corpos e dos corpos que nós vemos têm um comportamento muito diferente dos corpos dos quais eles são feitos, dos nossos corpos. Isso quer dizer que meu corpo tem certas propriedades – eu vou cair de certo jeito, eu vou esquentar e vou esfriar de certo jeito, vou me arrebentar se bater contra o muro de certa maneira. Mas as partículas, átomos e moléculas que compõem o meu corpo se comportam de maneira completamente diferente dessa. O exemplo mais claro é a gente entender o que é um quantum de ação, ou seja, uma unidade elementar de ação. Quando nós entramos no carro, ligamos o motor e o carro começa a andar, a gente está transferindo a energia para as rodas, o carro começa a se mover e nós então percorremos toda uma série de valores, vamos de zero para um, para dois, para cinco, para dez, para 20, até chegar de zero a 60. Todos os valores são percorridos, mas se o nosso carro fosse quântico, se o nosso carro tivesse submetido ao princípio de Heisenberg, ele só se realizaria alguns valores possíveis de velocidade. Se os nossos automóveis fossem quânticos, eles funcionariam nessa base, ou seja, passariam de 1 km/h para 5 km/h, para 10 km/h, para 25 km/h, para 50 km/h, sem passar pelo 2, 3, 4, 5, 6, 7 e 8 km/h. Ou seja, o mundo microscópico é essencialmente descontínuo, ao contrário do nosso mundo. Ainda bem, nós somos mamiferamente equipados para vivenciá-lo assim, ele é inteiramente contínuo. Então é como se a gente tivesse duas naturezas diferentes: a microscópica, que opera por essas trocas descontínuas; e a macroscópica, a nossa, que opera de outra maneira, contínua. Uma nova questão vai surgir quando você se pergunta: “Mas como é que eu meço alguma coisa?”. Para saber que a parede está aqui, eu tenho que, por exemplo, jogar bolas de gude nela. Jogo bolas de gude numa direção, escuto que ela bateu, escuto o eco e falo: "Ah, tem uma parede ali. Eu não estou vendo, mas eu sei que tem". Então você tem que interagir com alguma coisa para poder saber que ela existe, para poder até, quem sabe, medir propriedades dela. Esse que é o famoso efeito do observador, quando o observador faz uma pergunta, aquilo que estava ali manifesta, exibe uma certa propriedade. Se você não perguntar, você não sabe de nada. Mas quando você pergunta, você obtém uma resposta, uma propriedade, mas simultaneamente, você impede o conhecimento de outra, porque você alterou o sistema necessariamente. Há sempre um grau fundamental de incerteza no seu diálogo com o mundo microscópico. Certas matérias arranjadas de certa maneira, que têm certa forma, certas propriedades. O problema é que esses indivíduos e essas coisas, quando você vai lá no mundo microscópico e examina os constituintes deles, esses constituintes não têm forma definida, não têm propriedades duradouras. As propriedades que eles vão exibir dependem da pergunta que você faz, portanto, vejam vocês, as coisas não são feitas de coisas, as coisas são de algo que não é coisa – é isso que deixa todo mundo perplexo. Richard Feynman falou que quem acha que entende mecânica quântica, já não entendeu. Então essa proximidade vai ter ressonâncias com pensamentos orientais, na origem do pensamento grego e com filósofos dos enunciados paradoxais, vai ter a ver com a arte, porque a arte é capaz de mergulhar no desconhecido para extrair novas formas conhecidas. E mergulhar no desconhecido é sempre mergulhar nesse incerto, nessa incerteza, nessa variabilidade.

São conceitos que derrubaram outros conceitos da ciência. A minha pergunta é: a ciência é boa nesse desprendimento, ela é boa de abrir mão de antigos dogmas e absorver novos conhecimentos? Muito aqui entre nós, não é nada fácil. O Ernesto Sabato foi um físico importante. Ele diz que você pode medir a grandeza de um pensador pelo obstáculo que as ideias dele criam a novas ideias e cita, por exemplo, Aristóteles. O Ocidente se submeteu às ideias de Aristóteles sobre o movimento. Hoje, 300 anos depois, continuamos combatendo um outro gigante: Descartes. Continuamos ainda impregnados da concepção completamente equivocada, como sabemos hoje, de que corpo e pensamento são totalmente distintos – quando, na verdade, já podemos compreender que as problemáticas do corpo e da vida são de onde vão emergir as invenções do pensamento. Não há aí um antagonismo, pelo contrário. Agora, continuamos ainda não só no âmbito da parte da ciência, mas na imagem que a maioria das pessoas têm sobre a ciência e sobre como ela fala do mundo. Continuamos ainda presos a certas ideias dogmáticas. Você sabe que educação é você ser capaz de formar novas ligações, ligações que estavam soltas, você forma novas ligações e emerge na sua cabeça um certo diagrama que te faz dizer: "Ah, isso aqui está dando conta deste aspecto da realidade". Então educar é continuamente passar por esse exercício de flexibilização. Mas tão difícil quanto realizar essa nova síntese é se desprender dos diagramas já consolidados. A quantidade de informação que a gente tem requer o exercício de um filtro constante para que os nossos limiares de cognição não fiquem saturados. Você precisa ter novas formulações, operar de novas maneiras, praticar novos protocolos, como nós cientistas gostamos de falar. Mas isso significa deixar de lado certos conceitos que ficaram obsoletos.

Eu vou perguntar para o Michel: como é que a arte pode, justamente, ajudar e desfazer esses dogmas todos?

Michel. É uma maravilha ouvir o Luiz falando. A arte em si tem como ponto de partida exatamente isso. Me parece, como artista e principalmente como espectador, que o que interessa de fato na experiência da arte é revelar aspectos que não estavam visíveis – ou, mais ainda, a criação de aspectos que não existiam. A arte está exatamente nessa reinvenção. Ouvindo o Luiz falar, lembrei do cinéma vérité, que questiona a presença da câmera: ela passa a afetar o que está sendo filmado, né? O próprio via efecto do Brecht, a ideia de distanciamento, também engloba essas coisas. Quando você dá um passo atrás e percebe que está assistindo a um espetáculo teatral, não é só o engajamento emocional.

De certa maneira, o que o Luiz está ensinando para gente é o que os fatos não são, necessariamente, universais. Eles variam de acordo com o nível que a gente está trabalhando. Vou puxar um pouquinho para o que a gente está vivenciando com a pandemia: tem gente que acha que é uma farsa, outros que acham que ela foi disseminada pelas redes 5G, enquanto tem gente que entende que é uma doença zoonótica, que precisa de protocolo para evitar contágio, e também a busca incessante de tratamento. Independente de que só uma dessas visões tenha evidência científica de fato, o ponto é que a gente vai ter que se desprender da ideia de uma única realidade para poder continuar lidando e tentando buscar algum tipo de conexão com as outras pessoas.

Luiz Alberto. Questão difícil. Nós vamos ter que abrir mão e, nesse sentido, a física quântica é ilustrativa. Tem outros investimentos da ciência, teorias da complexidade, teorias do caos etc, que podem iluminar essa questão. As ciências contemporâneas e suas diversas vertentes nos mostram o que tem de equivocado na nossa perspectiva do dia a dia, que a gente chama de bom senso ou de senso comum. A forma coletiva pela qual a gente opera isso que é em cima da realidade, é a ideia de que encontramos uma realidade pronta, de que daqui uma hora eu irei jantar em tal lugar, comer tal coisa, como se isso fosse uma fatalidade e estivesse determinada. É como se os amanhãs já estivessem definidos, prontos, acabados, prêt-à-porter. Diversas vertentes das ciências contemporâneas estão nos mostrando que essa ideia é equivocada. Realidade é sempre algo construído, como o Michel acentuou muito bem. Na experiência do teatro, da performance, algo que não estava ali passa a estar. O mistério está sempre no centro de todas as coisas. Isso significa que somos navegadores, vamos estar sempre no mar, e mar tem ondas, correntes, tem o rumo e tem a errância. A errância é aquela força que te leva, que te empurra, submarina, e que se você não levar em conta vai se esborrachar nos arrecifes. Agora, o que faz o bom piloto? Ele ajusta as velas, o rumo, para chegar no porto levando em conta a errância, sabendo que existe uma força incontrolável com a qual ele tem que dialogar. 

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E qual é o papel da narrativa nessa construção da realidade, Michel?

Michel. Pegando carona no que o Luiz estava falando, as várias realidades são bem-vindas – afinal de contas, são mais de 7 bilhões de projetos para o mundo. No entanto, uma coisa é a multiplicidade e a realidade, outra coisa é defesa de realidades inaceitáveis, que eu acho que é o que vivemos hoje. Partindo da questão da Covid, a gente vive a maior tragédia, a maior pandemia em cem anos. Ao mesmo tempo, isso sob um desgoverno, a palavra que se usa – e me parece com muita precisão hoje – é genocida, um governo destruidor em todas as frentes. Ele boicotou completamente tudo que a ciência trazia em relação à Covid. O país está sendo destruído. Essa não é uma realidade que é bem-vinda no panteão das várias visões, então as visões que são construtivas, diferentes ou antagônicas são bem-vindas. A destruição, o preconceito, a violência, o autoritarismo, a tentativa de destruir a democracia, o assassinato das pessoas, isso não é uma realidade aceitável e nem está em negociação. Há uma disputa pela realidade, e uma das ferramentas fundamentais nessa disputa de narrativas é a questão da linguagem. Compreender a maneira que as coisas são apresentadas, os contextos, que signos são usados, quem está usando. Tem a ver com outras coisas que a gente falou aqui. A própria maneira de se relacionar com tanta informação da internet só confirma que é fundamental a leitura, uma educação para que você possa ter instrumentos para lidar com esse mundo, para entender o que está sendo dito, o que é uma diferença aceitável e bem-vinda e o que não é diferença, mas está querendo matar a diferença. Não vamos aceitar o inaceitável. Estamos em combate contra essas pessoas que estão tentando destruir o país.

Luiz, se a gente for pensar bem, a maioria da população não sabe como funciona um computador, um GPS, nem mesmo uma caneta. Então, qual é a linguagem que a gente vai usar para conseguir contrapor realidades – ou mostrar que há realidades que não fazem o menor sentido – quando você não tem os elementos mínimos para uma discussão?

Luiz Alberto. As colocações do Michel foram absolutamente perfeitas. Me parece ser essencial que o maior número possível de pessoas possam ser informadas de tal modo que possam compartilhar de processos coletivos de tomada de decisão. Resumindo em uma palavra-chave: educação. Talvez o fato mais significativo dos nossos dias seja o de que quase dois terços da humanidade é alfabetizada e pode, portanto, usufruir do legado da sua cultura, dos seus ancestrais de forma que quem está desaparelhado dessa capacidade de manejar a linguagem não está. Toda civilização precisa ser esse meio, essa forma de contato entre o que veio antes e o que vai vir depois. O que veio antes nós não estávamos, o que vai vir depois nós não estaremos, mas e se nós estivéssemos? Podemos ser esses veículos, essas pontes de conexão, então o amanhã vai lembrar de nós com boa vontade. Então a educação é absolutamente essencial para nossa vida e para o nosso futuro, para o futuro da vida na Terra, porque hoje a civilização se tornou planetária, e uma força de transformação planetária é a educação.

Tinha uma frase que eu gostava muito de repetir quando a gente tinha metade dos problemas que a gente tem hoje, que era: “Sejamos otimistas, deixemos o pessimismo para dias melhores”. Então, Michel, eu queria saber se nessa altura do campeonato a gente vai precisar se desprender do pessimismo e também do otimismo.

Michel. Lembro de uma frase que eu vou falar até para provocar os inomináveis e suas teorias furadas, desse personagem que os deixa arrepiados, que é o Gramsci. “Pessimismo dá razão, otimismo dá vontade.” Então talvez não seja tão fácil nesse momento encontrar os caminhos que precisam ser percorridos. Mas há que se ter, há que se estimular essa chama e esse desejo de um mundo possível, correto, ético. A gente tem uma civilização. Por mais que pareça um momento muito tortuoso e a saída não esteja visível, ela é possível. As provas são as belezas todas criadas. A vontade não pode esmorecer.

Luiz Alberto. Doutor Oscar Niemeyer gostava de dizer que pessimismo é um outro nome para lucidez, então ele não fazia essa oposição pessimismo x otimismo. Ele dizia que o pessimismo é uma forma de você ver lucidamente, mas ele dizia outra coisa que foi talvez o maior dos muitos ensinamentos que ele me passou. Oscar Niemeyer, com 102 anos, dizia: “A luta é longa”. Isso dá um vigor, uma persistência, resiliência pra gente e para a cultura. O que a cultura precisa hoje é a capacidade de ser flexível para resistir, é se opor sem se quebrar. Acho que isso é lucidez.

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