O neurocientista Stevens Rehen, o imunologista Gustavo Cabral e a atriz Dani Valente discutem como há muito das nossas relações – com o corpo e com o que nos cerca – por trás da imunidade
Nunca falamos tanto sobre vírus, doenças, vacinas e cura. Afinal, a pandemia causada pelo novo coronavírus vitimou mais de dois milhões de pessoas em todo mundo, destruiu famílias, nocauteou economias e alterou profundamente a nossa economia. Hoje, esse microscópico agente infeccioso é um dos principais inimigos da humanidade. Lutamos contra sua disseminação, corremos atrás de imunizantes e buscamos os tratamentos possíveis para a doença.
Neste episódio do Trip Com Ciência, o neurocientista Stevens Rehen convida a atriz Dani Valente e o imunologista Gustavo Cabral, que faz pesquisas para o desenvolvimento de vacinas na USP, para um papo sobre sistema imunológico e também sobre bactérias que moram no seu corpo e são essenciais para sua vida, sobre vírus que foram incorporados por nosso antepassados e hoje fazem parte do nosso DNA. E sobre como a alimentação, o contato com a natureza e a meditação podem melhorar sua saúde. Eu sou o Steven Rehen e esse é o Trip Com Ciência, lugar onde a ciência brasileira de ponta encontra a vida comum de pessoas extraordinárias.
Para ouvir o episódio, clique no play abaixo, ouça no Spotify ou leia a entrevista completa na sequência.
LEIA TAMBÉM: Todos os episódios do Trip com Ciência
Steven Rehen. Gustavo, explica para a gente o seu trabalho como imunologista e, também, se existem doenças com as quais os imunologistas não trabalham.
Gustavo Cabral. O imunologista, basicamente, é quem estuda o sistema protetor. O sistema imunológico nos protege de ataques vindos de fora e de dentro do corpo. Esse sistema não escolhe se proteger só de um verme, só de um vírus ou só de uma bactéria, está aí para proteger de qualquer coisa. Muitas vezes a doença é provocada não apenas por um vírus ou por uma bactéria ou pelo câncer, mas sim pelo próprio desequilíbrio do sistema imunológico. Então, o imunologista estuda a relação com o mundo, com os microrganismos, bactérias, vírus, com o próprio corpo, e aí entra a alteração de DNA, de célula, célula cancerígena e com o próprio sistema imunológico para que não haja nenhum desequilíbrio.
Como você bem lembrou, o nosso corpo também pode gerar doenças: autoimunes, alguns tipos de câncer, doenças genéticas. Quais são as principais diferenças nas formas como se pesquisa, se busca prevenção, tratamento e cura no caso de inimigos externos, como vírus, bactérias, fungos, parasitas, e no caso das doenças que são, digamos assim, do próprio corpo?
Gustavo Cabral. É sempre diferente a estratégia para desenvolver a vacina. Uma coisa é a gente lutar contra um bicho pequenininho como um vírus, outra coisa é lutar contra um protozoário, como o que provoca a malária, que é gigante. Também há particularidades mesmo de um vírus para o outro – no caso da Sars-CoV-2 ou esse novo coronavírus, há o interesse social e, por consequência, político. Então isso quer dizer que vai ter investimento pesado, início, meio e fim, um fator muito importante. E nesse caso, porque a gente está falando de um vírus que, por exemplo, não tem uma capacidade de mutação como tem o vírus da imunodeficiência. A gente monta uma vacina para produzir um anticorpo contra o vírus da imunodeficiência, vai lá e algema os dois braços. Na próxima ele volta sem os dois braços, então não é fácil de trabalhar com esse tipo de vírus. Outra situação é o vírus da dengue porque são quatro sorotipos, no mesmo ambiente que pode gerar um desequilíbrio do sistema imunológico. A vacina, ao invés de proteger, pode agravar a doença por causa do desequilíbrio. Então as estratégias são diferentes, mas a questão social e financeira é sempre relevante.
Dani, há alguns anos você foi diagnosticada com fibromialgia. Conta um pouco para a gente como foi a evolução ao longo dos anos?
Dani Valente. A fibromialgia é uma síndrome até hoje de causa desconhecida. Ela provoca dor pra caramba no corpo inteiro durante muito tempo, sem descanso, cria muita sensibilidade nas articulações, nos músculos, nos tendões, dá uma exaustão absurda. Eu costumo dizer que parece que você saiu da anestesia geral, não consegue levantar da cama. Causa também depressão, falta de concentração, uma série de coisas. E a pessoa leva muito tempo para conseguir ser diagnosticada – eu fiquei muitos anos sem saber o que eu tinha e isso é muito comum para quem tem fibromialgia.
LEIA TAMBÉM: A influência do sono na saúde mental
Como a sua relação com o corpo mudou a partir do momento que começaram os sintomas da fibromialgia?
Dani Valente. Eu trabalhei como atriz durante 25 anos e desde muito novinha a gente ouve na aula de teatro que o corpo é o instrumento do ator, que a gente tem que estar preparado para tocar várias partituras. Esse instrumento foi desafinando devido à fibromialgia, então, hoje em dia, eu considero meu corpo como a minha casa na Terra. Tenho que ter a disciplina de mantê-la limpa e organizada, se eu quiser uma casa confortável.
Metade dos pacientes com fibromialgia tem traços de depressão. Como é que você faz para lidar com esse lado emocional?
Dani Valente. Quando você sente dor 24 horas por dia, você não consegue pensar direito. Não conseguia levantar de uma cama, ir ao banheiro, brincar com a minha filha... Então não tem como a pessoa não desenvolver uma depressão com isso. Mas não foi só isso. Como a fibromialgia exige uma disciplina, um tratamento multidisciplinar, eu tive que focar. Descobri uma quantidade absurda de intolerâncias alimentares, como carne vermelha, glúten, ovo, leite, derivados. Às vezes a intolerância não é só à lactose, é o leite inteirinho, e isso inflama a parede intestinal. Eu tenho dificuldade de eliminar cobre. Então esse metal pesado e todas as toxinas que deveriam ser liberadas, devido a essas intolerâncias alimentares que destruíram a minha parede do intestino, foram parar direto na minha corrente sanguínea. E isso causou uma inflamação generalizada no meu corpo e essa dor absurda, a falta de energia, aí você não consegue se movimentar, não ativa as mitocôndrias. Então está tudo ligado.
LEIA TAMBÉM: Mudanças climáticas e a política da destruição
Embora causem muitos problemas, a relação dos vírus com seres humanos vai além das doenças. Há evidências – pedaços do genoma que foram herdados de vírus antigos – de que isso começou há 40 milhões de anos. Pode ser que metade do nosso genoma tenha vindo herdado de vírus. A gente pode dizer que as viroses seriam a força mais potente da evolução?
Gustavo Cabral. Isso é uma baita pergunta. Essa nossa relação com o mundo, que nos fez evoluir, é a questão da microbiota. Não tem como imaginar um organismo mamífero sem o microbiota perfeito. A gente brinca que não somos feitos de célula, mas de bactéria – temos dez vezes mais bactérias no nosso organismo do que células. Quando falamos sobre o sistema imunológico, não tem como deixar de lado, por exemplo, as citocinas, extremamente importantes no controle do sistema imunológico. O nosso DNA é formado de acordo com a relação com o mundo que nós temos. Todo o corpo é composto por multiplicidades de microrganismos, vírus, bactérias. A própria exposição, a relação com o mundo, nos faz evoluir imunologicamente falando.
Dani Valente. Isso que você falou, a relação com o mundo, que a gente vai evoluindo, a gente já pode falar de epigenética, né? Que é como os germes: a gente não mudá-los, mas pode mudar a expressão deles, certo? De acordo com o meio ambiente que se vive.
Gustavo Cabral. Exatamente. A gente não muda a cor dos nossos olhos, mas a gente muda vários componentes psicológicos, por exemplo, de acordo com um mundo que estamos vivendo, a bateria de estresse, o tipo de alimentação. Um tipo de alimentação que gera uma produção de gases vai alterar o nosso comportamento. A nossa expressão gênica está muito relacionado ao mundo em que a gente vive. E aí não precisa ser nem um grande cientista para perceber que, se você tem uma alimentação leve à noite, você dorme bem e no dia seguinte você acorda melhor.
Dani, a gente está falando de microbiota e a fibromialgia não tem cura, mas há tratamentos que minimizam sintomas. Conta pra gente um pouco do seu tratamento?
Dani Valente. Eu me tornei uma nutricionista holística porque foi uma nutricionista holística quem me tirou do quadro que eu estava. O meu tratamento foi baseado no resultado dos exames de intolerâncias alimentares, DNA e de metais pesados. Eu descobri que eu estava envenenada com cobre, descobri todos os alimentos que o meu organismo não estava aceitando. Por quê? Porque a minha microbiota está totalmente desregulada, desequilibrada. Os bichinhos bons precisam ser em maior número do que os bichinhos maus – no meu os bichinhos maus estavam vencendo. Eu regulei a dieta e fiz suplementação de vitaminas de acordo com o que o meu exame estava mostrando. As pessoas falam: "Ah, então quanto eu tomo de vitamina?". Eu não falo de jeito nenhum porque cada ser humano tem a sua necessidade.
Além disso, eu tinha que me livrar do estresse de qualquer maneira, então fiz todas as aulas que você possa imaginar de meditação, meditação transcendental... Eu fui obrigada a me tornar uma pessoa espiritualizada, zen, comer direito, procurar movimentar o corpo, agora de uma maneira consciente de que eu tenho as minhas limitações. É o que a nutrição holística faz e que as práticas integrativas falam, é cuidar do corpo e da mente. Não dá para separar uma coisa da outra.
Mas além do tratamento, você também se formou em nutrição holística. Como foi isso?
Dani Valente. Eu comecei a estudar muito para salvar a minha pele, mas as pessoas à minha volta me pediam dicas e eu comecei a compartilhar no Instagram. Quem tem esse tipo de problema não acha informação fácil e as pessoas têm muita vergonha de falar quando estão passando por isso. Eu nunca tive vergonha. Pensei: vou ajudar as pessoas, pelo menos com a minha experiência. O pessoal começou a reclamar: "Olha, você não pode falar de dieta na internet porque você não é uma profissional". Aí eu falei: "É, tem razão, então vou me tornar uma".
LEIA TAMBÉM: Diversidade no prato: vegetarianismo, veganismo, domesticação de plantas e ativismo
Existem dados muito interessantes que relacionam a fibromialgia com a serotonina, um neurotransmissor que é influenciado pela qualidade de vida, pela relação com o meio ambiente. Queria saber como é a sua relação com o meio ambiente.
Dani Valente. Quando eu preciso me alinhar, relaxar e eu não estou conseguindo meditar, eu vou para a primeira terra que eu encontro e fico descalça para me conectar. Eu respeito demais o planeta Terra, e não é esse papo de paz e amor, 'vamos abraçar o planeta Terra'. Porque é a maneira mais inteligente de sobrevivência da espécie. Não temos que proteger o planeta, ele não precisa da gente para nada. Quando está cuidando do planeta, está se protegendo. São três pilares para uma qualidade de vida boa: alimentação, atividade física e o meio ambiente em que você vive. Se você estiver mais próximo à natureza, melhor ainda. Com esses três pilares você os seus genes ficam felizes, você consegue botar os bichos bons na sua microbiota, no seu intestino. E aí você tem disposição, energia para viver, você fica equilibrado, tudo está ligado, todo o seu corpo funciona melhor. Você tem a consciência que todo mundo faz parte de uma coisa só, que estamos todos interligados com uma energia, e isso é muito sério. Isso hoje é medido e a ciência está cada vez mais provando isso.
Foi feito um trabalho na Finlândia numa creche em que eles botavam as crianças para mexer na terra por um determinado período do dia e, depois de um mês dessa relação mais íntima com a terra, essas crianças apresentavam uma alteração muito positiva no sistema imunológico, e que levava, por exemplo, à produção de células T, que é uma forma de defesa do corpo. Gustavo, quando a gente fala em política pública de imunização, a gente sempre pensa em vacina. Você acha que dá para colocar como parte de uma política pública essa relação com o meio ambiente, como uma forma de aumentar a imunidade?
Gustavo Cabral. Porque você gera o equilíbrio, gera homeostase. E aí se você é capaz de gerar homeostase, você é capaz de responder abruptamente contra a agressão e voltar à ela. Eu trabalhava num laboratório de alergia em que eu era o controle negativo. Fazia os testes com alérgicos, não respondia para nada, porque eu tinha contato com a terra, uma vida natural, ia para a roça, andava descalço, caía, ralava o joelho, tinha contato com os microorganismos. O meu sistema imunológico tinha um balanço e, consequentemente, produção de células T. Aí entra aquela parte do sistema imune inato, que a gente já nasce com ele, tem contato com o mundo lá fora, com a natureza, e ativa o sistema imune adaptativo. Minha professora de mestrado brincava: "Por que eu protegi tanto os meus filhos? Hoje todos têm alergia". Para a gente evoluir, a gente precisa ter contato com a natureza.
LEIA TAMBÉM: Inteligência artificial, fim da humanidade ou salvação?
Uma das grandes vantagens adaptativas do homem na Terra vem através da empatia e da percepção que a gente pode ter das emoções dos outros. Qual é o seu recado pra gente atravessar esse período com mais leveza e qualidade de vida?
Dani Valente. Foca nos três pilares de gerenciamento do estresse. Se você não sabe meditar, pare e preste atenção na sua respiração, que sejam cinco minutos de manhã e cinco minutos à tarde. Em segundo lugar, mexa o corpo. Agora está difícil porque a gente está preso em casa, mas põe uma música e dança, é muito importante a gente se movimentar. Se conecta com a terra de alguma maneira, vai para um lugar aberto, coloca o pé descalço, toma sol, se conecta com a mãe natureza. E a alimentação? Que venha da natureza. Encare a feira como a sua farmácia, encare os vegetais como sendo seus remédios. Já tem muita toxina no meio ambiente, então se livra de produtos muito industrializados, mantenha uma vida simples, seja simples.
Gustavo, agora o seu recado final. Enquanto não tem vacina é máscara, distanciamento das pessoas e das fake news?
Gustavo Cabral. Enquanto a gente não obtém a vacina – e mesmo depois, até que a gente consiga imunizar em massa, e aí se livrar desse vírus –, vai precisar, sim, usar máscara. Não há problema nenhum nisso, tá? Incômodo é perder uma vida. O distanciamento é uma forma de amor. Um dos principais pontos da evolução humana é compreender-se como sociável, porque sozinho o homem não evoluía. Então, quando a gente cuida um do outro, a gente evolui como espécie e vai longe.
Créditos
Imagem principal: Divulgação