Você já pensou sobre a bissexualidade e a bifobia?

por Paola Lins de Oliveira

”A bifobia carrega em si a ideia falocêntrica de que homens e pênis são incontestavelmente mais desejáveis que mulheres e vaginas”

Hoje é o dia do orgulho LGBTQIA+ e eu te pergunto: você já pensou sobre a bissexualidade? Identidades queers, intersexuais e assexuais estão ganhando um pouco mais de espaço – claro que ainda muito menos do que o necessário –, mas as quatro primeiras letras são muito conhecidas. Mesmo que você não faça parte da comunidade, já deve ter refletido sobre as mulheres que são lésbicas, os homens que são gays e também sobre as pessoas que são transexuais e travestis. Como vivem? Como conseguem construir carreiras? Como será o dia a dia das suas relações amorosas? Certamente você já viu uma dessas pessoas na televisão, conhece alguém na escola, no seu trabalho, na sua família. Você provavelmente tem até um amigo ou amiga que é. Mas e as bi, que não são as bichas? Você já pensou nelas?

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Se você não pensou muito, não se culpe. Até poucos anos atrás, quando entendi que sou bissexual, aos 34 anos, também não tinha dedicado muito tempo ao assunto. Enquanto lésbicas, gays, travestis, transexuais ocupavam lugares no meu imaginário, pessoas bissexuais foram sempre a exceção da exceção. Essa escassez de referências, essa invisibilidade, tem vários motivos. Acredito que o principal deles é a misoginia. Me explico, mas para isso precisamos entender como pessoas bissexuais são vistas.

Existem muitos estereótipos sobre como se comportam, se vestem, do que gostam as pessoas LGBTs. Viado, sapatão, travestis e trans falam, se vestem, andam assim ou assado. Muitos exageros, generalizações, mentiras. Alguns desses clichês pretendem informar, alguns matam.

Mas quais são os clichês que envolvem as pessoas bi? Eu não conheço nenhum sobre como andam, se vestem ou falam, mas conheço um bem popular que diz que pessoas bi não existem. Esse clichê da não existência está ligado a outro que afirma que a bissexualidade na verdade é um “pit stop” para uma verdadeira saída do armário. Ou seja, não seria uma identidade em si mas uma identidade de transição, uma fase por que passam algumas pessoas até conseguirem se dizer lésbicas ou gays. Nessa linha de raciocínio, bissexuais disfarçariam sua atração pelo mesmo sexo fingindo ter também atração pelo sexo oposto. É quase uma operação matemática que teria como ideia de fundo a seguinte equação: menos prestígio social por ter uma relação com alguém do mesmo sexo se neutraliza com mais prestígio social por ter uma relação com alguém do sexo oposto. Como se tesão e expressão da sexualidade fossem lógicas.

Não vou aqui falar sobre como é difícil ter uma identidade que todo mundo diz que na verdade não existe. Hoje vejo que pessoas bissexuais têm falado sobre isso há muito tempo e não parece ter sensibilizado muita gente. Sigo um outro caminho.

Chamo a atenção para o que se esconde atrás da negação e da invisibilidade da bissexualidade. Para fazer isso, recorro aos nossos aliados do alfabeto dissidente.

A invisibilidade é uma característica da identidade lésbica pelas lentes do patriarcado. Durante a vida toda, mulheres lésbicas ouvem que sua sexualidade é uma fase, e que se encontrarem um “homem de verdade” (que as coma direito) retornarão (bem comidas) para a heterossexualidade. Muitas vezes uma mulher pode morar com outra mulher durante anos, ter filhos, ser totalmente explícita no seu afeto e ainda assim ter que lidar com a surpresa de fulano ou ciclano quando menciona sua companheira.

Por outro lado, os homens gays vivem uma hipervisibilidade: todo e qualquer indício do feminino no seu comportamento é exposto e hiperdimensionado. Eles estão sempre sob suspeita, e quando ela é confirmada se torna uma marca definitiva da identidade, como se ter experiências sexuais com homens fosse um caminho sem volta.

Isso acontece porque o machismo aprisiona o homem num lugar de repúdio de tudo o que é percebido como feminino. Se a misoginia é a base do machismo, a homossexualidade funciona como uma espécie de método de exclusão dos homens da masculinidade.

Homens gays e mulheres lésbicas estão em lados opostos do espectro da visibilidade e invisibilidade. Por um lado, a invisibilidade de pessoas bissexuais se aproxima da lésbica, mas uma diferença brutal é que ela funciona também para dentro, ou seja: embora dificilmente você encontre uma pessoa GBTQIA+ que ache que não existe lesbianidade, não será tão difícil assim encontrar uma pessoa LGTQIA+ que acredite que a bissexualidade não existe.

Mas não existe como? A forma como a bissexualidade é negada é diferente para homens e para mulheres, tanto fora quanto dentro da comunidade. Uma mulher bissexual pode ser acusada de ser uma lésbica “enrustida”. Mas muitas vezes a mulher bissexual é acusada de ser uma pessoa heterossexual que quer chamar a atenção de um homem heterossexual ou quer experimentar (sem compromisso emocional ou ético) o erotismo com outra mulher (como se isso fosse um desvio de caráter). Já um homem bissexual será apenas acusado de ser um gay enrustido. Não consigo imaginar uma situação em que um homem bissexual tenha sido acusado de ser um homem heterossexual que quer chamar a atenção.

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A essa altura está evidente que, com a exceção das mulheres lésbicas que conseguem furar a bolha da invisibilidade, todas as outras sexualidades são direcionadas para o homem. Nessa visão, assim como os homens gays, mulheres bissexuais e homens bissexuais na verdade gostam mesmo é de pênis. Tudo se passa como se alguém que sentisse atração por pau e buceta, no fundo no fundo sempre preferiria o pau.

A bissexualidade existe porque as mulheres são absolutamente desejáveis, seus corpos são fonte de prazer infinito. A bifobia transforma o desejo e amor pela mulher e pela buceta num cortejo ao pau disfarçado. A velha ladainha de que sexo de verdade, sexo pra valer, só existe quando tem um pau ereto penetrante envolvido. Destruir o patriarcado passa por destruir a bifobia que carrega em si a ideia falocêntrica de que homens e pênis são incontestavelmente mais desejáveis que mulheres e vaginas. E quem deseja e ama mulheres sabe que isso é uma mentira deslavada.

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