Família é não ficar sozinho quase nunca - e, quando ficar, não saber o que fazer com o próprio tempo
Eu já fui como a menina que, ao cruzar comigo apressada em sua bicicleta, impaciente com a mulher que à sua frente desvia o carrinho duplo de bebê, pensa: “Deus me livre!”. Passar por ela é encontrar comigo de outros tempos. Reconheço um pergaminho de boas razões para aquela menina pensar assim e, ao mesmo tempo, sinto imensa felicidade e gratidão pelo caminho que me escolheu.
Sempre tive uma fascinação com o segundo filho. Brincava dizendo que ter um filho é errático, qualquer um tem, mas dois filhos é família. Espantosamente, hoje acho que ter um filho é moleza e compreendo o pavor estampado no olhar que pais com seus filhos únicos no colo me lançam na antessala da clínica de vacinação, onde meus dois bebês se esgoelam escalando meu colo em busca de conforto.
Família é uma ralação inimaginável. É às vezes fazer xixi com neném no colo, é engolir a comida em vez de almoçar, é não dormir uma noite inteira durante anos, é ficar com a pele ruim apesar dos melhores dermatologistas, é não ter mais dinheiro pros melhores dermatologistas, apesar da pele ruim. Família é conta conjunta, cheque aberto em cima da mesa, dar adeus ao vestidinho mesmo na liquidação, é pensar duas vezes antes de comprar mais um livro, é investir em carro grande, é preferir viajar de quando em quando a ficar sem folguista. Família são os três celulares da babá e da arrumadeira tocando juntos, é a máquina de lavar batendo roupa no sábado à noite, é geladeira e freezer, cheiro de comida, resolver picuinha entre a babá e a arrumadeira, é carro grande com os bolsos dos bancos entupidos de lenços de nariz encatarrados e amassados, são duas crianças chorando no engarrafamento ao cair da noite.
Galinha Pintadinha
Família é dormir no meio do filme, é cair doente em vez de ter ressaca, é não ficar sozinho quase nunca – e, quando ficar, não saber o que fazer com o próprio tempo depois de certo tempo. Família é agasalhar bem os filhos e sair de chinelos, é se pegar cantando o có-có-có-có da Galinha Pintadinha e não achar ridículo, é casa povoada por berreiros que se tornam gargalhadas que nos fazem sorrir sem perceber. Família é paciência, longo prazo, construção. É amar os próprios pais como nunca antes, é se emocionar com cada palavra ou gesto novo aprendido pelos filhos, é querer saber tudo o que eles fizeram, ficar junto no sofá sujo de mingau assistindo Balão Mágico e achando a Simoni uma das grandes cantoras da MPB. Família é nunca mais se sentir só, é ter muitas vezes os olhos marejados e, apesar da exaustão, sentir o coração se expandir a cada nota de um simples acalanto ou ao escutar a encarnação do espanto em duas sílabas: mamãe.
Vida em família se parece quase nada com comercial de margarina.
*Antonia Pellegrino, 32 anos, é roteirista e escritora. É dela o roteiro da série Oscar Freire 279. Ela ganhou o Grande Prêmio do Cinema Brasileiro pelo roteiro do filme Bruna Surfistinha. Seu e-mail:a.pellegrino@terra.com.br
