Sobre como passar uma tarde dministrando as dúvidas e as reivindicações de meus sobrinhos
Ou sobre como passar uma tarde inteira administrando as dúvidas, os questionamentos e as reivindicações de meus sobrinhos
Estela, Francisco e Marcelo vieram visitar. Chegaram acompanhados da mãe, minha irmã, que foi logo avisando que tinha começado a fazer meditação transcendental. Não consegui saber mais nada sobre a prática porque, enquanto Francisco ligava a TV, Estela queria saber onde estava o iPad e Marcelo me pedia para jogar bola com ele, embora não houvesse na pequena sala de meu apartamento espaço para isso. Eu tentava administrar todas as perguntas e os pedidos e as reivindicações, e minha irmã tomava um copo de água na cozinha e limpava o suor da testa.
Decidimos sair e, quando minha irmã entrou numa loja para fazer algumas compras, convidei a tropa miúda para ir tomar um sorvete. Na sorveteria, fui para a fila e pedi que eles se sentassem numa mesa. Pude ouvir os três conversando e discutindo alguma coisa, mas não sabia o que era exatamente, porque crianças de 12, 9 e 7 anos tendem a falar ao mesmo tempo e a ignorar que há algum tipo de ruído na comunicação. Quando cheguei com os doces, ficaram mudos até que Estela falou:
“Você vai se casar?”
“Vou”, respondi.
“Quando?”
“Estamos pensando em outubro, o que acham?”
“Vocês vão ter filhos?”, quis saber Francisco ignorando minha pergunta.
“Não sei. Eu já quis, mas talvez tenha perdido a vontade. Quem sabe?”
“Você ainda pode ter filhos?”, perguntou Estela.
“Tecnicamente sim, mas é mais difícil engravidar aos 46.”
“Por que vocês não adotam? A gente estava conversando e decidiu que quer ter mais um priminho ou priminha e só resta você.”
“Pode ser”, respondi me sentando. E foi quando a gritaria começou:
“Adota! Adota! Adota!”
De pé os três faziam uma algazarra sem fim na loja, implorando para que meu objeto de devoção e eu adotássemos. Sem saber como reagir, simplesmente continuei a tomar meu sorvete e comecei a dançar com a cabeça no ritmo da gritaria. E então minha irmã finalmente apareceu e colocou ordem na casa, deixando claro que sob minha jurisdição a coisa parece sempre meio caótica, um argumento que ela usa desde que éramos pequenas.
De volta à casa, decidimos fazer um macarrão. Meu objeto de afeição chegou do trabalho, tirou o salto, colocou uma roupa mais confortável e um panelão de água para ferver. Francisco ligou a TV em um volume muito acima do desejado, Estela pegou o iPad e Marcelo achou uma bola de pilates e passou a pular sentado sobre ela no meio da sala tentando tirar o iPad das mãos da irmã. Fiquei esperando a mãe deles tomar uma atitude, mas quando vi, ela estava de pernas cruzadas no sofá e com os olhinhos fechados. Cheguei mais perto e ela, embora não tenha aberto os olhos, grunhiu que não gostaria de ser interrompida porque estava meditando. Sentei no outro sofá, ao lado de Francisco.
“É sempre assim?”, perguntei apontando a mãe dele com a cabeça.
“Duas vezes por dia desde que fez o curso de meditação”, ele disse. E emendou: “Em quem você vai votar?”.
“Dilma. E você?”, devolvi.
“Eu não voto”, disse bastante sério e quase triste. “Por que Dilma?”, continuou.
“Porque acho que o país melhorou nos últimos anos, pelos programas sociais que ajudam os mais pobres, e porque acho que nada poderia ser pior para o Brasil do que Aécio ganhar.”
“Você é comunista?”, quis saber ainda de olho na imagem da TV.
Olhei para minha irmã, que deixou bastante claro, através da mais sólida e completa imobilidade, que continuava a meditar e que eu me virasse. Talvez ter uma tia lésbica, corintiana e comunista fosse demais para a cabecinha dele.
“Digamos que simpatizo com muitas coisas do comunismo marxista e desgosto de muitas coisas do capitalismo.”
“Acho que discordo, mas respeito sua opinião”, ele disse. Do que exatamente ele estava discordando não sei, mas me contentei com o respeito que ele me oferecia. Depois de pensar um pouco e de mudar os canais da TV várias vezes, voltou a me abordar:
“Você prefere o Messi ou o Cristiano Ronaldo?”
“Messi”, respondi.
“Prefiro o Cristiano Ronaldo, ele foi eleito o melhor do mundo.”
“Não gosto dessa eleição de ‘o melhor’, não gosto dessa coisa de só valorizarem quem vence, não gosto da análise do jogo com tantos números”, disse empavonada com meu recém-revelado comunismo.
“Mas é o justo”, ele disse depois de mudar outra vez o canal da TV.
“O futebol não é justo porque imita a vida, e a vida não é justa.”
“É sim!”, ele disse virando o rosto para mim.
“Não, não é!”
“É!”
“Não, não é!”
“É!”
Sei que poderia seguir assim por meia hora se quisesse, mas estava com fome e vi meu objeto de desejo colocando a mesa, então encurtei o papo.
“Quantas vezes um erro do juiz decide o jogo?”, perguntei.
“Muitas vezes. Mas lá na frente o juiz recebe de volta o que ele fez. Na vida, cada ação tem uma consequência”, decretou antes de voltar a olhar a tela da TV.
Virei o rosto para minha irmã em busca de ajuda, mas ela continuava a impenetrável.
“Quem te ensinou essas coisas?”, perguntei levemente assustada.
“A vida”, ele disse voltando a olhar a TV e sem deixar claro se falava de vidas passadas ou desta.
Fui salva porque o macarrão ficou pronto e fomos todos comer. Enquanto nos sentávamos, podíamos escutar a música-tema de Seinfeld vindo do aparelho de TV, e Estela então se lembrou de um episódio em que George deixa um recado cantado em sua secretária eletrônica. “Como era mesmo a musiquinha que ele inventou?”, Marcelo quis saber. “Believe it or not George isn’t at home”, comecei a cantar em inglês, e minha irmã continuou enquanto servia um deles de massa: “Please, leave a message at the beep”. Foi seguida por Francisco e depois por todos. “I must be out or I’d pick up the phone, where could I beeeeee?...” Durante alguns minutos ficamos assim, cantando sentados à mesa, enquanto nos fartávamos de massa e de vinho.
Como aquelas crianças tão pequenas sabiam a letra inteira eu jamais entenderei, e talvez minha irmã tenha um porão secreto em casa onde crie sua pequena intelligentsia particular, mas o fato é que passar uma tarde com esses três seres humanos miúdos me faz acreditar um pouco mais na humanidade. Cantando, comendo e bebendo seguimos noite adentro. Aquela era, afinal, apenas uma quarta-feira em família.
A carioca Milly Lacombe, 46 anos, já exercitou a paixão pelo futebol no SporTV e na Record, como comentarista esportiva. Também já colaborou com diversas revistas e com o portal Terra, mas gosta mesmo é de escrever livros em seu cubículo em Nova York, onde foi passar uma temporada com duas cadelas e uma gata. Seu e-mail: millylacombe@gmail.com