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Um drible no destino

A Tpm foi à cidade natal de Marta para revelar quem é a número 1 do futebol mundial

Um drible no destino

Por Carol Sganzerla TPM #92

em 13 de outubro de 2009

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Não ficou um em pé pra contar história, mas a décima vaquejada de Dois Riachos, tradicional festa nordestina, vai ficar para a história da cidade alagoana. “Diz que Marta vem” não saía da boca do povo na véspera. E o que mais se faz por lá é falar. Na cidade de uma rua principal, nenhum cinema nem sinal de celular, resta ao povo prosear. O dia da festa então amanhece na cidade da melhor jogadora de futebol do mundo. A própria chega de Maceió, onde acaba de comprar um apartamento, em sua Mitsubishi L200 vermelha, seguida por outro carro montado de amigas. Farra à vista. “Tô chegando, vamos falar mais tarde”, dribla a atleta, de óculos escuros, arredia à reportagem da Tpm. Ela adentra a casa da mãe, dona Tereza. Uma vizinha fofoca: “Agora ela está repaginada, fez alisamento e só anda de chapéu”.

O dia da festa então anoitece. No parque de chão de lama e cheiro de estrume, o locutor disputa a atenção de mais de 20 mil pessoas com os Cavaleiros do Forró. No camarote, a disputa é pelos sorrisos de Marta. Ela posa pra foto, outra, mais uma. Dá um gole na cerveja e dança com as amigas de chapéu vermelho e bota de caubói. Dá mais um autógrafo e cumprimenta a prefeita.

Um morador dá a dica para ganhar a confiança da entrevistada: “Faça amizade com as amigas, mas não chegue perto demais que Marta tem ciúmes das menina dela”. Um gole de whisky e volta pra roda de amigas. São muitas: de infância, de bola, de Belo Horizonte, Rio, Salvador. Marta não gosta de ficar sozinha. Adora uma bagunça, um pagode, estar rodeada de gente conhecida. Caso contrário, não se sente à vontade, se fecha e desvia o olhar. É raro aparecer em Dois Riachos sem as amigas de fora – o que provoca ciúmes nas companheiras de infância. Uma delas, Inês Rocha Corrêa, 25, solta: “Me sinto melhor quando ela tá lá, porque quando tá aqui é muito dada. Sai muito, tenho medo porque bebe demais. Ela diz: ‘Mas tô de férias’. Eu digo: ‘Mas não é assim.’”.

A meia-atacante na Copa do Mundo feminina, em 2007, na China, em que ficaram com a medalha de prata
A meia-atacante na Copa do Mundo feminina, em 2007, na China, em que ficaram com a medalha de prata / Créditos: Divulgação/CBF

O arrasta-pé segue ao ritmo da chuva que desaba. Quando o aguaceiro aperta fica apertado também o camarote de estrutura instável. “Vou-me embora, isso aqui tá perigoso, vai cair, minha mãe tá aqui”, diz Marta, sem largar o copo de whisky – o quinto da noite. Dona Tereza nem se abala. Seus olhos miram o show, mas o que ela vê são cenas do passado, quando Marta ainda estava agarrada à sua saia, sonhando em ser jogadora de futebol. Dizia na época: “Deixe de sonhar, nóis não tem condição pra isso”. Marta não dava bola para a mãe. Respondia com certeza: “A senhora vai ver”. A promessa da filha se confirma na festa sertaneja: Marta sobe no palco para ser ovacionada como a rainha do futebol. “Ela diz que tá sonhando ainda”, acrescenta a mãe.

O dia depois da festa amanhece. Às “doze” do domingo Marta só tinha trocado as botas por chinelos de dedo. Festeira, não pregou o olho desde a vaquejada e se mandou com as amigas para o povoado Pai Mané, ao lado de Dois Riachos, coincidência ou não, a casa de seu pai. Audálio Ferreira da Silva, figura conversadeira de 60 anos, mora há seis meses no terreno que a filha comprou para ele. Não se viam havia dois anos. “Os desejos de ver é muito, mas ela só enfrenta mais a casa da mãe. Marta sabe que toda a vida teve um pai não forte, mas direito e honesto. Ela é meio pesadinha comigo porque às vezes eu repreendia. Nunca fui de um bem grosseiro, mas nunca parava essa língua de dizer como era o jeito das coisas”, lembra o velho, que divide os dois cômodos da casa com a terceira mulher, Francisca, 34, e quatro filhos.

Seu Audálio conta que a filha sentiu a saída dele de casa: “Não foi pelas minhas malandragens, faltou amor”. Marta tinha pouco mais de 1 ano. Quando crescida, viu o primogênito, José, tomar as rédeas de pai. Era o dia inteiro irmão correndo atrás de irmã. Futebol não era coisa para mulher.

O destino traçou que Marta Vieira da Silva, 23 anos, fosse eleita três vezes pela Fifa a melhor jogadora de futebol do mundo (2006, 2007 e 2008), mas até lá previu linhas tortuosas. Nascida em Dois Riachos, interior de Alagoas, a 188 quilômetros de Maceió, a cidade tem 11 mil habitantes e está entre os 200 municípios brasileiros com o menor Índice de Desenvolvimento Humano. A mirradinha dos irmãos José, 34, Ângela, 31, e Waldir, 29, vendia geladinho, carroçava na feira, matava rolinha para comer e aula para bater bola debaixo da ponte. O professor de educação física José Júlio de Freitas, o Tota, 52, já via Marta pelas ruas antes mesmo de ensiná-la a driblar: “Ela ia pra casa de uma família que dava comida pra ela e, quando tinha feira, pegava os grãos de feijão do chão”, conta.

Tota: Se ela errasse uma jogada, puxava os cabelos e chorava de raiva
Tota: "Se ela errasse uma jogada, puxava os cabelos e chorava de raiva" / Créditos: Bruno Miranda

Foi Tota quem mostrou os fundamentos do futebol para Marta. Começou quando ela tinha 9 anos, até os 12. Em Santana do Ipanema, cidade a 18 quilômetros de Dois Riachos, onde a menina competia na Associação Atlética Banco do Brasil, foram muitos os episódios de preconceito. “Lembro uma vez que Marta começou a driblar, os cabelinho amarrado todo doidão, aí chegou um cara e disse: ‘Isso aí não é mulher não. Deixe que quando ela sair vou lá pro banheiro saber.’. Eu disse: ‘Epa, você não vai não’”, relata o professor, que até hoje não viu a aluna jogar em um estádio. Sonha com esse dia, que talvez chegue agora, já que a atleta, convidada pelo Santos a disputar a primeira Taça Libertadores feminina, fica até dezembro no Brasil.

Não tinha um olhar sequer que não se espantasse com o fato de Marta só se enturmar com meninos. O falatório corria, “o pessoal chamava ela de macho-fêmea”, solta um vizinho. Quando batia bola com as meninas, era de cara feia. A amiga Inês implicava: “Eu dizia: ‘É feio mulé brincá com os menino’. E Marta falava: ‘É não, eu gosto’. Aí ficava jogando e eles acabava dando tapinha nela, que saía chorando, mas não levava desaforo pra casa. E não mudou nada, continua invocadinha, palavrão então.”, entrega a única amiga a acompanhá-la até a rodoviária na sua ida para o Rio de Janeiro nove anos atrás, aos 14, quando foi tentar a sorte no Vasco.

Na capital fluminense, quem ficou responsável por Marta foi seu conterrâneo Marco Pires, o Marcão. Ele conta que, na primeira peneira vascaína, a menina nem chuteira tinha. E estufa o peito para dizer que, sem sua ajuda, ela estaria no anonimato. A mágoa por Marta nunca tê-lo procurado é muita. “Se eu falar pra você que não sinto é mentira. Eu acho que é o empresário [Fabiano Farah, o mesmo de Ronaldo] que não deixa ela falar comigo. Se não trago Marta pro Rio ela estava na rua bebendo cachaça e jogando com homem”, desabafa. Marta ficou nove meses morando com a família de Marcão até que um desentendimento com sua esposa a fez ir embora. “Uma noite ela foi para uma praia e chegou toda embriagada, queria sentar molhada no sofá e teve uma discussão com a minha mulher”, relata.

Depois disso a menina foi morar no alojamento do Vasco, onde pegou amizade com ex-jogadoras da seleção como Sissi e Pretinha. Helena Pacheco, ex-técnica do time, conta que a alagoana falava pouco e era rebelde. “Mas ela sabia ouvir e isso é muito importante”, recorda. Foi para Helena que a jogadora ligou quando recebeu o contrato em inglês do time sueco Umeå IK, cinco anos atrás. “Checamos para ver se a equipe existia, porque acontece de ter muita prostituição por trás. Falei pra ela: ‘Nunca largue seu passaporte e não coloque o dinheiro na frente, jogue primeiro’.”

Fome de gol
Marta jogou, carimbou o passaporte e ganhou dinheiro. Virou ídolo na Suécia e foi artilheira do Umeå IK, que com ela ganhou quatro vezes o campeonato nacional – em 111 jogos marcou 103 gols. Após cinco anos no país, no início de 2009 assinou contrato com o americano Los Angeles Sol, no qual também foi artilheira nessa temporada da WPS (Women’s Professional Soccer) com dez gols em 19 jogos. Bastaram poucas partidas para a meio-atacante chamar a atenção de um fabricante e ter seu corpo modelado numa boneca. “O objetivo da minha vida sempre foi ganhar o mundo e ser uma das melhores. Mesmo tendo conquistado títulos individuais, quero um com a seleção brasileira”, explica Marta, que, além da linguagem atravancada típica de jogadores em final de partida, tinha o efeito da noite virada na cabeça. Só depois de 24 horas correndo atrás da atleta é que ela parou e, por 12 minutos, conversou com a reportagem da Tpm.

No Brasil, a camisa 10 da seleção pôs no peito a medalha de ouro dos Jogos Pan-Americanos de Santo Domingo (2003) e do Rio de Janeiro (2007), e a de prata na Olimpíada de Atenas (2004) e na Copa do Mundo feminina (2007), num jogo em que Marta perdeu um pênalti – fazendo a mãe desmaiar na sala de casa. O sobrado de quatro quartos foi a filha quem lhe deu. Dizem que, entre compra, demolição e construção, desembolsou R$ 200 mil. Os irmãos circulam de carros novos: José, na caminhonete, vende peixe e faz carreto; o Fiat Uno ainda sem placa de Waldir, locutor da rádio da cidade, é o segundo que Marta dá a ele: “Um ele bateu, bagaçou. E ela disse pro irmão: ‘Vou dar a segunda chance, mas é a última’”, conta a mãe, de 62 anos. Enquanto fala da filha, dona Tereza folheia as Tpm dadas a ela, que só consegue ler figuras – mas sabe como ninguém contar a história da melhor jogadora de futebol do mundo.

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