Um drible no destino

por Carol Sganzerla
Tpm #92

A Tpm foi à cidade natal de Marta para revelar quem é a número 1 do futebol mundial

Não ficou um em pé pra contar história, mas a décima vaquejada de Dois Riachos, tradicional festa nordestina, vai ficar para a história da cidade alagoana. “Diz que Marta vem” não saía da boca do povo na véspera. E o que mais se faz por lá é falar. Na cidade de uma rua principal, nenhum cinema nem sinal de celular, resta ao povo prosear. O dia da festa então amanhece na cidade da melhor jogadora de futebol do mundo. A própria chega de Maceió, onde acaba de comprar um apartamento, em sua Mitsubishi L200 vermelha, seguida por outro carro montado de amigas. Farra à vista. “Tô chegando, vamos falar mais tarde”, dribla a atleta, de óculos escuros, arredia à reportagem da Tpm. Ela adentra a casa da mãe, dona Tereza. Uma vizinha fofoca: “Agora ela está repaginada, fez alisamento e só anda de chapéu”.

O dia da festa então anoitece. No parque de chão de lama e cheiro de estrume, o locutor disputa a atenção de mais de 20 mil pessoas com os Cavaleiros do Forró. No camarote, a disputa é pelos sorrisos de Marta. Ela posa pra foto, outra, mais uma. Dá um gole na cerveja e dança com as amigas de chapéu vermelho e bota de caubói. Dá mais um autógrafo e cumprimenta a prefeita.

Um morador dá a dica para ganhar a confiança da entrevistada: “Faça amizade com as amigas, mas não chegue perto demais que Marta tem ciúmes das menina dela”. Um gole de whisky e volta pra roda de amigas. São muitas: de infância, de bola, de Belo Horizonte, Rio, Salvador. Marta não gosta de ficar sozinha. Adora uma bagunça, um pagode, estar rodeada de gente conhecida. Caso contrário, não se sente à vontade, se fecha e desvia o olhar. É raro aparecer em Dois Riachos sem as amigas de fora – o que provoca ciúmes nas companheiras de infância. Uma delas, Inês Rocha Corrêa, 25, solta: “Me sinto melhor quando ela tá lá, porque quando tá aqui é muito dada. Sai muito, tenho medo porque bebe demais. Ela diz: ‘Mas tô de férias’. Eu digo: ‘Mas não é assim.’”.

O arrasta-pé segue ao ritmo da chuva que desaba. Quando o aguaceiro aperta fica apertado também o camarote de estrutura instável. “Vou-me embora, isso aqui tá perigoso, vai cair, minha mãe tá aqui”, diz Marta, sem largar o copo de whisky – o quinto da noite. Dona Tereza nem se abala. Seus olhos miram o show, mas o que ela vê são cenas do passado, quando Marta ainda estava agarrada à sua saia, sonhando em ser jogadora de futebol. Dizia na época: “Deixe de sonhar, nóis não tem condição pra isso”. Marta não dava bola para a mãe. Respondia com certeza: “A senhora vai ver”. A promessa da filha se confirma na festa sertaneja: Marta sobe no palco para ser ovacionada como a rainha do futebol. “Ela diz que tá sonhando ainda”, acrescenta a mãe.

O dia depois da festa amanhece. Às “doze” do domingo Marta só tinha trocado as botas por chinelos de dedo. Festeira, não pregou o olho desde a vaquejada e se mandou com as amigas para o povoado Pai Mané, ao lado de Dois Riachos, coincidência ou não, a casa de seu pai. Audálio Ferreira da Silva, figura conversadeira de 60 anos, mora há seis meses no terreno que a filha comprou para ele. Não se viam havia dois anos. “Os desejos de ver é muito, mas ela só enfrenta mais a casa da mãe. Marta sabe que toda a vida teve um pai não forte, mas direito e honesto. Ela é meio pesadinha comigo porque às vezes eu repreendia. Nunca fui de um bem grosseiro, mas nunca parava essa língua de dizer como era o jeito das coisas”, lembra o velho, que divide os dois cômodos da casa com a terceira mulher, Francisca, 34, e quatro filhos.

Seu Audálio conta que a filha sentiu a saída dele de casa: “Não foi pelas minhas malandragens, faltou amor”. Marta tinha pouco mais de 1 ano. Quando crescida, viu o primogênito, José, tomar as rédeas de pai. Era o dia inteiro irmão correndo atrás de irmã. Futebol não era coisa para mulher.

O destino traçou que Marta Vieira da Silva, 23 anos, fosse eleita três vezes pela Fifa a melhor jogadora de futebol do mundo (2006, 2007 e 2008), mas até lá previu linhas tortuosas. Nascida em Dois Riachos, interior de Alagoas, a 188 quilômetros de Maceió, a cidade tem 11 mil habitantes e está entre os 200 municípios brasileiros com o menor Índice de Desenvolvimento Humano. A mirradinha dos irmãos José, 34, Ângela, 31, e Waldir, 29, vendia geladinho, carroçava na feira, matava rolinha para comer e aula para bater bola debaixo da ponte. O professor de educação física José Júlio de Freitas, o Tota, 52, já via Marta pelas ruas antes mesmo de ensiná-la a driblar: “Ela ia pra casa de uma família que dava comida pra ela e, quando tinha feira, pegava os grãos de feijão do chão”, conta.

Foi Tota quem mostrou os fundamentos do futebol para Marta. Começou quando ela tinha 9 anos, até os 12. Em Santana do Ipanema, cidade a 18 quilômetros de Dois Riachos, onde a menina competia na Associação Atlética Banco do Brasil, foram muitos os episódios de preconceito. “Lembro uma vez que Marta começou a driblar, os cabelinho amarrado todo doidão, aí chegou um cara e disse: ‘Isso aí não é mulher não. Deixe que quando ela sair vou lá pro banheiro saber.’. Eu disse: ‘Epa, você não vai não’”, relata o professor, que até hoje não viu a aluna jogar em um estádio. Sonha com esse dia, que talvez chegue agora, já que a atleta, convidada pelo Santos a disputar a primeira Taça Libertadores feminina, fica até dezembro no Brasil.

Não tinha um olhar sequer que não se espantasse com o fato de Marta só se enturmar com meninos. O falatório corria, “o pessoal chamava ela de macho-fêmea”, solta um vizinho. Quando batia bola com as meninas, era de cara feia. A amiga Inês implicava: “Eu dizia: ‘É feio mulé brincá com os menino’. E Marta falava: ‘É não, eu gosto’. Aí ficava jogando e eles acabava dando tapinha nela, que saía chorando, mas não levava desaforo pra casa. E não mudou nada, continua invocadinha, palavrão então.”, entrega a única amiga a acompanhá-la até a rodoviária na sua ida para o Rio de Janeiro nove anos atrás, aos 14, quando foi tentar a sorte no Vasco.

Na capital fluminense, quem ficou responsável por Marta foi seu conterrâneo Marco Pires, o Marcão. Ele conta que, na primeira peneira vascaína, a menina nem chuteira tinha. E estufa o peito para dizer que, sem sua ajuda, ela estaria no anonimato. A mágoa por Marta nunca tê-lo procurado é muita. “Se eu falar pra você que não sinto é mentira. Eu acho que é o empresário [Fabiano Farah, o mesmo de Ronaldo] que não deixa ela falar comigo. Se não trago Marta pro Rio ela estava na rua bebendo cachaça e jogando com homem”, desabafa. Marta ficou nove meses morando com a família de Marcão até que um desentendimento com sua esposa a fez ir embora. “Uma noite ela foi para uma praia e chegou toda embriagada, queria sentar molhada no sofá e teve uma discussão com a minha mulher”, relata.

Depois disso a menina foi morar no alojamento do Vasco, onde pegou amizade com ex-jogadoras da seleção como Sissi e Pretinha. Helena Pacheco, ex-técnica do time, conta que a alagoana falava pouco e era rebelde. “Mas ela sabia ouvir e isso é muito importante”, recorda. Foi para Helena que a jogadora ligou quando recebeu o contrato em inglês do time sueco Umeå IK, cinco anos atrás. “Checamos para ver se a equipe existia, porque acontece de ter muita prostituição por trás. Falei pra ela: ‘Nunca largue seu passaporte e não coloque o dinheiro na frente, jogue primeiro’.”

Fome de gol
Marta jogou, carimbou o passaporte e ganhou dinheiro. Virou ídolo na Suécia e foi artilheira do Umeå IK, que com ela ganhou quatro vezes o campeonato nacional – em 111 jogos marcou 103 gols. Após cinco anos no país, no início de 2009 assinou contrato com o americano Los Angeles Sol, no qual também foi artilheira nessa temporada da WPS (Women’s Professional Soccer) com dez gols em 19 jogos. Bastaram poucas partidas para a meio-atacante chamar a atenção de um fabricante e ter seu corpo modelado numa boneca. “O objetivo da minha vida sempre foi ganhar o mundo e ser uma das melhores. Mesmo tendo conquistado títulos individuais, quero um com a seleção brasileira”, explica Marta, que, além da linguagem atravancada típica de jogadores em final de partida, tinha o efeito da noite virada na cabeça. Só depois de 24 horas correndo atrás da atleta é que ela parou e, por 12 minutos, conversou com a reportagem da Tpm.

No Brasil, a camisa 10 da seleção pôs no peito a medalha de ouro dos Jogos Pan-Americanos de Santo Domingo (2003) e do Rio de Janeiro (2007), e a de prata na Olimpíada de Atenas (2004) e na Copa do Mundo feminina (2007), num jogo em que Marta perdeu um pênalti – fazendo a mãe desmaiar na sala de casa. O sobrado de quatro quartos foi a filha quem lhe deu. Dizem que, entre compra, demolição e construção, desembolsou R$ 200 mil. Os irmãos circulam de carros novos: José, na caminhonete, vende peixe e faz carreto; o Fiat Uno ainda sem placa de Waldir, locutor da rádio da cidade, é o segundo que Marta dá a ele: “Um ele bateu, bagaçou. E ela disse pro irmão: ‘Vou dar a segunda chance, mas é a última’”, conta a mãe, de 62 anos. Enquanto fala da filha, dona Tereza folheia as Tpm dadas a ela, que só consegue ler figuras – mas sabe como ninguém contar a história da melhor jogadora de futebol do mundo.

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