Inicialmente, achei a morte do Wando uma ironia divina de um certo mau gosto...
Quando fiz a escolha de me especializar em Medicina Intensiva, fui levada, majoritariamente, pelo desafio de ter que desenvolver raciocínios elaborados sob pressão e pela oportunidade de ver o resultado imediato (positivo ou ineficaz) das condutas que tomei em situações de urgência e/ou emergência. Pensando bem, minha escolha não podia ter sido muito diferente. Eu sempre fui a menininha que se esforçava homericamente até conseguir fazer algo quando diziam que eu nunca seria capaz. De subir em uma árvore alta a ser médica voluntária no Haiti, depois do terremoto, passando por "conquistar" o menino mais bonito do colégio, mesmo sem ser a típica bonitinha. Quer me motivar a fazer algo? Diga que não tem jeito e que não vou conseguir. Sempre fui teimosa mesmo, admito. Benção e maldição, ao mesmo tempo. Mas preciso confessar que, mesmo ciente da escolha de especialidade que eu havia feito, não pensei no quanto isso implicaria em lidar com a morte.
Só nessa semana, eu já tive que dar a notícia de dois óbitos e informar uma família de que não havia mais o que oferecer, em termos curativos, para aquele parente que se encontrava deitado lá na UTI e que o mais prudente seria começar a pensar em priorizar medidas de conforto. E ainda é quarta-feira. Que fique claro: isto não é um lamento. No começo, era bastante difícil saber a hora de parar e aceitar que eu não era obstáculo algum se a hora da morte realmente tivesse chegado. Perdi as contas de quantas vezes precisei, depois de comunicar óbitos às famílias e ver o sofrimento gerado, me trancar num banheiro por alguns minutos, sentar no chão, com o rosto entre as mãos, e derramar algumas lágrimas repensando o que eu poderia ter feito de diferente para evitar aquilo. Com o tempo, desenvolvi inúmeros mecanismos de defesa vitais para a minha sobrevivência na carreira. O que não quer dizer que os questionamentos sobre a morte, seu significado e sua inevitabilidade não ocorram mais. A diferença é que, hoje em dia, considero uma honra tê-los. E, em decorrência disso, ter a chance de guiar as escolhas da minha própria vida de acordo com eles.
Na verdade, fiz essa introdução toda para contar que hoje cedinho, pela manhã, tomei conhecimento da morte do Wando. Inicialmente achei uma ironia divina de um certo mau gosto o fato de alguém que passou a vida inteira fazendo odes ao romantismo e paixões ardentes sair do plano terreno em consequência de um poderoso infarto. Do coração (calma, não foi redundância... existem infartos de outros órgãos). Cheguei até a comentar no Twitter que isso era algo como um urologista morrer de câncer de próstata. Passei o dia pensando nisso. Até que deixei de enxergar ironia no ocorrido. Wando sucumbiu à força e à magnitude daquele órgão que pautou toda sua vida. Das letras de músicas aos affairs que as inspiravam. Da devoção às mulheres à dor de um amor não correspondido. Wando deve ter partido em paz, pois não podia ter tido uma causa mortis mais adequada e respeitável em seu atestado de óbito.
Assim como insetos que seguem absolutamente encantados e hipnotizados em direção a fontes de luz e ficam as rodeando, atraídos, até caírem no chão exaustos (mas provavelmente realizados) em decorrência do calor irradiado e do cansaço, eu gosto de pensar que a gente também deve passar a vida sem poupar esforços e energia para ir em direção daquilo que vai dar sentido à nossa existência. Seja o que for. E mesmo que com passos tímidos, a princípio. Se tivermos sorte, vai ser a mesma coisa que vai levar à nossa despedida desse mundo, na hora certa e sem angústias.
(meu Twitter: @mperroni)