Estou com vontade de deitar na pedra, com fome de você e sede do mar. Tanta coisa boa QUE comemos juntos, como os limões-sicilianos que você engoliu inteiros.
Oi, gato,
Te escrevo do avião. Abaixo, o mar infinito e, atrás, a ilha onde eu te deixei. Quando cheguei em Palermo, me enfiei em um táxi que me levou direto para o interior, onde me esperava a Paola, a mulher que por muitos anos foi a mais linda do mundo para mim, com os cabelos ondulados e a boca que era um travesseiro onde queria me encostar sempre. Tinha festa na fazenda e, assim que cheguei, alguém me deu uma alcachofra inteira assada nas cinzas da churrasqueira que deixou meus dedos pretos e um copo de plástico com vinho. Paola estava cantando músicas italianas dos anos 80.
É gostoso ficar olhando para o azul infinito pela janela do avião e pensar nessa última semana. Penso primeiro na sua cara de surpresa ao ver que eu era uma mulher americana e não aquele alemão gordo que você estava convicto que eu seria quando veio me buscar na balsa que me trouxe de Palermo. Lembro da tarde que passamos a recolher sal nas pedras do lado da piscina natural, toda aquela água cristalina e cheia de água-vivas, eu e você raspando os cristais da pedra com a casca do pistache. Vou ficar um tempo com as marcas das medusas na minha coxa, e toda vez que vejo as cicatrizes vou lembrar de você na água, me guiando pelas cavernas de água transparente, e isso vai me deixar feliz. Espero que você também lembre dessa mesma felicidade toda vez que deixar uma marca no corpo de uma mulher.
Imagino que seja um tanto ridículo escrever uma carta sobre uma semana numa ilha selvagem na Itália e não falar da comida. E tanta coisa boa que comemos juntos! Como quando você passou a tarde toda abrindo os 30 ouriços com uma tesourinha para me fazer um linguine, tirando as ovas com a maior ternura; o risoto de flores e morangos selvagens que você comeu frio de café da manhã no dia seguinte; você deitado na rede descascando as favas sem fim; as saladas com as folhas amargas e quase pulando do prato de tão vivas; os chocolates com folhas de chá e caramelo salgado; o kefir com o leite da vaca do vizinho; os ovos mexidos com as gemas vermelhas; os zucchinis finos e firmes de quase um metro; o azeite de Puglia na latinha prateada na mesa; os limões-sicilianos que você comeu inteiros, igual a uma maçã, cuspindo as sementes e engolindo a casca; os tomatinhos no forno com farofa de pão e raspinhas de limão; a granita de café; o gelato de pistache; as nossas facas; a estreia da panela que faz massa para dez pessoas; eu com meu balde de café americano e você, com o expresso curtinho; e sua cara de surpresa, sempre, ao descobrir que uma americana sabe pelo menos fazer uma pasta de zucchini, e o meu amor por esse italiano com sotaque cantado de Vêneto que passou uma semana abrindo a terra e o oceano para colocar um prato na mesa para mim.
Estou com vontade de deitar na pedra quente no sol do meio-dia, com fome de você e sede do mar.
Saudade já, mas isso você sabe.
Autumn
Autumn Sonnichsen, 31 anos, nasceu na Califónia, mas tem o coração brasileiro. É fotógrafa, cozinheira e escritora.