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por Ariane Abdallah

Talvez você nunca tenha ouvido falar em escalpelamento, mas essas mulheres dão voz à causa

Você já ouviu falar em escalpelamento? Então prepare-se para conhecer uma realidade chocante – e não tão distante assim. Socorro, Rosinete, Cleonice e Maria Trindade tiveram seus rostos transformados depois de enroscar o cabelo no motor de barcos de pescaria, no Macapá (AP) e viraram porta-vozes de um acidente mais frequente do que se imagina

Com a globalização, dizem que todo mundo fica sabendo de tudo, mesmo do que acontece do outro lado do mundo. Mas não é bem assim. Ou você, que sempre viveu em cidade grande, já ouviu alguma vez na vida a palavra escalpelamento? Faz ideia do que é isso? Para nós, que moramos em grandes centros urbanos e associamos barco a férias e cabelo mais a salão de beleza do que a qualquer outra coisa, a resposta provavelmente é não. Até porque algumas notícias não têm passagem livre pela mídia. Então prepare-se, porque o assunto é sério – e precisa ter estômago para encarar.

Trata-se de um acidente até pouco tempo recorrente no Norte do Brasil, causado por motores de barcos de pescaria. Em alguns trajetos, os longos cabelos de meninas e mulheres trasportadas no barco enroscam nos motores. O que acontece a partir daí é rápido e devastador. Às vezes, elas perdem apenas parte do cabelo; outras vezes, todo o couro cabeludo, e partes do corpo, como as orelhas, são decapitados. Sobre a dor do impacto, as vítimas não sabem dizer, pois o choque é tão grande que algumas apagam nessa hora.

Quando voltam a si, estão com o rosto desfigurado. Por isso, muitas delas – algumas abandonadas até pela própria família, no desespero da falta de recursos financeiros para tratar os danos – não saem mais de casa. É comum que passem anos sem ter coragem de se apresentar aos outros. Não acreditam que podem arrumar namorado, se sentirem bonitas ou serem aceitas pela sociedade. Sem contar os problemas físicos que desenvolvem, como uma dor de cabeça intensa cada vez que molham a cabeça.

De cabeça erguida
A reportagem da Tpm foi até Macapá, capital do Amapá, e conheceu cinco mulheres escalpeladas. Elas estavam sorridentes, usavam peruca e contavam suas histórias de cabeça erguida. Isso porque, há dois anos, Maria do Socorro Damasceno fundou a Associação de Mulheres Ribeirinhas Vítimas de Escalpelamento da Amazônia, com o apoio de Ester de Paula Araújo, secretária extraordinária de Políticas Públicas para as Mulheres do Amapá. Socorro, que é também presidente do grupo, tem 27 anos, foi escalpelada aos 7 e, na ocasião, abandonada pelos pais num hospital, onde viveu até a adolescência.

“Minha vida mudou muito depois da associação. Agora eu estudo, faço coisas para mim”, conta ela, que já reuniu 89 pessoas com histórias semelhantes. “Gostaria que acreditassem na capacidade dessas vítimas. Elas podem fazer coisas. Apenas duas mulheres escalpeladas estão reinseridas no mercado de trabalho. A associação, o trabalho, servem para a gente superar o trauma. Mas o acidente é uma marca que vai ficar para sempre”, afirma Socorro.

Além de promover cursos, palestras e oficinas de perucas, a Associação devolveu a autoestima dessas mulheres. Hoje, elas namoram, frequentam lugares públicos e lutam para que casos como os seus deixem de existir. Uma grande vitória foi a implementação da Lei 11.970, de 6 de julho de 2009, que obriga os barcos a terem uma proteção no motor.

Antes da associação, não havia registros oficiais sobre o número de escalpelamentos ocorridos – segundo a Agência Brasil, foram 244 casos entre 2003 e 2008. Mas, em 2008, duas pessoas foram acidentadas e, este ano, já ocorreram três casos no Amapá (com uma menina de 5 anos, uma adolescente e uma mulher de 22), segundo Socorro. O governo do Amapá lançou a campanha Um Barco Legal em agosto deste ano, mês de Enfrentamento do Escalpelamento (para ver notícias relacionadas ao evento acesse  www.amapa.gov.br). Com todo esse movimento, não deve demorar para que essas mulheres atinjam o que pretendem: zerar a estatística da qual fazem parte.

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