Era uma noite fria de julho, quando meu pai e eu, sozinhos em casa, tivemos que correr para o pronto-socorro.
Lembro daquela noite com nítida perfeição. Lembro, por exemplo, que fazia muito frio, e que, quando cheguei em casa, meu pai estava lá. Era sábado, e eu tinha 22 anos. Como nunca gostei muito de sair para grandes e prolongadas farras, nem mesmo aos 22 anos, tinha escolhido ficar em casa, lendo e vendo TV – até hoje, meu sábado à noite ideal.
Lembro também que o resto da tropa – matriarca, duas irmãs farristas e um irmão adolescente – havia cedido aos encantos da cidade, deixando meu pai em casa. Quando anunciei minha programação caseira, o velho reagiu como de costume: “Bilu, você é das minhas”. Sem falar muito, porque nosso relacionamento era desses que permitiam o silêncio sem gerar constrangimento, abrimos uma garrafa de vinho e lá ficamos, os dois, lendo na sala.
Tudo parecia muito sossegadamente perfeito, até que, depois de uma hora, ou mais, resolvi ir ao banheiro ver por que meus olhos coçavam sem parar. Quase em pânico, notei que um deles, talvez o esquerdo, embora esse tipo de precisão pouco acrescente à história, estava extremamente vermelho. Imediatamente recordei ter lido, naquela mesma semana, um artigo sobre sintomas que podem anunciar a chegada de um derrame.
E entendi que nada, nem mesmo o casual encontro com um texto sem graça, perdido no meio do caderno feminino do jornal de domingo, acontecia por acaso. Aquele artigo estava destinado a salvar minha vida: “olhos vermelhos” constava na lista de 30 (ou mais) itens.
Como herdei de meu pai uma certa propensão a exagerar sintomas e achar que uma abominável doença está sempre a caminho, corri à sala e anunciei a calamidade. Ele tirou os óculos, checou com atenção meus olhos e, orientado por mais de 60 anos de hipocondria, disse: “Vamos para o pronto-socorro”. Se minha mãe estivesse em casa, certamente impediria nossa fuga. Como éramos apenas ele e eu, o pronto-socorro pareceu uma idéia bastante coerente.
Chegando lá, meu pai pediu o oftalmologista de plantão, e pareceu muito bem impressionado ao saber que o nome do plantonista era Arnaldo – e o dele também. Achamos aquela uma coincidência fantástica: sabíamos que havíamos tomado a atitude correta e estávamos no lugar certo.
Hipocondria emocional
Depois de preencher fichas, mostrar carteirinhas, preencher mais fichas e mostrar boletos, fomos convidados a entrar. A essa altura, alguns outros sintomas do derrame já haviam se manifestado: sonolência, uma certa dormência no braço esquerdo (o que me fez pensar que poderia ser um enfarte e não um derrame, e que um oftalmo pouco ajudaria nesse caso) e um leve, quase imperceptível, tremor pelo corpo.
A consulta foi demorada, entre outras coisas, porque meu pai descobriu que o médico, além de se chamar Arnaldo, gostava de corridas de cavalo – uma das grandes paixões do meu velho. E também, naturalmente, porque consultas com hipocondríacos são sempre demoradas. Depois de muito me examinar, o médico sentenciou: é uma leve irritação, causada por sujeira. Receitou um colírio (qualquer) e nos mandou para casa.
Sem fazer nenhum comentário sobre a avaliação simplista do profissional, passamos em uma farmácia, compramos o colírio e voltamos. No caminho, dentro do táxi, porque meu pai nunca dirigiu, conversamos sobre como dr. Arnaldo, o médico, era um sujeito gentil. Claro que, no fundo, queríamos dizer que o médico havia sido suficientemente gentil para não nos ridicularizar. A gentileza devia-se ao fato de ele não ter diagnosticado nossa hipocondria – pelo menos não em voz alta.
Chegando em casa, meu pai lembrou que havia na geladeira uma peça de lagarto, que ele podia esquentar e me servir com mango chutney e pimenta, um de nossos pratos prediletos. Já invadida pela fome dos sobreviventes, aceitei. Assim passamos o sábado: na mesa da cozinha, comendo lagarto e tomando vinho, enquanto o resto da família se perdia pelo sábado na cidade.
Meu pai morreu no dia 13 de julho de 2001, 11 anos depois desse nosso sábado perfeito. Hoje, sei que ele nunca acreditou na hipótese do derrame e que estava jogando meu jogo apenas para fazer com que eu me sentisse protegida. Assim, inaugurou esse gosto em mim, me fazendo ver que a vida fica bem mais leve e divertida quando encontramos aquela pessoa que vai dar bola para nossas loucuras. Em uma manhã gelada de inverno, perdi meu cúmplice.
Mas, desde então – e ele adoraria saber disso –, nunca mais fiquei um dia sem a companhia de uma mulher que desse bola para minhas paranóias. Porque, no fundo, não passamos de um amontoado de saudáveis e criativas loucuras. Com sorte, topamos por aí com quem as perceba e, mais do que isso, as saboreie. Como meu pai e eu fizemos, naquela noite fria de julho, em 1992.