por Camila Alam
Tpm #142

Estilista da Neon fala sobre drogas, crise na moda e como faz pra se manter livre de venenos físicos e mentais

Criadora da Neon, uma das marcas mais relevantes da moda nacional, Rita Comparato fechou as portas do ateliê e mergulhou num processo de desintoxicação. Aos 35 anos, ela conversou com a Tpm sobre mercado, espiritualidade, drogas e sobre como ficou a parceria com o sócio, Dudu Bertholini. “Estava estressada, nervosa, com raiva 24 horas por dia”

Foi na casa onde nasceu e cresceu, em São Paulo, que a modelista Rita Comparato recebeu a Tpm para duas sessões de conversa, regadas a café e macarons feitos por sua mãe, Alice. Na ampla residência de classe média alta, no Alto de Pinheiros, o silêncio é cortado por alguns poucos barulhos – a panela de pressão da casa vizinha, os passarinhos ou um eventual latido de um dos três cães (dois vira-latas, Arlindo e Athos, e um whippet, Grilo). Foi nesse aconchego familiar que Rita optou por voltar a morar depois de um período de muita mudança: a Neon, marca que criou em 2003 ao lado do estilista Dudu Bertholini e que alcançou enorme sucesso no cenário da moda brasileira, fechou as portas do seu ateliê depois de dez anos de atividade. Além disso, o fim de um namoro de dois anos (com Fralda, ex-baixista do grupo Ratos de Porão), a morte de uma figura querida – a estilista Clô Orozco, que se suicidou em março de 2013 –, a decisão de dar fim a uma dependência química e uma viagem à Índia fizeram Rita repensar a maneira como vinha conduzindo a vida. Pouco mais de um ano depois do início de um processo de transformação, ela está como a casa em que mora: tranquila. “Eu abracei o mundo muito rápido, agora estou querendo construir um solo, uma base que seja sólida. Essas coisas demoram”, diz, com a serenidade que aprendeu a cultivar ao longos dos 35 anos, sobretudo na nova fase.

Foi influenciada pelo universo familiar e pela mãe, criadora da marca Acessórios Modernos (referência no mercado entre os anos 80 e 90), que Rita cursou moda na Faculdade Santa Marcelina, onde se apaixonou pela modelagem. Aos 18 anos, ela e Dudu deram início à parceria que culminou na Neon, criada quase por acaso, na garagem de sua casa, a mesma que hoje guarda dezenas de caixas com material do ateliê, modelos antigos, araras com peças esvoaçantes – e muitos metros de tecidos estampadíssimos, marca registrada da dupla.

O primeiro desfile aconteceu na sala da casa do sócio. Depois, passou a figurar no calendário oficial do São Paulo Fashion Week. Numa época em que o minimalismo reinava, Rita e Dudu jogaram cor na passarela com um estilo único. A dupla viajou o mundo atrás de inspiração, foi convidada a dirigir o estilo de outra grande marca, a Cori, e fez barulho com seus desfiles (em um deles, em 2010, uma modelo nua surgiu na passarela, no Parque da Água Branca; soube-se depois que os pelos pubianos à mostra não eram da moça: ela usava um tapa-sexo coberto de cabelos).

Carnaval

Enquanto cuidava do estilo, Rita também respondia por vendas, finanças, administração, funcionários, dezenas de parceiros... e dívidas. “São cabeças completamente diferentes, a de um estilista e a de um administrador”, avalia ela. “Finge-se muito bem que o mundo da moda tá superbem quando não tá.” Além de muito trabalho, ela se viu numa espiral que envolvia festas intermináveis, noites sem dormir, álcool e drogas.

Foi quando resolveu parar tudo e viajar. Depois de um mês na Índia, percebeu que, se continuasse naquele ritmo, não iria aguentar. A (re)descoberta pessoal, o fechamento do ateliê e a decisão de se manter sóbria levaram a modelista a outro caminho, onde a prioridade é a pessoa física. “Hoje quero cuidar bem de mim.” Apesar de ainda tocar algumas parcerias com o ex-sócio – alguém que, como ela define, “hoje fala uma língua diferente” –, Rita organiza seu acervo, cria peças exclusivas para noivas e ainda pôs em prática um sonho antigo: trabalhar com Carnaval. Ao lado do carnavalesco Troy Orth, acompanhou todo o processo de criação da escola Mancha Verde, dos croquis à avenida. Vice-campeã, a escola voltou ao grupo especial.

Entre plumas, paetês, isopor e trabalho duro, percebeu que talvez ainda não seja a hora de se doar completamente ao trabalho. “Eu vivia de um veneno. Nervosa, estressada e com raiva 24 horas por dia. Agora vejo que você para de evoluir quando para de prestar atenção em você. Quero evitar aquela Rita dentro de mim.”

TpmVocê encerrou uma marca que fez sucesso na moda brasileira da última década, a Neon. O que deu errado?

Rita Comparatto. Na verdade a marca continua existindo. No Brasil não se fecha firma. O ateliê acabou, mas vamos continuar fazendo parcerias. Em dez anos mudou muito o mercado. A gente começou bebê de tudo, com 18 anos, na faculdade. Nunca planejou ter uma marca, foi fazendo e começou a crescer. Aí tem que vender, fazer estampa, rodar 100 metros. Você deixa de ser artesanal, contrata funcionário, faz um negócio girar. Eu, que não tinha feito administração, passei por um curso intensivo.

Em que momento você percebeu que a Neon era grande? A gente ficou grande em imagem, mas sempre fomos uma pequena empresa, não chegamos a ter mais de 15 funcionários. Era grande o suficiente pra eu dar conta, da criação ao financeiro. Sou modelista, então até os primeiros cinco anos eu fazia todas as modelagens. Fazia tudo mesmo, de cortar tecido até levar na costureira. A gente começou aqui, na garagem da minha casa. Com o tempo, comecei a gerenciar o administrativo e o financeiro, o que é difícil. Um erro que você comete fica bem grande em dois meses. São cabeças completamente diferentes, a de um estilista e a de um administrador. Tem que ter estrutura emocional pra aguentar.

Por quê? Porque você começa uma coleção antes de vender. E não sabe se vai vender ou não, é uma aposta. Você tem que bancar essa aposta. Vai ter que aportar uma grande quantia de dinheiro, que com certeza sua empresa não vai ter, porque é algo que você tá prospectando. Se não tiver retorno, não teve. Tem gente que coloca a casa, o que tiver. É aposta. Eu coloquei meu corpo e minha alma, literalmente.

E teve retorno? Acho que tive. Eu entrei muito jovem, não tive muito tempo de pensar no que eu queria da vida. Entrei num sonho e comecei a lutar por ele. Quando eu vi, já tinha meu ateliê, com cortador, costureira. Aos 20 anos.

Mas você ganhou dinheiro? Não, a Neon nunca deu dinheiro. A gente viajou o mundo, mas ganhar dinheiro, não. Deu pra gastar dinheiro! Geralmente quem é “próprio otário”, como eu chamo quem é proprietário, não recebe tanto. No fim do mês tem que ver as prioridades, pagar funcionários. Voltei pra casa dos meus pais porque não tenho seguro-desemprego, você sai com uma mão na frente e outra atrás. Tem meses que consegue tirar alguma coisa, tem meses que não.

Você atribui o fechamento da marca a uma crise no mercado ou à má administração? É uma série de fatores. De qualquer maneira, o mercado mudou. A gente nunca teve capital de giro, um sócio investidor, coisas que qualquer empresa precisa ter. Mas a gente foi indo. Chegou uma hora que eu não tava feliz, era muita coisa pra administrar. Um caixa negativo, lidar com sócio, advogados, administração. Eu não conseguia mais criar. Comecei a ficar meio revoltada, meio com raiva 24 horas por dia. Aí resolvi ir pra Índia em 2012. Na volta, terminei um namoro e a Neon, tudo junto. Depois da Índia nunca mais fui a mesma.

Por quê? Lá é todo um outro tempo, as pessoas tratam os outros como elas querem ser tratadas. Não é dinheiro que prevalece. Fora a quantidade de cores e tecidos que eu vi, e pessoas lindas. Daí fui num guru e ele me falou que eu ia morrer com 84 anos. Pensei: “Pô, tô com 33 ainda”. Depois a Clô [Orozco] morreu e isso mexeu muito comigo. Ela se matou, também passava por dificuldade. Uma matéria na época dizia isso: finge-se muito bem que o mundo da moda está super- bem, quando não está. Muitos estilistas cuidam do financeiro apesar de não conseguirem. Eu senti que eu tava indo pro mesmo caminho.

Que caminho? Depressão? A Clô viveu pra empresa dela. Quando acabou, ficou sem chão, eu acho. Não é fácil dormir com uma dívida nos ombros. Cada vez mais há uma preocupação menor com qualidade, tem que ser mais barato. E pra ser barato tem que ser grande, ter muito produto. Tinha essa somatória de coisas, esse cansaço.

E por que exatamente a Índia mudou tudo? Quando o guru falou que eu ia morrer com 84 anos, pensei que não precisava mais ficar tão presa a isso, que eu não tava feliz. Foi um sonho, foi legal, mas tava custando a minha saúde e a minha felicidade. Acho que dava pra viver mais tranquila. Tô apostando numa coisa que ainda está em construção, mas que vai me fazer mais feliz. Eu era refém de uma coisa da qual hoje em dia eu não sou mais. Se continuasse, seria por ego, pelas clientes, pelos funcionários. Mas nem eles me aguentavam mais. Tava tudo muito difícil.

Como é o nome desse guru indiano? Não lembro [risos]!

Você não lembra o nome do guru que salvou sua vida? Não sei se ele salvou minha vida... Mas ele acertou muita coisa sobre mim. Bom, ele falou que vou casar entre 2013 e 2015. Se eu não casar até 2015, foi tudo uma furada [risos].

Quanto tempo durou a viagem? Foi um mês atravessando a Índia. Fui atrás de artesanato, mas parei nos lugares mais sagrados, onde estão os costumes. Fujo um pouco de cidades grandes. Agora vou pro Vietnã com uma amiga e a Bianca [Comparato, atriz, que é sua prima].

Como é sua relação com espiritualidade, religião? Minha mãe é católica e meu pai é judeu. Nunca fiz comunhão nem nada, mas acredito que há mais coisas entre o céu e a terra, acredito em energia. Procuro não fazer pros outros o que não quero pra mim. Sempre tive isso, mas na Índia vi o quanto eu tava presa... na Neon, nos problemas, e a vida passando.

Você tinha consciência de que não estava bem? Não, a coisa vai num crescendo. O mundo da moda é isso, então parecia normal. Agora vejo que era insano. Não sei onde eu ia parar. Estresse, empresa, drogas, muita coisa me tirando do centro.

Quais drogas? Prefiro não falar disso.

Você não acha que falando pode ajudar outras pessoas? Acho que dependência química tem muito preconceito... Eu não vou ajudar as pessoas falando sobre isso. Muita gente famosa se abriu, mas não chega a lugar nenhum nem ajuda.

Não dá pra dizer que substâncias usou? Que substâncias? Todas. Menos crack.

E você teve ajuda? Foi tudo com ajuda da minha família. E psicólogo, tem que ter ajuda específica. Descobri de verdade quando respondi um questionário e vi que quase todas as respostas eram “sim”. A coisa vai progredindo. É assim com bebida: você vai se cercando disso e achando normal. Hoje enxergo que não era normal. As pessoas me dizem: “Nossa, não dava pra entender o que você falava”.

 

"Quando você muda a rotina, não evita só hábitos e pessoas. Evita a maneira como pensava"

 

Teve alguma situação que te deixou mais alerta? Ter que fechar a Neon, voltar pra casa dos meus pais.

Voltar pra casa dos pais é difícil? Na verdade, é fácil: tá tudo pronto, roupa lavada, cama sempre feita, despensa cheia, comida gostosa à mesa. O difícil é lidar com o sentimento de derrota, de voltar atrás. Mas nada acontece à toa nesta vida, se a gente procura aprender com as situações, não há passo pra trás. Estou caminhando. O problema é que sempre estamos apegados ao passado e presos no futuro, o que torna o presente muito angustiante. Só por hoje estou tentando ficar no presente.

Como foi o tratamento? Você topa falar? Ah, acho melhor não. Mas é aquilo que falei: o tratamento é mudar o jeito de pensar.

E a relação com os amigos, mudou muito? Demais. Tive que abdicar de tudo que me faz mal, evitar aquela Rita dentro de mim. Não conseguia ficar parada conversando com uma pessoa, agora consigo. Antes era cercada de gente, mas me sentia mais sozinha. São poucos amigos que ficaram, mas são pessoas com quem posso contar. Nunca joguei a culpa no outro, a gente é responsável pelo que cava. Quem usa drogas tá preenchendo vazio. Agora sou eu comigo mesma.

Hoje você não usa nada, nem álcool? Não.

Como fica a vida social? A vida continua, sou rueira. Na verdade, é bem louco viver o mundo sem drogas. São tantas questões a trabalhar... Mas percebo o quanto a sociedade é baseada nisso. Não há evento que não tenha bebida. As pessoas têm que se sentir à vontade comigo; e eu, com elas.

Tem gente que se incomoda por você estar careta? Sim, é uma transformação. Houve pessoas que ficaram e outras que não ficaram. E não faço questão das que não ficaram, a verdade é essa. Quando encontro, vejo que a pessoa tá na mesma, altos e baixos.

E se você está numa festa e percebe que as pessoas estão muito loucas? Eu procuro evitar, vou embora. É algo que não me pertence mais. Se eu tô confortável, fico. Se estou me divertindo, tem um papo legal, ok. Mas, geralmente, quando as pessoas estão usando ou bebendo, chega uma hora que não rola mais.

Você mudou fisicamente? Pratica esporte? Era sedentária, não fazia nada. Agora ando todos os dias, também porque gosto de pensar. Tô lendo o livro do Mandela, e ele acordava às 4 da manhã e andava 3 horas. Minha vida vem quando tô andando. Acordo às 7. Minha alimentação também melhorou, não era nada regrada.

 

"Não sou mais a Rita da Neon e isso tira um peso das costas"

 

Qual foi a mudança mais radical nesse processo? Acho que fé. Começar a apostar que tô fazendo o melhor, acreditar. Fé em mim. Eu só trabalhava, saía à noite, enchia a cara. Saía do ateliê e ia pra balada todo dia. Hoje a prioridade é cuidar bem de mim. Ver onde errei, onde acertei, procurar fazer o melhor. Todo mundo que faz qualquer coisa exageradamente não tá feliz. Você usa tudo isso pra se divertir, é uma fuga, é falso. Hoje consigo ver o quanto eu tava infeliz e assustada. Ainda tô longe de alguns sonhos, como ter uma família, mas tô mais perto do que antes. Não ia construir algo sólido naquele ritmo, com aqueles valores.

Você quer casar, ter filhos? Sim, tenho muita vontade. Agora sou uma pessoa com mais consciência pra ter filho. Deve ser a coisa mais difícil do mundo educar. Criar, dar os valores certos… só pode fazer quem tem certa maturidade. Não tenho ansiedade com isso, mas já mudou muita coisa. Fui no aniversário de 1 ano do meu sobrinho, que eu nem via antes. Fiquei pensando: há um ano ele nasceu, a Clô morreu, tanta coisa mudou.

Me conta mais da história da sua família. Você cresceu em São Paulo? Sim, nesta casa aqui. A mãe da minha mãe era uma figura incrível, foi a primeira mulher a fazer faculdade de direito no Brasil, tem esse peso para as mulheres de casa. A família do meu pai é toda de judeus, que vieram pra cá fugindo do Hitler. Minha tia nasceu no navio. Mais tarde, meu pai foi pra Alemanha e conheceu minha mãe lá, os dois cursando arquitetura. Voltaram apaixonados, mas ele era noivo de uma judia, já tava com casamento marcado, e ele teve que desmanchar com minha mãe. Mas se arrependeu e acabaram casando.

Como foi sua infância? Fui uma criança seminormal [risos]. Sempre tive cabelo chanel, sempre passei batom vermelho e sempre tive um cigarro enfiado na boca... Comecei a fumar com 13 anos.

Você tem uma irmã mais velha. Vocês são próximas? Depois que fechei a Neon, me aproximei da minha família. Ela me ajudou bastante, é médica. O Mathias, meu sobrinho, também nos aproxima.

O estilo é herança de família também? Você descreve mulheres fortes. E o negócio que a sua mãe abriu também foi pioneiro [Alice Comparato criou a marca Acessórios Modernos]. Não é só estilo, é personalidade. Minha família tem essa coisa de as mulheres imporem sua personalidade. Tenho só dois primos homens, o resto é tudo mulher. A vó Musa, que era irmã da minha avó, já criava as roupas dela e também tinha esse gosto étnico. Ia pro mercado de Salvador, comprava guias, fazia pulseiras com balangandãs, tinha um gosto super-refinado. Quanto à minha mãe, muitas questões da Neon se cruzam com a Acessórios. Ela também teve a marca por dez anos e fechou. Ela me ajudou a ter noção do meio da moda, do quanto é falso. Quando ela encerrou a marca e ficou deprimida, não falavam mais com ela.

Assim como ela, você teve que achar outra coisa pra fazer (a mãe da Rita virou doceira e faz um dos mais famosos macarons de São Paulo). Sim, isso é a parte boa de eu não ter me apegado tanto. Não sou mais a Rita da Neon e isso tira um peso das costas! Não tem mais que saber se vai vender ou não, se o caixa tá batendo ou não. Agora consigo ir em exposição, cuidar de coisas que eu não tava nem olhando.

Você ainda trabalha com o Dudu Bertholini (sócio da Neon)? A gente continua desenvolvendo trabalhos para os quais chamam a Neon pra ser parceira –, coleções, desenvolver estampas. Mas eu tô seguindo uma carreira solo e ele também.

Como ficou a relação de vocês? Acho que eu terminei a Neon por uma incompatibilidade de valores. Eu passava raiva 24 horas por dia. Mas a gente era amigo, convivia, fazia tudo junto. A relação foi se desgastando. É como um casamento, a gente se via todo dia, viajava junto. Chega uma hora em que ou você realmente fala a mesma língua ou não tem mais porquê. E hoje a gente não fala a mesma língua.

Ele aceitou bem o fim do ateliê? Pra ele acho que talvez não tenha pegado tanto quanto pra mim, porque eu gerenciava o ateliê. Eu cuidava da produção, das vendas, ficava lá todo dia. Ele era responsável pelo marketing e pelas relações públicas, sempre fez um monte de trabalhos paralelos, sempre mais ligado na imagem. Pra ele acho que continua parecido, está mais livre pra fazer as coisas dele.

Vocês nunca pensaram em vender a marca, como vários estilistas fizeram? Pensamos, sim. Já quiseram nos comprar e eu não queria de jeito nenhum. Era muito apegada, não queria perder o controle da minha empresa. Pra mim, era como vender um filho, um amor que dinheiro nenhum comprava. Hoje penso completamente diferente. Já tenho maturidade e desapego necessários para deixar que outras pessoas realizem um trabalho melhor. Se necessário, posso virar funcionária, cuidando apenas do produto, que é realmente o que sei fazer.

 

"Todo mundo que faz qualquer coisa exageradamente não é feliz"

 

Você vai continuar fazendo roupa, então. O que eu sei fazer é roupa. Ainda estou tentando me achar, quero trabalhar com pessoas que valorizem mais o produto. Não tenho essa coisa fast fashion, que vai consumindo, consumindo. A modelagem que eu prezo, sob medida, quase não existe mais. Não quero escala industrial. As estampas que fazíamos na Neon eram todas nesse processo artesanal. A gente convidava artista plástico, transformava aquilo em tecido. Não é pra ganhar dinheiro, é pra fazer roupa bonita, despertar o desejo. Aí o dinheiro é consequência.

Você faz vestidos de noiva. Como aplicar esse estilo num universo supertradicional? Eu absorvo o ser humano. Gosto de me sentir próxima do cliente. Quando faço noiva, não é uma noiva clássica, mas procuro entrar no universo dela também. Nunca imponho o meu, é sempre uma junção. E gosto de gente que tem personalidade. Não tenho paciência pra quem não sabe o que quer.

Como você foi parar no Carnaval paulista? Sempre amei Carnaval, essa coisa da identidade do Brasil. Acho a coisa mais linda. Quando terminei a Neon, pra conseguir levantar da cama e fazer as coisas precisava ter um sonho. A Neon começou com um sonho. Então pensei: “Quero ser carnavalesca”. Consegui um contato na Mancha Verde e fui voluntária, trabalhei ao lado do carnavalesco conhecendo o processo inteiro. É absurdo, três vezes mais complicado que eu imaginei. Vai desde os carros até as fantasias, planta baixa, planta alta, maquete. Um processo maravilhoso. Preciso estar no universo lúdico, isso me move.

E o que você fez? De tudo, aprendi o processo. Fazia o que precisava, de cortar peça a recolher lixo. Até ficar quietinha olhando os caras trabalhando. Me emocionei, me senti meio estagiária. Fiquei superfeliz quando eles subiram pro grupo especial, de onde não deveriam ter saído.

Vai continuar lá? Foi muito bom, mas não sei se estou pronta pra mergulhar. Porque é se dar inteira, de novo, aquilo tem que ser sua vida. E, neste processo em que estou, não sei se estou pronta pra me dar para outro trabalho, ou outra pessoa, o que seja. Sei que vou voltar pra arte, mas não exatamente onde. To fazendo aula de desenho, porque isso era meio um drama: eu explicava tudo pro Dudu e ele fazia o Chico Xavier. Sou superboa de desenho de observação, mas tirar da cabeça é difícil. Então tô fazendo aula, me dedicando. Fazendo aula de bordado também.

Como é sua rotina hoje? Acordo, vou passear com o Arlindo [um dos três cachorros]. Depois faço minhas coisas, toco meus projetos, tô arrumando todo o acervo da Neon. Sempre trabalhei, não posso ficar parada.

Nesta edição estamos falando sobre venenos diversos. O que te vem à cabeça quando pensa em veneno? Ai, graças a deus eu tô distante disso. E ficando ainda mais distante. Veneno envenena, é um dos motivos pelos quais eu fechei a empresa. Eu vivia de um veneno. Nervosa, estressada, com raiva. Putz, é muito bom estar longe disso. O veneno do mundo é que as pessoas se importam mais com as outras pessoas do que com elas. Estão sempre olhando pros outros, nunca pra si mesmas. Quanto mais você olha pra você, quanto mais se percebe, menos tempo tem pra cuidar dos outros.

Como você se percebe hoje? Uma pessoa que tem muito que trabalhar [risos]. Quanto mais velha fico, mais eu acho que não sei nada, mais tonta eu acho que eu sou. Fui jovem, dona de empresa, achava que o mundo tava ganho. Aí as dificuldades vão aparecendo e é muito difícil perceber o que é o dia de amanhã. Não tem mais certeza das coisas. Você para de evoluir quando para de prestar atenção em você.

O mercado de moda é muito associado a um consumismo excessivo. Como você vê isso? É falsidade. Eu gosto de empresa em que o dono acredite no que vende, de cantor que acredite no que canta. A partir do momento que você vende, ok. O que não é legal é fingir algo que não é. O padrão é a mentalidade das pessoas, não dá pra culpar o mercado de moda. Tem que culpar todo mundo que tá envolvido, desde a pessoa que consome até as revistas e as empresas. Pra mim, beleza é de dentro pra fora mesmo. Uma pessoa, quando é chata, fica feia. As pessoas alimentam isso, cada vez mais futilidade, grana e poder.

Tem saída? Acho que o mundo ficou tão surreal que já começou a mudar. Querer mudar o mundo é bem complicado. Acho legal ter esperança, mas ter expectativa é complicado. Se as pessoas forem tomando consciência, tem jeito. Não dá pra sustentar uma mentira por muito tempo. Ela pode durar, mas alguma hora vai dar bosta. Que bom que não tô dentro disso. Uma hora o circo pega fogo.

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