O relato de uma adolescente preta sobre a descoberta de sua identidade
"Fui adotada com meses de vida, não lembro nada da minha família biológica. Meus pais sempre me falaram o quanto era lindo meu cabelo, o quanto meus cachos eram maravilhosos. Mas como todo mundo é branco e ninguém tem um cabelo parecido com o meu, eu enxergava como solução alisar.
Estudei em escola particular e minhas amigas eram todas brancas de cabelo liso. Para uma menina de 9 ou 10 anos, ser o padrão era confortável. O cabelo liso virou meu xodó, eu fazia de tudo pra ter cabelo liso. Passava horas no salão passando secador e chapinha. Na minha cabeça eu só conseguiria namorar se eu tivesse esse tipo de cabelo, era uma questão de ser aceita.
Até os meus 15 anos eu achava que eu era branca e que meu único desencaixe era meu cabelo. E existia uma solução, que era alisar. Na minha formatura eu decidi usar o cabelo natural porque estava assistindo youtubers que mostravam como os cachos eram lindos e que não deveríamos esconder. Comecei bem devagarzinho a gostar do meu cabelo e dar visibilidade pra ele.
Comecei a pesquisar sobre black power e decidi tirar a química. Na escola surgiram comentários horrorosos, mas eu resisti. No colegial, conheci professores negros que me tocaram e me fizeram entrar na luta. O de literatura entrou na sala, me viu e fez um sinal da luta, elogiou meu cabelo. Ele me dizia que eu era parecida com as filhas dele e isso foi uma forma de identificação. Eu senti que ele tinha alguma coisa comigo. Durante as aulas, ele fazia ganchos sobre a luta negra e eu me chocava com as histórias dele. Me apaixonei por esse conteúdo. Os outros alunos reclamavam quando ele desviava um pouco do conteúdo do vestibular. Eles não queriam ouvir falar sobre uma luta que não era deles.
Já com a professora de dança, meu mergulho foi no aprendizado com o corpo. Eu sempre fui a aluna quietinha, que não era notada. Mas ela me colocou na frente e disse que meu corpo, meu cabelo e meu gingado faziam parte da dança afro. Isso me mostrou que eu tinha uma ancestralidade. Me fez pensar sobre o afro no meu corpo. Entendi que meu corpo falava sobre quem eu era.
Isso gerou um questionamento: será que eu sou negra? Os professores me mostravam que eu estava nessa luta com eles, que eu era negra. Mas eu tinha a pele clara. Eu falava disso com meus pais e eles também ficavam confusos. Em uma aula, perguntaram quantos alunos negros estavam na sala e começou uma discussão gigante sobre se eu era ou não negra. E nem eu mesma sabia. Minha cabeça voou. Um falando que eu era branca, outro dizendo que eu era negra, o professor esperando que eu falasse algo. Fiquei questionando o que será que eu era.
Aí comecei a estudar sobre miscigenação e branqueamento. Depois comecei a brincar com o pente garfo, deixar meu cabelo mais volumoso, descobri as tranças. Comecei a frequentar o salão das trancistas, que tinham outra realidade. Foi um ponto de diversidade e tive mais uma introdução à negritude.
O entendimento sobre a minha cor de pele demorou bastante. Foi um grande estudo pra eu entender como a miscigenação tem como resultado pessoas como eu, que tem todos os traços de uma negra, mas tem a pele clara. Apesar de eu ter começado a estudar há 2 anos, ainda estou absorvendo. Eu passo por situações de racismo, mas não são tão pesadas como as que uma pessoa de pele escura passa.
Eu sou negra, mas sinto que muita gente não me enxerga assim. O privilégio da minha família me colocou em locais de luxo em que pessoas negras não são enxergadas. Aí eu vi a importância da diversidade e da representatividade. Como existe uma visão de que não há negros na classe média alta, então eu não era negra. Eu deveria ser branca, eu era embranquecida.
Eu quis produzir um vídeo sobre minha história. Sobre como, por 15 anos, fui branca, branca, branca e, há 3 anos, descobri que sou negra. E agora consegui me encaixar e me enxergar como alguma coisa."
Raquel Liberman Lopes da Silva tem 18 anos e é estudante do curso de Artes Visuais na FAAP, em São Paulo.
Créditos
Imagem principal: Arquivo pessoal