Queenrentena: a arte drag no isolamento

por Juliana Sayuri

Habituadas a superproduções e performances, Lorelay Fox, Satine, Loulou Callas e Ruda Puda contam como estão lidando com a quarentena

Uma dragqueen é uma diva. “Um homem que se veste de mulher, usualmente para entreter o público”, diz a definição sem sal do Dicionário Oxford. Na verdade, vestir-se assim é uma arte performática, um tipo de transformação que envolve figurino, maquiagem e uma mise-en-scène glamourosa para dar vida a personagens poderosas. Em tempos de pandemia, porém, com casas de shows fechadas e muita gente passando a quarentena mundo afora de pijama, a arte drag precisou se adaptar para longe dos palcos.

Nos últimos dias de maio, por exemplo, a final do reality show RuPaul’s Drag Race (concurso valendo o título de Drag Queen Superstar, liderado pela drag americana RuPaul), foi feita por videoconferência. Isoladas, as finalistas foram desafiadas a gravar performances criativas no conforto do lar. Jaida Essence Hall, que saiu vitoriosa na temporada, desperta, tira o robe flanelado e dança ao lado do sofá da sala, entre almofadas e uma mantinha listrada ao som de "Get Up". Essa é a vibe.

No Brasil, enquanto tramita o projeto da lei Aldir Blanc no Senado, que visa destinar R$ 3 bilhões para o setor cultural afetado pela pandemia do novo coronavírus, artistas seguem se reinventando. A Tpm conversou com Lorelay Fox, Satine, Loulou Callas e Ruda Puda para entender como as drag queens estão lidando psicológica, física e financeiramente com a quarentena.

Lorelay Fox

(nome artístico de Danilo Dabague)

33 anos, youtuber paulista, foi consultora do programa Amor & Sexo (Globo) e coautora do livro "Over the rainbow: um conto de fadxs" (Planeta)

“Minha rotina estava bem doida no início do isolamento. Mas já estamos caminhando para três meses de quarentena, as coisas já entraram no eixo e esse é o ‘novo normal’. Acordo mais cedo, tomo café e procuro trabalhar já de manhã. À tarde, tento ler um livro e tomar um sol. À noite, assisto séries. Nos dias em que preciso produzir conteúdo e me montar, é o dia todo para isso: acordo, arrumo cenário, ajusto câmera, gravo dois, três, quatro vídeos, lives, entrevistas.

Antes, eu me montava para sair de casa também, para palestras ou jobs uma ou duas vezes por semana. Apego três dias para me montar, gravo muito mais vídeos, faço muitas lives e consigo tirar um descanso da Lorelay por um tempo. Tenho passado meus dias mais como Danilo, o que ajuda minha pele a sobreviver. E é legal gravar como Danilo, um outro lado que gosto para mostrar ‘quem está por trás da drag’.

Sempre gostei de ficar em casa, tenho essa sorte para lidar com o fato de estar morando sozinho na pandemia em São Paulo. Mas faz falta sair. Saía todo dia para almoçar na padaria, passava na banca, tomava café e voltava. A gente que trabalha home office passa muito tempo confinado, então era importante ter essa hora para espairecer. Sinto falta de ouvir podcastsandando sozinho no shopping e ir ao cinema. De ir pra balada, as pessoas não imaginam como sou baladeira – não posto stories disso, pois não mostro muito minha vida pessoal. Da Tunnel, que toca música retrô dos anos 1980, da Gambiarra aos domingos. E, acima de tudo, sinto muita falta da minha família, que está em Sorocaba [interior de São Paulo]. Estou há meses sem vê-los. Sinto falta da cidade, de ir na padaria comer coxinha. Sinto saudade de muita coisa. Quem não sente, né?

Nesses momentos, a gente também percebe a diferença que a gente faz. Tenho recebido mensagens dizendo que eu sou a única companhia na quarentena. Dias desses recebi mensagem de um cara de 40 anos contando que ele não tem amigos, está isolado sozinho e agora acompanha meus vídeos, minhas lives. Sei que parece superficial ‘ah, sou a blogueira que está com você no dia a dia’. Mas são vidas de verdade,é gente que está sofrendo. LGBTs já são muito marginalizados e muitas vezes não se sentem confortáveis dentro da própria casa, com agressões físicas, psicológicas e verbais.

E é uma via de mão dupla: as pessoas não fazem ideia do quanto elas me fazem companhia também. Não sei se saberia lidar com o fato de estar morando sozinha, longe da minha família, sem poder ver amigos, se não tivesse as redes sociais. Sempre que estou sozinha, abro o Instagram, converso, faço uma live. Às vezes estou muito desanimado, mas sei que na hora da live eu vou me animar. Esse é um dos momentos que a gente consegue se enxergar como comunidade LGBT. A gente tá junto. A gente se vê um no outro, a internet é maravilhosa por causa disso.

Precisei olhar minha agenda para conferir quando foi a última vez que saí de casa. Como Danilo, participei do programa Vai dar o que falar (Band), da Ana Paula Padrão, no início de março. Como Lorelay, foi a Comic-Con de dezembro de 2019. Faz muito tempo, é bizarro e assustador. A drag é feita para o público, para as pessoas verem a gente. E nada é melhor do que ver ao vivo. É legal as pessoas concretizarem a imagem que elas só veem virtualmente.

Quanto tudo isso passar, a primeira coisa que vou fazer é almoçar na padaria, depois viajar para ver meus pais e sair pra balada. Vamos ferver o que for preciso. Quero ir para uma balada ‘montada’: Lorelay precisa ser vista ao vivo de novo.”

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Satine

(nome artístico de Caio Rincon) 

26 anos, estudante de publicidade em São Paulo

"Confesso que a quarentena está sendo tranquila. O lado bom, entre muitas aspas, é que consegui organizar tudo o que não tinha tempo, entre drag queen, estudante e recentemente, estagiário. Tive tempo. O lado ruim é a questão financeira, pois a drag queen era minha principal fonte de renda: produzo a festa HeteronormaDiva e faço promoção de eventos etc.

Antes, minha agenda estava programada para a festa, de fevereiro ao fim de maio. Tudo foi cancelado. Por sorte, quinze dias antes da quarentena, comecei um estágio na área de publicidade, um emprego novo que logo virou home office. Tenho vivido mais meu perfil Caio, então. Não tenho me montado, mas, na verdade, penso que a drag queen é uma plataforma maior.

Descobri que não preciso passar maquiagem todo dia (o que não leva 20 minutos, leva 2 horas no mínimo) para viver a Satine. Nos últimos tempos, participei de podcasts, gravei música e estou participando de um projeto de documentário do meu amigo Mihai Andrei Leaha, que é produtor independente na România. Pré-pandemia, ele estava trabalhando em um projeto sobre a cena drag eletrônica de São Paulo. Pós-pandemia, o projeto mudou: agora, é o dia a dia das drags dentro de casa, registrando cenas cotidianas com o próprio smartphone na horizontal. Quer dizer, um dia vamos ver e lembrar o que foram esses dias. 

Moro com a minha mãe e a minha avó, que foi passar a quarentena na casa da minha tia, que é mais afastada. No início, eu ainda tinha um sentimento de certeza de que estava tudo bem, tudo vai passar e eu não iria surtar. Hoje já é mais difícil ser otimista. É triste sentir que você não tem a liberdade de ir e vir, mas é melhor dar um passo de cada vez. Eu vou esperar o maior tempo possível até pôr o pé na rua de novo. Para mim, a reabertura gradual que está acontecendo é um delírio. Não me vejo indo para festa neste ano ainda. Mas, até lá, a Satine não deixa de existir."

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Loulou Callas

(nome artístico de Luiz Zeidan)

42 anos, cantora e pianista paulistana, estrela do Cabaret de Cecília, em São Paulo

“Nos primeiros dias fiquei perdida na nova rotina, assim como o resto do mundo. Fui estudar música, rever repertório, compor canções novas, tudo isso desmontada. Depois, pensei: já que tenho um repertório novo, não custa nada me produzir e postar vídeos no Instagram. Foi um sucesso inesperado e, ironicamente, agora estou me montando mais na quarentena do que fora dela. Instagram é o nosso novo palco.

Todo artista é tipo bandeirante, quer desbravar rotas, descobrir estradas para explorar. Como quase todo mundo está em casa e os shows, projetos e festivais foram cancelados, precisamos tentar chegar onde o público está. Como artista, meu papel é inspirar e levar entretenimento, contribuir minimamente para deixar a vida mais leve neste momento tão difícil. Depois dos vídeos no Instagram, amigas drags e eu estreamos o Bom Dia Drag Queen no YouTube, para discutir de tudo: tendências de comportamento, lifestyle, beleza e assuntos non-sense. Inventamos inclusive o quadro Roda Biba, uma referência direta ao clássico Roda Viva.

Às vezes vem uma insônia e às 4h30 da manhã estou com os olhos estatelados. Outras, acordo direitinho às 8h da manhã e trabalho o dia todo. Arrumei a estante de livros, a casa, os armários. São dois guarda-roupas em um: de um lado, as roupas de Luiz, todas alinhadas, dobradas e organizadas por cor; de outro, as de Lulu, um caos de cores, acessórios e vestidos – mal dá para abrir a porta e cai tudo de uma vez.

Eu, Luiz, sou ilustrador e diretor de arte. Faço home office há tempos, então já estava adaptado à ideia de trabalhar de casa, com um cronograma mais certinho de segunda a sexta. Eu, Loulou, sou artista. Sinto saudade da energia do público, o olho no olho. Da cerveja com os amigos para dar risada e ter ideias incríveis, das festas, dos shows no Cabaret de Cecília noite adentro. Não sou muito de abraços e beijos, mas depois disso vou abraçar e beijar todo mundo.

Ser drag queen é uma experiência 360 graus, em que você vê o mundo com outros olhos e o mundo te vê com outros olhos. É uma manifestação de arte psíquica, implica realmente sair de um ponto X, cruzar a fronteira de gênero para o ponto Y e vice-versa.

Adoro construir a personagem, esfumaçar o olho, deixar os cílios curvados e tudo mais para me tornar Loulou. E adoro desconstruir a personagem, tomar um banho e voltar a Luiz. ‘Meu lado feminino empodera meu lado masculino’, como definiu o ator Silvério Pereira, vestido de Gisele Almodovar, ao receber o prêmio >Men of The Year da revista GQ.

Sei que os tempos estão difíceis para todos e por isso é tão importante ouvir uns aos outros, principalmente os mais vulneráveis, como LGBTs. É o que me move: nas lives de 20 minutinhos, vamos parar para respirar e nos inspirar um pouco. Outro dia toquei Dream a Little Dream of Me, de Doris Day, e pingou uma mensagem no inbox de um homem contando que a primeira vez que ele beijou outro homem estava tocando essa música. Quer dizer, ele saiu da caixa de confinamento e se transportou para uma lembrança linda do passado. Isso é inspirar.”

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Ruda Puda

(nome artístico de Rodolfo Prevelato)

42 anos, designer brasileira radicada em Berlim, na Alemanha

“Primeiro, os shows foram cancelados. Depois, o lockdown em Berlim. Ninguém esperava e foi muito difícil descobrir que direção tomar. Eu fazia shows de quinta a domingo, cerca de 50 shows por turnê, com a agenda ocupada o ano inteiro – e fazia figurinos para mim e para outras drags.

Às pressas precisei buscar uma alternativa para ganhar dinheiro até o calendário cultural se ajustar: pausei os vestidos e passei a produzir máscaras, que é o acessório básico do ‘novo normal’ no mundo todo. Fiz um modelo para mim e um para meu marido e, depois de postar no Instagram, passei a receber diversos pedidos – até agora, fiz cerca de 500 peças, o que rendeu 5 mil euros.

Na Alemanha, nós somos artistas autônomas. O governo depositou direto na conta o auxílio emergencial de 5 mil euros para freelancers, o que também dá um respiro por um tempo, mas não para sempre. A capital está reabrindo agora, trens e metrôs voltaram à ativa, restaurantes relativamente reabriram, liberaram lojas de até 800 metros quadrados, mas museus, cinemas e casas de show, não. Programações culturais continuam canceladas até outubro, até segunda ordem. Enquanto isso, artistas vão se virando e experimentando alternativas como show online, pedindo contribuições por PayPal.

Estou há 22 anos na Alemanha e há 13 sou artista. Estudei estilismo de moda, daí o gosto por costurar. Nos últimos meses, é assim que passo meu tempo: costurando. Desmontada, como Rodolfo. Deu até tempo de cultivar minha barba, o que não fazia antes. Também tive tempo de lavar todas as minhas perucas e arrumar todas as minhas roupas. Obviamente é um momento ruim, mas aproveitei o tempo para organizar a vida. Há cerca de seis semanas fiz uma sessão de fotos, a última vez que me montei como Ruda.

Sinto saudade demais de me produzir. Pegar um pincel para se maquiar e vestir um belo vestido é uma produção que você faz para você mesma. Sentar ali e aproveitar, dar-me duas horas para me dedicar a mim mesma, o que é uma sensação incrível. Também sinto saudade da interação, de dar vida a Ruda Puda e receber aplausos do público no fim da noite. Não faço drag pensando nas redes sociais, faço para o palco.

Tenho uma proposta de show para agosto, que vai ser confirmada até o fim de junho. Mas tudo ainda está muito incerto na reabertura europeia. Quem vai ter coragem ir a casas de shows no primeiro momento pós-pandemia?”

Créditos

Imagem principal: Arquivo pessoal

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