Quando a vida passa

por Mara Gabrilli
Tpm #84

Assistir ao Luigi, um senhor italiano de 90 anos, se transformar fez aumentar minha confiança no ser humano


Depois de três meses no hospital, meu pai voltou pra casa. Assistido por uma auxiliar de enfermagem para todas as suas atividades, me fez lembrar dos 14 meses em que trabalhei como assistente de um senhor de 90 anos. Luigi morava na Piazza Signoria, no centro de Florença, num antigo edifício, sem elevador, por isso não saía de casa. O Luigi se virava com autonomia diante de seus afazeres e se irritava, reclamando, quando eu tentava auxiliá-lo de alguma forma.

A filha do Luigi me contratou, por segurança, para que ele nunca ficasse só, portanto, meu trabalho era ficar parada olhando, missão difícil para mim mesmo depois de ficar tetraplégica. Tentava limpar os vasos de plantas no cortille (quintal interno) e ele gritava enfurecido da janela para que eu parasse imediatamente, pois as plantas sempre viveram daquela forma. Arriscava arrumar a cozinha ou o armário e ele, muito ranzinza, me xingava mesmo depois que eu já havia parado de mexer.

Um dia resolvi encerar o chão. Ele escorregou no assoalho e, com razão, quase me mandou embora. Me sentia uma inútil diante de um velho ranheta que acreditava ser impossível melhorar mesmo que não estivesse bom.

Mas um dia acertei.Peguei o jornal e me pus a ler notícias. Ele ficou tão irritado com meu sotaque e erros na língua que resolveu me corrigir. Conseguimos assim estabelecer um diálogo “lido e repetido”.Gradativamente, as coisas foram se transformando, o tom da voz adocicando, minhas funções ampliando.Tempos depois sua filha, que estava saindo de viagem,me procurou desesperada: a senhora que cozinhava para o Luigi tinha tido uma emergência. Me pediu uma amiga e, na falta, senti que ele ficaria sem comer. Aceitei o cargo.

Ele comia todo dia o mesmo cardápio: minestra, pasta ao pomodoro, carne e uma taça de vinho tinto.Comecei a inovar no menu... Claro que no princípio ficou indignado com a mudança alimentar, mas, mais uma vez, cedeu às artimanhas do inédito. Em pouco tempo estava me mandando ao mercado comprar desejos e até fazer almoço e convidar meus amigos. Ficou muito mais forte.

Ciclos da vida
Fui parar na Europa para esquecer uma experiência traumática, com o namorado com quem eu morava. Cheguei a Lisboa e acabei abduzida por Florença.

Não falava com a minha família e estava num processo de entender do que eu realmente gostava. Sempre tive de tudo a ponto de me perder nos excessos e, como salvação, quis me impor o “nada”. Precisava de disciplina, mas naquilo que é simples e genuíno. Fazia limpeza numa editora durante a noite, cuidava de duas crianças e do Luigi. Encarava uns bicos de vez em quando, como um homem que teve um AVC e uma moça tetraplégica. Tudo mais era história da arte e língua italiana. Quando chegava e levava comigo a tristeza disfarçada, o Luigi me conduzia para o telefone e fazia com que eu ligasse para o Brasil.

Me esperava contente todos os dias para ler, conversar e comer. Me confiou a chave do cofre, tendo a família que me pedir caso quisesse alguma coisa.

Assisti a alguém de 90 anos se transformar. Isso aumentou minha confiança no ser humano e me levou a cursar psicologia. Resolvi vir ao Brasil buscar minha documentação e deixei meu amigo Rafael com o Luigi. Nesse caminho comecei a namorar e decidi não voltar. Em menos de um mês o Luigi morreu. Hoje vejo meu pai sendo assistido por uma moça que lhe traz vida! Na época do Luigi, eu não sabia que, um dia, meu pai, Luiz, ficaria velhinho

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