Gosto muito desse espaço do tempo em que tudo que temos é irrisório perto do que somos
Estou no avião chacoalhando tipo o shake Muscle Milk na coqueteleira de manhã. A aeronave está rodando e não tem teto pra pousar.
Fiquei aqui pensando em tudo o que tem acontecido... Fase complexa pra gente.
Como tudo está de pernas pro ar, procuro ir enxergando as pequenas melhoras. Teu pé está doendo menos, você está mais magro, mais doce comigo e gostou do xampu novo.
Tudo bem que a nossa cama está fazendo mais barulho e eu continuo sem me mexer... Mas dormimos em novas cores de lençóis ou ao menos tentamos dormir. A obra começou ontem na hora em que chegamos do cinema, tipo meia-noite. Na verdade, a zoeira não me deixa dormir e eu não deixo você dormir. O avião está pulando e eu estou escrevendo de nervoso.
O marceneiro não termina os armários, não conseguimos instalar a linha telefônica e muito menos a Apple TV. A Net não devolve os canais que desapareceram; aliás, a Net nunca vem no dia marcado, mas cobra pelo serviço que não presta. Definitivamente, a Net tem feito parte do lado ruim do cotidiano.
Minha amiga Ana, que ficou de trocar os puxadores quebrados e consertar outras coisas, ainda não veio, mas temos uma máquina de gelo. Podemos tomar drinks e fazer bolsa de gelo no seu pé. Agora está tudo preto lá fora.
E pensar que no nosso trato de trabalho do dia a dia alguns enlouqueceram, outros descompreenderam e outros ainda decepcionaram, porém em uma coisa avançamos muito: na relação com alguns dos nossos familiares! Ineditamente na minha vida, não faltam Coca-Cola na geladeira nem achocolatados e afins no armário da cozinha.
Conseguimos assistir a um filme mudo que me fez chorar e que te tocou! De concreto findável temos um estoque considerável de vitaminas e suplementos nutricionais para manter nossas vidas de atletas (sou tetra-atleta).
Rapidamente adquirimos bens juntos, incluindo nossa bicicleta bem fácil de pedalar com sua Easy Girl, como você me chama. Temos mais adaptadores de tomadas no quarto, um pufe para os pés na sala, mas não temos luz para leitura. Adquirimos assinaturas de revistas, revisteiro, geladeira de vinho, uma Jacuzzi sem água aquecida, mas lindas cadeiras e mesa ao sol!
Vida em obras
E os prédios? Em construção, tampando nossa vista, já me fizeram chorar algumas vezes. Me senti invadida como se algum desconhecido mexesse nas minhas vísceras, sem permissão, e tirasse de mim um dos movimentos mais preciosos que tenho, que é o alcance dos meus olhos. O crescimento desarrumado de São Paulo me faz perder um pouco o amor por essa cidade. Se como vereadora na comissão de política urbana eu não consegui mudar isso, agora minhas esperanças estão abaladas.
O que sinto neste momento escrevendo o texto é a existência gratificada pelos sabores e dessabores do dia a dia, pois, apesar da aflição da tempestade, tudo isso ficou muito bonito e delicado. Estou gostando muito desse pedaço do tempo, em que tudo que temos é irrisório perto do tudo que somos.
O avião vai pousar na pista molhada e eu morro de medo disso, contudo fui adquirindo força de sobra para achar que posso impor minha vida na aterrissagem.
Mara Gabrilli, 44 anos, é publicitária, psicóloga e deputada federal pelo PSDB. É tetraplégica e fundou a ONG Projeto Próximo Passo (PPP). Seu e-mail: maragabrilli@maragabrilli.com.br