O que aprendemos com a DR dos outros?

por Milly Lacombe

Se somos projetos em construção, o que mais posso querer de alguém se não que essa pessoa me dispa das certezas que eu tinha sobre mim mesma e faça com que eu me enxergue com outros olhos?

No ótimo “Malcom e Marrie” (Netflix, 2021), ficamos presos durante toda uma noite dentro de uma casa magnífica com um casal não menos magnífico (Zendaya e John David Washington) que, voltando de uma festa, mergulha em uma DR dessas que parecem definitivas. A uma certa altura um deles diz para o outro mais ou menos o seguinte: “Você quer me machucar? Cuidado! Posso te machucar dez vezes mais”. Quem nunca? Se tem uma coisa que sabemos fazer com muita categoria é deixar que da nossa boca saiam palavras que vão dilacerar aquela pessoa que, curiosamente, amamos.

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Mas quando a DR não é a nossa, conseguimos enxergar camadas de perversidade que nas nossas passam batidas. O papel de voyer da DR alheia é tentador. A DR dos outros é como decisão por pênaltis de times que não são o nosso. A gente assiste com um pouco de aflição, sem palpitação, mas sabendo que estamos diante de um evento grandioso e decisivo que talvez, ali na frente, seja uma realidade que chamaremos de nossa.

Mais recentemente, em “Cenas de um Casamento” (HBO Max, 2021), outra vez somos convidadas a invadir a DR dos outros. E outra vez começamos a pinçar o que naquela DR, que aparentemente está tão distante de mim, me concerne.

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Tolstói escreveu que todas as famílias felizes se parecem, mas que cada família infeliz é infeliz à sua maneira. A lógica vale para uma DR dessas definitivas: cada uma delas é complicada à sua maneira. Testemunhar a DR alheia é, cedo ou tarde, começar a fazer conexões com nossas vidas – e isso pode ser perturbador. 

Estar dentro de uma DR decisiva é entrar numa dimensão na qual o tempo não existe mais. É também, a certa altura, ter a certeza de que não há maneira de encerrar a discussão e que ela provavelmente se estenderá pela eternidade. No meu caso, fujo de uma DR como meu cachorro foge do banho: abaixo os olhos, faço cara de vítima-máxima-suprema do universo e, sabendo que o destino é um só, me rendo, mas não sem antes me esparramar no chão.

Mas vejam a situação: minha mulher é, além de brilhante e linda, doutora em antropologia e devo dizer que, se com ela conheci novas camadas de afeto, de parceria e de amor, foi também com ela que conheci novas e profundas dimensões de problematizações em uma DR.

É natural que duas pessoas que vivam um relacionamento a dois precisem dialogar, e dialogar muito, para construir uma história que seja digna de ser chamada de grandiosa, a despeito de não ser necessariamente eterna. Mas saber disso não me ajuda a gostar de DRs.

Só que uma das coisas que aprendi conversando com minha mulher é que tudo nessa vida é construção e (isso que vem agora concluí sozinha) construções exigem atenção, disciplina, entrega, paciência, tempo. As DRs são, portanto, partes dessa construção; momentos dentro dos quais podemos, em carne viva, nos reconectar. Ou, sempre uma possibilidade, nos separar.

Mas o que exatamente queremos de um outro? Eu cresci achando que esse “outro” – que, hoje entendo, pode ser “outra” – seria aquela pessoa que cuidaria de mim. Esse é, claro, um pensamento que não pertence a uma pessoa integralmente madura. Com alguma dor, compreendi que a única pessoa capaz de cuidar de mim era eu mesma.

E então refiz a pergunta. A resposta dessa vez passou por coisas como: quero alguém que me reconheça em minha identidade, em meus atributos e predicados. Alguém que me confirme, me assegure de que eu valho a pena. Outra vez, essa resposta não me levou longe, embora tenha durado mais tempo existindo em mim como verdade.

Atualmente me encontro na situação de, estimulada por Butler e Preciado, achar que uma relação significativa, uma relação que poderá usar as palavras respeito e amor em seus sentidos mais profundos, envolve saber que o outro é aquele que me despossui. Aquele que não me reconhece em meus atributos e predicados, mas que me enxerga de um modo que, até ali, nenhuma outra pessoa havia me enxergado. Alguém que não me confirma e em quem não me reconheço. Aquele que me despe do que eu achava que era ser eu. Me faz narrar a mim mesma sob outros pontos de vista.

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Entender que o outro não é aquele – ou aquela – que me confirma, mas aquele que me leva a achar que já não sei quem sou, fez alguma diferença no que entendo por uma relação.

Pode parecer assustador acreditar que o outro é aquele que vai me despossuir, mas é, na verdade, libertador. Se somos projetos em construção, se sabemos que amanhã já não seremos aqueles que fomos hoje, o que mais posso querer de alguém se não que essa pessoa me dispa das certezas que eu tinha sobre mim mesma e faça com que eu me enxergue com outros olhos?

Um outro que não me confirme, que não me reconheça, mas que me reinvente. E vice-versa. Porque é essa despossessão mútua que vai fazer com que a gente possa se reconstituir e, nessa reconstituição, renovar a relação.

Talvez seja porque a gente não se permita saltar desse abismo que é ser despossuído pelo outro que algumas relações terminem precocemente. Esgotam-se as identidades, esgotam-se os papeis, esgotam-se as performances. E, de repente, dois desconhecidos estão vivendo sob um mesmo teto cantando Talking Heads: “This is not my beautiful house, this is not my beautiful wife... How did I get here?” (Essa não é minha casa linda casa, essa não é minha linda mulher... Como eu vim parar aqui?).

Existir e re-existir dentro de um relacionamento romântico é tarefa cheia de desafios, mas é, provavelmente, a melhor e mais rápida maneira de caminhar em direção à sua melhor versão. Em carne viva, saltando de precipícios, morrendo e renascendo um pouco a cada dia.

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