Nem gay, nem bi, nem hetero. Mulheres experimentam uma liberdade sexual inédita, numa jornada de descobertas que não cabe em nenhum rótulo
Quatro namorados. O do ensino médio, o da faculdade, o cara com quem morou junto e o que mudou de país e avisou na véspera. A vida amorosa de Marcela era feita de caras e arranjos monogâmicos. Até os 31 anos, a estilista carioca buscou homens, gozou com eles e por causa deles. Foi quando “aconteceu” Fernanda, 25, a garota do trabalho que ficava louca nas festas e saía pela pista beijando todo mundo. Marcela não escapou da oferta de beijos. Também não disse “não” quando a garota a convidou pra passar a noite em sua casa. “Fernanda tinha algo inexplicável e isso todo mundo percebia. Quando me escolheu naquela festa, derreti. Era minha noite do ‘sim’ e a culpa era dela. Nunca tinha beijado nem transado com uma mulher até então. Com ela, eu quis tudo de uma vez.” As duas acabaram vivendo um romance que durou seis meses – o primeiro lésbico de Marcela, o vigésimo de Fernanda, gay desde que se entende por gente.
LEIA TAMBÉM: E se a gente chamasse cena de sexo gay apenas de cena de sexo?
“Afrouxados os conceitos preestabelecidos, elas cederam ao desejo. E depois cederam à luz do dia e à repetição.”
.
A produtora cultural Bianca é paulistana e beija garotas desde os 17. “Mas nada acontecia à luz do dia. Era sempre num banheiro de balada, num beco onde ninguém passaria, numa boate gay.” Nisso, namorou cinco garotos. Relacionamentos longos, fechados, a receita tradicional. Entreatos, procurava garotas. Mas não escolhia a próxima transa por gênero. “Beijava quem eu tinha vontade.” Agora, aos 25, está apaixonada como nunca. O frio na boca do estômago, a vontade de contar pra todo mundo, a saudade que não passa, os dias e as noites de sexo intenso: tudo com Bárbara, a garota do Paraná que conheceu pelo Tinder e que vai se mudar pra São Paulo por causa dela.
No último ano, Juliana, 27, redatora em uma agência de publicidade em São Paulo, saiu com quatro mulheres. Nenhuma das vezes foi planejado. Aconteceu, tem acontecido e deve acontecer mais. Uma delas é Ângela, 33, analista de redes sociais, que está num processo de autoconhecimento – e sair com garotas faz parte dele. Elas se encontraram vivendo o mesmo momento: esse em que ficar com mulheres é mais uma boa opção. Mas e antes? Quando a vida era exclusivamente hétero, rolava desejo por mulher? “Não. Eu só tinha olhos para os homens. E gostava do cheiro, do corpo pesado, da barba, da voz mais grave”, responde Juliana. Para Ângela não era bem assim: “Eu tinha sonhos e transava com mulheres neles. Mas ficava nisso. Até que surgiu Milena, a mulher que me fez querer flertar, me entregar e repetir a dose”. (Mais sobre a história das duas a seguir.)
LEIA TAMBÉM: Fomos a fundo no sexo oral e descobrimos que nos responsabilizamos pouco pelo nosso prazer
Fora da caixinha
São histórias parecidas: nenhuma dessas mulheres pretendia se envolver de fato com outra mulher. Para elas, namorar, casar e morar junto com homens era o destino programado, a ideia mais comum. Porém, afrouxados os conceitos preestabelecidos – um pouco de álcool e uma noite mais solta costumam aparecer no roteiro –, elas cederam ao desejo. Cederam ainda à luz do dia e à repetição. Com bastante naturalidade – e é aqui que está a novidade –, pegar outras mulheres não é mais um comportamento que se limita a festas ou algo que foi feito uma vez e precisa ser apagado da memória. “Hoje, uma mulher não precisa mais dos valores simbólicos de um homem pra se validar. O que era uma mulher sem um homem há décadas atrás? O que é uma mulher sem um agora? Vale pensar”, propõe a psicanalista Luciana Saddi, autora de O amor leva a um liquidificador (ed. Casa do Psicólogo).
E de certa forma, é como se fôssemos protegidas pelo velho fetiche masculino segundo o qual mulher com mulher é muito sexy. É como se houvesse uma brecha social que nos permita a regalia de pegar nossas amigas. “Que coisa mais linda vocês duas juntas, se pegando sem pudor nenhum”, ouviu Ângela de um ex que, em outros tempos (ou com outro gênero), não seria tão festivo. Realmente é difícil imaginar a mesma cena vivida por dois homens. “É difícil porque uma mulher não deixa de ser mulher quando beija outra, não existe uma ameaça à castração no caso delas”, diz Luciana Saddi. “Pelo contrário, ela pode ser vista como ousada, alguém que vive sua sexualidade plenamente. Enquanto para o homem heterossexual ainda existe um modelo a cumprir: o do macho que precisa penetrar, prover, proteger. Se ele beija o colega de trabalho na pista, ele deixa de ser ‘homem de verdade’. As coisas são desse jeito quando consideramos uma sociedade que valoriza modelos patriarcais.”
“Hoje, uma mulher não precisa mais dos valores simbólicos de um homem pra se validar. O que era uma mulher sem um homem décadas atrás?”
Luciana Saddi
Ângela e Milena, 31, fisioterapeuta recifense, se encontraram em uma aula de tantra. Milena tinha acabado de sair de um relacionamento heterossexual de seis anos quando, na aula experimental, durante um exercício de respiração, sentiu uma conexão inexplicável com Ângela e quis entender o que era. Era sexo, troca, um corpo novo, uma performance nova – tudo à flor da pele. “Foi a primeira vez que senti aquilo por uma mulher e a primeira em que quis ir em frente e fazer tudo. Na noite em que transamos, parecia que eu sabia o que tinha que fazer, onde lamber, onde passar a mão. Foi instintivo, natural, meu corpo sabia exatamente como se comportar”, diz Milena, que evita o rótulo de bissexual. “Estou em uma descoberta, em um tempo de introspecção, de me entender. Não me preocupo em me definir agora.”
LEIA TAMBÉM: Quadrinhos eróticos feitos por mulheres
Bianca – que pega garotas desde sempre – concorda. A definição lhe parece limitadora: apresentar-se como gay, hétero ou bi não é algo que ela faça com naturalidade. “Me interesso por pessoas e classificar meu interesse nessas caixinhas não ajuda. Até mesmo o termo bissexual é redutor porque abrange apenas dois gêneros. E se eu gostar de alguém que não se encaixa em nenhum dos dois?”
Caroline, 22, é estudante de direito na USP. Abriu o namoro com um cara pra ficar com outros caras e também com mulheres. Para o namorado vale a mesma regra. Acontece que, desde que abriram a relação, ela pegou apenas mulheres, já ele, todo mundo. “É o momento que estou vivendo.” Ficar com mulheres traz algo que seu namoro hétero não traz. “Existe uma cumplicidade intensa, um jeito novo de se relacionar. Mulher com mulher beija diferente, transa diferente, não dá pra dizer que não. Acho que é isso de a gente conhecer muito o corpo uma da outra, saber o que funciona.”
Em busca desta prazerosa diversidade, a jornalista mineira Cintia, 34, trai o marido (com quem está há três anos) apenas com mulheres. “Não o traio com homens porque não preciso. Ele me dá tudo o que quero enquanto homem. A gente se ama, a gente se deseja, tá tudo certo, não tenho do que reclamar.” Cintia tem um crush sério por garotas desde a faculdade. “Aproveitei todas as chances que tive de beijar mulheres e ir pra cama com elas. E gostava tanto quanto de sair com homens.” Ela não tem dúvidas: é bissexual. “E acho que desde sempre. Aliás, meu primeiro beijo, aos 10, foi com uma prima, dentro do guardaroupa.” A tara de Cintia por mulheres fica só no sexo: namorar uma mulher nunca foi uma vontade pra ela.
Bi-curious
A antropóloga Mirian Goldenberg investigou casos como o de Cintia no livro Por que homens e mulheres traem? (ed. Record). Há um capítulo dedicado a mulheres que traem seus maridos com amigas. Depois de décadas em casamentos monogâmicos e heterossexuais, as entrevistadas de Mirian queriam cumplicidade, escuta e intimidade profunda. “E conseguiram isso com amigas, que muito provavelmente procuravam o mesmo.” As mulheres com quem conversou (todas com mais de 35 anos e com filhos) não consideram o sexo com as amigas uma traição nem definem o desejo que sentem como bissexual. “São mulheres conservadoras que enxergam nesse comportamento uma forma de experimentar o que não têm em seus casamentos.”
LEIA TAMBÉM: "Eu sou gay"
Um estudo publicado em 2015 na Universidade de Essex, na Inglaterra, indica que o comportamento bi-curious não é tendência passageira. A conclusão da pesquisa é que mulheres “são sempre bissexuais ou gays, e nunca heterossexuais”. Liderado pelo professor Gerulf Rieger, do Departamento de Psicologia, o experimento examinou 345 voluntárias e mostrou a elas trechos de vídeos de mulheres e homens nus. Então, recolheu dados sobre as respostas às cenas (como o mapeamento de pupilas dilatadas durante o estímulo sexual): 74% das mulheres que se disseram heterossexuais ficaram excitadas com as imagens de ambos os gêneros. “Mas isso não significa que elas fiquem de fato com outras mulheres”, esclarece Rieger. Se não ficam, é por que reprimem? “Muito provavelmente sim. É custoso assumir a bissexualidade, ela é um terreno de incertezas. E a riqueza dela está justamente nisso, em ser fluida.”
Nem tudo é repressão consciente. Luciana, 38, profissional de relações públicas, conta que não se lembra de ter reprimido seus desejos. “É que eles não tinham aparecido até eu conhecer a Arlete”, sua namorada americana há um ano. É a primeira mulher com quem Luciana se relacionou na vida. Assumir o namoro com Arlete foi natural, mas sua naturalidade não a privou de notar olhares preconceituosos. Eles existem em todo canto, e aconteceram dentro da família. “No começo minha mãe ficou reticente. Me disse: ‘Só não beija ela na minha frente’. Claro que foi difícil pra mim. Eu amo a Arlete! Queria que ela fosse aceita como qualquer outro namorado foi aceito antes pela minha família.” O estranhamento passou. “Hoje, somos muito bem-aceitas lá em casa. Ainda bem, ou teria que parar de falar com a mãe.”
LEIA TAMBÉM: Melhor sua autoestima gozando
Simone, 34, é cineasta paulistana, abriu o casamento para tentar salvar a união. Na “abertura”, conheceu mulheres e se apaixonou por uma delas: “Mais nova, fresca, feminina, corajosa”. O lance com Rita acabou em romance e terminou com o arranjo pretensamente moderno: Simone e o então marido se separaram de vez.
Autora de O livro do amor (ed. Best Seller), a psicanalista Regina Navarro Lins, aposta num futuro guiado pelo desejo e pela liberdade. “Acredito num amanhã bissexual. Os modelos tradicionais estão em desconstrução. Em dez ou 20 anos, a tendência é de que venhamos a viver relações mais livres, menos engessadas pelos arranjos tradicionais. E esse não deverá ser um privilégio feminino.”
Hoje, em meio ao divórcio legal de seu ex-marido, Simone está sozinha e diz não dispensar a ideia de sair com mulheres. “Faço por desejo e liberdade. Então, pra mim, não tem essa de ser homem ou mulher.”
LEIA TAMBÉM: Técnica de masturbação elimina o estresse por meio do orgasmo
Ilustrações por Camila Fudissaku
Créditos
Imagem principal: Barbara Nitke
Foto por Barbara Nitke. Conheça mais da fotógrafa em: BarbaraNitke.com