Falar essa frase em voz alta foi poderoso. O que eu não sabia é que minha homossexualidade estava longe de me definir
Eu tinha quase 30 anos quando contei a minha mãe que era gay. Ao escutar as palavras “eu sou gay” saindo de mim fui inundada por uma sensação estranha porque era a primeira vez que eu mandava para o mundo a declaração em voz alta. No mesmo instante uma fenda temporal se abriu e tudo ao meu redor parou. São apenas três palavras, mas que, combinadas, carregam enorme força, magia e beleza e talvez tenham mesmo a capacidade de mexer nessa relação tempo-espaço porque é sempre poderoso e misterioso quando alguém, qualquer um, começa a entender quem é.
O que eu não sabia naquela tarde gelada de 2001 é que minha homossexualidade estava longe de me definir e que, embora seja lindo encarar o mundo sem máscaras, a revelação era apenas o começo de uma viagem que seria longa e cheia de interrupções.
Dez anos depois, quando perdi um grande amor em um acidente, o luto me levou a devorar O livro tibetano do viver e do morrer, de Sogyal Rinpoche; uma jornada de 500 páginas que, ao terminar, deixou uma mensagem bastante clara: medite! Medite!
O livro é lindo e me ensinou que estamos aqui para fazer uma coisa apenas: aprender a morrer. E que a única tarefa que pode nos levar a esse aprendizado é a meditação. Passa pelo princípio budista de “seja a mudança que quer ver no mundo”, já que só temos a capacidade de mudar a nós mesmos, ainda que passemos muito tempo tentando teimosamente mudar os outros e o mundo ao nosso redor.
Meditar é basicamente sentar e parar de pensar. Sentar é fácil, mas eu estava prestes a descobrir que parar de pensar é tarefa para heróis. A mente existe para complicar todas as coisas, fazer o papel do diabo que nos habita e, como tal, ela não é facilmente vencida.
Então, depois de algumas tentativas, entendi que aquilo era puxado demais e que eu tinha coisas mais importantes para fazer, o que é, precisamente, um dos jogos favoritos da mente diabólica: assim que você se propõe a parar de pensar ela sai listando todas as tarefas que deveriam estar sendo executadas enquanto você preguiçosamente se entrega ao nada. No silêncio, a culpa se agiganta. Como estou aqui de “bouas” com as perninhas cruzadas com o mundo correndo alucinado lá fora?
Silenciei como pude
É a beleza do sistema que nos embala: ele cria a ilusão de que o universo das coisas objetivas é o único que importa, renega o universo das coisas subjetivas a um plano inferior e transforma a culpa em commodity porque é ela que nos escraviza e paralisa.
Há um ano, tendo que engatinhar para fora da maior história de amor da minha vida e estando reduzida a um farrapo, entendi que era hora de tentar meditar outra vez. Esse é um dos presentes das fases duras da existência: apenas quando estamos reduzidas a nada é que podemos, enfim, ser tudo. E eu então sentei, fechei os olhos e fui para dentro.
“E se todas as coisas forem feitas de consciência e não de átomos?”, pergunta o físico Amit Goswami em seu livro O universo autoconsciente e explicando que a física clássica já é incapaz de dar as respostas que mais buscamos, enquanto a quântica, que recebe com boas-vindas uma pergunta como essa, começa a desvendar muitos mistérios. A noção de que há uma espécie de consciência preenchendo o que enxergamos como espaços vazios ganha adeptos no mundo científico e nos leva a perceber que talvez a separação que experimentamos entre todos nós seja uma ilusão.
No primeiro dia tentando meditar engasguei historicamente em minha própria saliva e cheguei bastante perto de deixar de ser, o que soaria curioso dado que eu estava meditando em busca do oposto. No segundo dia, uma de minhas duas cachorras (as duas ficam deitadas aos meus pés enquanto medito) começou a fazer um barulho irritante com a língua e eu saí do estado meditativo para um de ira performática mandando, com gestos e uivos, que ela parasse com aquilo imediatamente. Mila me olhou assustada e foi deitar bem longe de mim, e eu entendi nessa hora que o trabalho rumo a uma versão menos tosca de mim mesmo seria longo.
Mas, estando irremediavelmente sozinha e perdida, não desisti de tentar, não deixei a mente jogar com minha fraqueza e, dia após dia, sentei e silenciei como pude. Quando não se tem mais para onde ir o único lugar possível é esse que existe dentro.
Tati, uma de minhas ex-mulheres, me disse recentemente: “O que nos prende à dor é o pensamento. Livre-se dele e você se livra do sofrimento”. Ela, que medita há mais tempo do que eu, está convencida de que a única coisa que pode mudar o mundo e o atual estado das coisas é a meditação. “Se todos meditassem viveríamos em um lugar cheio de amor e andaríamos pelas ruas nos abraçando”, ela diz.
Faz alguns meses que a meditação e eu clicamos e que finalmente comecei a desvendar o que existe depois que a mente silencia. Não é fácil alcançar esse lugar ainda que por segundos, a tarefa exige enorme dedicação e esforço, mas uma vez que você vislumbra o nada, como na obra de Michelangelo, você encosta seu dedo no dedo de Deus e, atônita, descobre que esse Deus que um dia disseram que morava fora vive, na verdade, dentro. O historiador Heinrich Zimmer dizia que a estação “A Sabedoria de Buda” está transmitindo constantemente e que para escutá-la é preciso apenas ter um aparelho de rádio. Meditar é esse aparelho.
“Deus, quando decide iniciar seu trabalho de criação, é chamado de ‘ele’”, escreveu o cabalista Moisés de Leon. “Deus, no desdobramento completo do seu ser, bem-aventurança e amor no qual é capaz de ser percebido pelas razões do coração é chamado de ‘vós’; mas Deus em sua manifestação suprema é chamado de ‘eu’.”