Minha casa sou eu

por Antonia Pellegrino
Tpm #140

Antonia Pellegrino: ’Sobre a alegria de se ver em cada detalhe da própria morada’

Clichê: nós somos o lugar onde moramos. Obsessão: anos passados acalentando o desejo de ter uma casa própria. A causa: possivelmente um trauma de infância. O modo como consegui: vendendo minha escrita e ideias para a televisão. Ou seja, escolhendo um trabalho que me permitisse ganhar dinheiro escrevendo. O que ficou pra trás: a literatura – ainda me torno escritora de verdade, com livro publicado, mesa de autógrafo, crítica ruim pra me fazer chorar, um elogio na rua pra arrancar um sorriso e a sensação de que valeu a pena.

A casa: fruto de uma separação. Só a encontrei porque deixei uma vida pra trás e, embora tivesse pra onde ir, não tinha mais onde ficar. Uma amiga disse que atrás de sua casa havia uma casa pra vender. Fui bisbilhotar e não entendi bem qual era, mas pensei que, se fosse aquela de tumbérgia no portão de madeira e parede branca, eu ia ser feliz. Era. Mas não estava à venda. Alugavam-na, no entanto. Bora, já é alguma coisa. Mas minha vontade é comprar. Dias depois de fechar a locação, o proprietário me pergunta: ainda está interessada? Duas semanas depois assinávamos a escritura.

Resultado: eu proprietária de uma casa loft com quarto aberto pra sala e quintal, devendo tanto ao marceneiro quanto ao banco e ao analista, vivendo o ano mais falido da minha vida, mas sempre repleta por arranjos florais colhidos do jardim.

A casa me deu meu amor de volta. E um filho na barriga. As dívidas estavam prestes a ser sanadas, mas eu precisava fazer uma obra. O segundo quarto, o escritório, adeus casa loft, agora preciso de casa família. Fim de contrato e grana entrando na conta. Correria dos diabos pra tudo acontecer antes do parto. Acabou acontecendo sem minha presença – era um momento de muito trabalho e alta saída de capital, eu precisava trabalhar. Essa equação não fecha. Não se pode delegar todas as fases de uma obra, porque uma obra é uma cirurgia na casa, é quando ela te pede cuidados – eu não pude dar. 

Mão na massa

A conta: primeiro culpei meu pai, autor do projeto; depois, meu irmão, que acompanhava o dia a dia da construção; e só depois tive a coragem de ver que os erros ali inscritos eram meus, de mais ninguém. Eu estava morando nos meus defeitos. Toda a negligência de uma vida podia ser lida nas infiltrações dos aparelhos de ar-condicionado. Cada lauda que escrevi nas coxas estava ali, manifesta na bomba de água quebrada. Minha dificuldade em manter padrões, eu via, era claro, no material do piso que mudava sem razão. A casa sonho me perseguia, mostrando em seus detalhes tudo aquilo que precisava ser refeito, transformado em mim e nela. Eu precisava de mais rigor, força e grana. E tive.

A segunda obra aconteceu na gestação de meu segundo filho. Não havia dia em que eu não fosse lá. Subia e descia escadas de barriga grande, acompanhava cada detalhe, aprendi o que é rufo, chapim, plaina, tico-tico, rejunte, frontispício. Agora sei que massa corrida no ar deixa de correr e pra fazer deque precisa de cunha e barrote. Gosto de eu mesma meter a mão na massa, conversar feito homem com engenheiro e adormecer sonhando com cada detalhe do acabamento.

Foi o que fiz até ficar pronto, e perceber que não era bem aquilo. Mas faltava pouco. Como assim, você tá maluca? Por que não ajustar o pouco? Agora, ficou pronto de novo, agora sim posso me ver em cada detalhe da minha casa e sentir o espírito leve. Cada um deles eu pensei, repensei, experimentei, tive ajuda, pesquisei, fui lá e fiz. A história dos erros e acertos da casa é a minha história. E hoje, quando eu olho ao redor, sinto uma alegria imensa por morar ali e oferecer aquele lugar à minha família. E sinto também um comprometimento bom, de ter a responsabilidade de me manter como a minha casa é.

Antonia Pellegrino, 32 anos, é ro­te­irista e escritora. É dela o roteiro da série Oscar Freire 279. Ela ganhou o Grande Prêmio do Cinema Brasileiro pelo roteiro do filme Bruna Surfistinha. Seu e-mail: a.pellegrino@terra.com.br

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