A ilusão da separação

por Milly Lacombe
Tpm #178

”Estamos no meio de uma revolução e, desta vez, se me permitem a ousadia de uma profecia, o específico feminino vai nos libertar a todas e a todos”

Existe entre as mulheres a noção de que a solidariedade é a base das relações sociais. A ideia de que bens podem ser compartilhados é uma das mais marcantes características atribuídas ao universo feminino. Outras, que dizem respeito a afeto, cuidado e sensibilidade, vêm na esteira. Homens são encorajados a dizer o que sentem quando se trata de demonstrar raiva ou orgulho e quase nada além disso. Mas todas nós conhecemos homens inundados de características atribuídas ao feminino e mulheres movidas por sintomas de masculinidade tóxica, que chegam a cargos de poder e tratam de perpetuar sistemas de dominação e de opressão, se opondo às principais pautas da agenda feminista, que visa livrar a todos – homens e mulheres – das correntes do patriarcado que tanta dor, paralisia e separação causam.

Até pouco tempo atrás, era esperado que uma mulher em cargo de liderança apenas reproduzisse a cartilha de comando escrita por homens, que reforçava as características consideradas masculinas e suprimia as femininas: chorar jamais, gritar quase sempre, abusar moralmente é aceitável em nome da produtividade do time, não se importar com as dificuldades da vida pessoal dos subordinados e tantas outras atitudes capazes de causar dor, tristeza, humilhação. Mas estamos no meio de uma revolução e, desta vez, se me permitem a ousadia de uma profecia, o específico feminino vai nos libertar a todas e a todos.

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O útero como território político, a pele como vestimenta de luta, os pelos como bandeira de resistência. Embebidas do maior poder do mundo – o de gerar e servir como abrigo para uma nova vida –, 
vamos recontar histórias e narrar outras que jamais vieram à tona. Vamos exercer esse invejável e exclusivíssimo poder, o de dar à luz, optando livremente até por desviar a energia criativa da gestação para outros aspectos da existência que não sejam necessariamente o da maternidade. Vamos reconstruir relações de trabalho executando lideranças humanas, cooperativas, solidárias. Vamos ensinar a amar, e não a odiar. 
Vamos ter a coragem de incluir e impedir que qualquer uma de nós seja excluída. Vamos criar homens repletos de feminino e mulheres que levantarão orgulhosas a bandeira do feminismo até que não haja mais nenhuma de nós passando fome, sendo discriminada por conta da cor de nossas peles, abusada por causa de nossa verdade anatômica, privada de manifestar amplamente nosso desejo sexual e erótico, impedida de falar, de gritar, de gozar.

Esse é o mundo que está logo ali, ainda que tudo pareça indicar o contrário. É um mundo que conta com homens e com mulheres. Conta com lésbicas, com gays, com bis, com negras, com negros, com trans, com cis, com travestis e com prostitutas. Conta com nossas dores e com nossa coragem. Um mundo que abriga todas e todos. Um mundo no qual homens estarão libertados da masculinidade tóxica que os devora, dilacera e isola, e em que mulheres exercerão lideranças solidárias e inclusivas.

Não tem mais volta, nada jamais será como antes: seguimos juntas e misturadas.

Bem-vindas à nova era. Bem-vindas à luta. Ela inclui todas e todos. E vai ser linda.

 

Créditos

Imagem principal: Billy Ray/Getty Images

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