Cansadas de ser vistas como corpos quebrados com peças em busca de conserto, as pessoas agora querem ser tratadas por inteiro e buscam resposta na medicina integrativa
Cena 1 – Marilena Fernandes de Araújo está em um box do Centro de Oncologia do Hospital Israelita Albert Einstein, em São Paulo, prestes a começar sua sessão de quimioterapia. Diagnosticada com um câncer no ovário, ela já tinha passado por uma cirurgia – foram 13 no total – e se sentia, acima de tudo, irritada.
Cena 2 – Marilena Fernandes de Araújo está no avião, seu lugar preferido no mundo para relaxar. Quando as portas da aeronave se fecham, ela se transporta, literalmente, para as nuvens. E, sem qualquer tensão, aproveita para fazer um balanço da vida e dos últimos tempos.
Por mais difícil que possa parecer, essas duas cenas aconteceram no mesmo dia, com uma diferença de poucos segundos. O que se passou entre elas foi a sessão de terapia do toque vivenciada por Marilena antes de iniciar mais uma quimio. Com a luz do ambiente reduzida e silêncio total, ela foi induzida por um dos terapeutas do setor de Medicina Integrativa do hospital a se imaginar além das paredes daquele ambulatório. O desafio era se teletransportar para o lugar em que mais gostava de estar e, como fã convicta de aviões, lá foi ela buscar um deles em seu céu imaginário. “Nesse dia, eu saí da quimio de um jeito totalmente diferente, calma. E, a partir dali, meu tratamento se transformou. Eu aprendi a relaxar tanto que cheguei a dormir. Sem essa terapia, as sessões teriam sido uma tortura. Foi algo que mudou a minha vida”, relembra ela, que, de tão fã do processo, acabou se tornando conselheira do projeto de humanização do Hospital Israelita Albert Einstein.
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Não faz muito tempo, uma história bem diferente foi vivida em outro hospital paulistano por um paciente com câncer de pescoço e cabeça. Os médicos fizeram o que era preciso para salvá-lo e tiraram sua mandíbula sem que ele tivesse participação nas decisões tomadas ao longo do processo.
Ao voltar para as consultas com um lenço do nariz para baixo, ouviu dos profissionais que estava curado. E respondeu: “Mas eu não estou feliz”. Surpresos, os médicos repetiram: “Mas o senhor está curado”. E a resposta veio sem qualquer sombra de dúvida: “Se eu soubesse que isso era cura, preferia continuar doente. Não consigo viver assim”.
Do osso à alma
Esses dois tipos de relato são frequentes na realidade dos hospitais brasileiros. Por aqui, a medicina ainda luta para superar alguns efeitos negativos de um século 20 centrado exclusivamente no tratamento das doenças. Do cirurgião focado no osso do ombro àquele que sabe tudo de calcanhar, os médicos foram ficando cada vez mais especializados e voltados para sintomas, muito por causa das novas tecnologias e da indústria farmacêutica, que cresceu em velocidade galopante. “A saúde não podia continuar daquele jeito, apenas medicando e com cada vez mais pessoas cronificadas. Uma medicina cara e difícil de se sustentar”, coloca Emilio Telesi Junior, da Secretaria Municipal da Saúde de São Paulo.
Nos últimos anos, ainda que timidamente, uma abordagem mais humana, popularmente conhecida como medicina integrativa, vem ganhando espaço e anunciando a necessidade de uma transformação. “O corpo não pode mais ser visto como uma máquina que precisa de conserto”, analisa Maria Ester Massola, especialista em ioga e karatê e coordenadora da equipe de Medicina Integrativa do Einstein. Essa nova visão que está ganhando força tem como principal proposta enxergar o indivíduo como um todo, levando em consideração corpo, mente e espírito, e estabelecer uma relação de parceria entre o profissional de saúde e o paciente. Mas não se trata de abandonar o modo vigente até aqui de fazer medicina.
Inclusiva, a abordagem integrativa trabalha junto da prática convencional para trazer bem-estar e qualidade de vida na doença e na cura, sempre com base em evidências.
“ As pessoas não querem mais especialistas que só olham para exames e sintomas ”
Denise Tiemi Noguchi, médica
“Estamos vivendo o momento de transição entre o foco na doença e a necessidade de compor o cuidado de forma mais ampla, junto com a percepção do paciente e da família. É possível que haja conflitos entre os que ficam obsessivos no projeto de cuidar da doença e os que excluem a doença e responsabilizam o paciente e seus hábitos por tudo que acontece com ele. Como toda transformação cultural, exige paciência”, analisa a médica Ana Claudia Arantes, especialista em Cuidados Paliativos e Suporte ao Luto e homenageada no Trip Transformadores 2018.
Fala que eu te escuto
Hoje, com a democratização das informações, os pacientes – e seus familiares – chegam aos consultórios muito mais preparados e conscientes de suas condições e possibilidades. “As pessoas não querem mais especialistas que só olham para exames e sintomas. Elas esperam encontrar no profissional de saúde alguém com quem possam trocar e debater ideias”, explica Denise Tiemi Noguchi, médica responsável pela Medicina Integrativa do Einstein.
Para isso, faz-se necessária a escuta, verdadeira, presente, empática e amorosa, que só pode acontecer em consultas que não são acompanhadas de receitas preestabelecidas, ou de um cronômetro – um estudo americano recente apontou que, em média, os médicos demoram apenas 11 segundos até interromper os pacientes. “Não importa se você vai indicar uma massagem ou dar uma injeção. Em qualquer ação terapêutica, a comunicação é muito importante. E metade dessa comunicação é escuta”, avalia Plínio Cutait, mestre de Reiki e coordenador do Núcleo de Cuidados Integrativos do Hospital Sírio Libanês há 12 anos.
Fundamental a qualquer abordagem mais humana da medicina, tal característica ainda é um desafio quando olhamos para um quadro mais amplo do país.
Portadora de fibromialgia (distúrbio que causa dor crônica em diferentes partes do corpo), a cabeleireira aposentada Luciana Almeida perdeu as contas de quantas vezes se sentiu invisível no SUS. O sistema de saúde já oferece uma série de práticas integrativas, o que é considerado uma vitória, mas elas estão disponíveis em poucas unidades. “Quando falo da minha condição, me passam direto para a psiquiatria. Sem me ouvir, insistem em dizer que é um problema emocional, quando, na verdade, se trata de uma dor causada por uma deficiência no cérebro. Tudo que fazem é me dar um calmante e me mandar para casa.” Já acostumada a lidar com esse tipo de situação, ela, que sente dor 24 horas por dia, tem o hábito de estudar e passar as informações do seu caso aos médicos.
Essa história também é minha
“O principal benefício da medicina integrativa é enxergar o paciente como pessoa e não como doença. Eu não sou um número, mas a Simone. É difícil porque o envolvimento é maior, mas melhora muito a comunicação”, coloca Simone Mozzilli, homenageada no Trip Transformadores 2019 por seu trabalho à frente da ONG Beaba, que desmistifica o câncer ao ensinar termos médicos para crianças e acompanhantes. Em 2011, ela enfrentava o tratamento de um tumor de ovário em fase avançada, quando recebeu de um hospital oncológico um kit de higiene contendo xampu e toca de cabelo – detalhe: Simone estava careca. “Tinha sido diagnosticada recentemente e ainda estava aprendendo a lidar com todas as mudanças físicas que vêm com o tratamento. Me senti muito incompreendida.”
Na busca por técnicas integrativas que contribuíssem para sua condição, Simone descobriu que a meditação convencional a deixava mais ansiosa, mas acabou se apaixonando pelos efeitos do chi kung, técnica oriental que mistura respiração e movimento. “É preciso entender que cada pessoa tem uma história única e muitas dimensões que precisam ser acolhidas e cuidadas”, coloca Maria Ester Massola.
Encontrar um caminho de bem-estar que funcione para cada caso também tem a ver com outros dois pilares dessa nova abordagem: a autonomia e o autocuidado.
É fundamental que o paciente se empodere de seu processo de saúde e aprenda a encontrar seus recursos internos para, então, praticar o autocuidado. Isso envolve hábitos alimentares, atividade física, gestão de estresse, cuidados com o sono, contato com a natureza, qualidade nos relacionamentos e até espiritualidade. “Não aprendemos a nos responsabilizar por nossos processos de saúde. Muitos querem receitas prontas e até milagres. Mas é importante que o paciente se torne cada vez mais ativo, participando nas escolhas e compartilhando as decisões com a equipe”, relembra Ester.
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“Não estou tratando a doença com Reiki, mas o indivíduo. Meu trabalho não é eliminar a doença, mas cuidar da pessoa em sua integralidade”
Plínio Cutait
Acima de tudo, o desafio é viver o presente e procurar soluções dentro do que é possível hoje. “Sem algo inatingível como a felicidade plena, mas entendendo que, mesmo numa grande doença, no estresse ou na terminalidade da vida, é possível encontrar o bem-estar”, coloca Denise.
Buscar essa sensação de conforto passa longe de ser um luxo e tem seus benefícios provados. Com mais consciência e participação, ganha-se também engajamento e confiança no processo, na capacidade de cura e até na vida em si. Há quem enxergue como fé, mas o fato é que o processo contribui para a medicina de uma maneira geral. “Quando você acredita no que está fazendo, toma mais cuidado. Pode ser um pequeno detalhe que te traz confiança e isso influencia em outros aspectos da sua vida. Você vai, por exemplo, fazer questão de tomar o remédio no horário certo. É algo macro mesmo”, aponta Simone.
Náuseas e outros sintomas são reduzidos, claro, mas, mais do que quantitativos, os resultados costumam ser qualitativos. “Conquistar um estado de equilíbrio global é uma grande contribuição dessas práticas”, diz Plínio Cutait. Para entender, vale perguntar para Plínio se o Reiki é capaz de curar o câncer. “Eu não estou tratando a doença com Reiki, mas o indivíduo. Meu trabalho não é eliminar a doença, mas cuidar da pessoa em sua integralidade. Ajudá-la a encontrar suas próprias forças para que enfrente melhor sua condição e o tratamento”, ele explica.
Foi o que entendeu a médica Ana Claudia Arantes. Depois de muito reclamar, decidiu abrir sua própria empresa de cuidados paliativos para incluir nela uma profissional dedicada à visão integrativa. Agora, quando vai tratar a dor com seus saberes técnicos, por exemplo, consegue dar uma dose menor de medicamento e com menos efeitos colaterais em um paciente que recebeu essas práticas. “Não se trata de ver quem tem razão, mas, sim, complementar os saberes para obter melhores resultados. O objetivo comum é o bem-estar do paciente e, assim, entender qual é o espaço que cada conhecimento ocupa nesse caminho.”
Créditos
Imagem principal: Javier Mayoral/Pulpbrother