por Redação
Tpm #63

Dos seis apóstolos da minha vida, ele era o único que não fazia a menor questão de olhar nos meus olhos

Crianças não eram meu forte, tampouco faziam parte de meus planos. Antes de ser apresentada a meus seis sobrinhos, não imaginava que teria que lidar com esses seres humanos minúsculos em doses diárias. Não imaginava que teria que buscar recursos para entretê-los, alimentá-los e, pior ainda, conquistá-los.

Mesmo sem o talento específico para seduzi-los, os pequenos heróis de minha vida foram caindo em meus desajeitados truques, se transformando em meus melhores amigos, e em minha mais animada audiência.  

Todos.  

Menos um. Marcelo.  

Aos 2 anos e meio, assiste ao mundo agarrado à segurança que só o colo materno oferece. Ao contrário dos outros cinco apóstolos, ignora minha existência. Posso plantar bananeira e virar cambalhota, posso aparecer com balas e carrinhos coloridos, nada o seduz.  

A mãe insiste: “Sinu (o apelido que encontraram para diferenciar o garoto do pai), dá oi pra Milly!”, “Sinu, agradece o presente que a Milly trouxe”, “Sinu, vai ver se a Milly se machucou depois da cambalhota”. Mas o menino Sinu apenas esconde o rosto envergonhado na barra do vestido da mãe.  

Frustrada e sem saber como conquistá-lo, decidi esperar pelo dia em que ele, por um motivo qualquer, me enxergaria. Desisti das balas, dos carrinhos e nunca mais precisei ir ao carioprata colocar uma vértebra no lugar.  

Em um domingo de fevereiro, fui à casa de minha irmã. Francisco, irmão de Marcelo, celebrava 4 anos de vida. Cheguei cedo e só encontrei Estela, a mais velha, e Francisco. Marcelo tinha saído com o pai para comprar refrigerante ou coisa que o valha.  

Na sala, abrimos o pacote do presente e espalhamos pelo chão as partes da pista de carrinho matchbox a fim de dar forma à parafernália. Ficamos ali, nós três, tentando sacar que peça grudava em qual outra – tarefa que os fabricantes de brinquedos entendem fazer parte da diversão – quando os Marcelos chegaram.  


E o mundo parou ali  

Ao me ver dentro de sua casa, Sinu ficou estático na porta, como um cone, sem esboçar reação, sem entrar ou sair. Decidi que iria encará-lo e ver quem tirava os olhos primeiro. O duelo de olhares durou vários segundos, para espanto de Francisco e Estela, que não sabiam o que estava acontecendo, ou por que havíamos parado de montar o brinquedo.  


Ao me ver dentro de sua casa, Sinu ficou estático na porta, como um cone, sem esboçar reação, sem entrar ou sair. Decidi que iria encará-lo e ver quem tirava os olhos primeiro. O duelo de olhares durou vários segundos, para espanto de Francisco e Estela, que não sabiam o que estava acontecendo, ou por que havíamos parado de montar o brinquedo.  

Sinu veio vindo lentamente em minha direção. Para não assustá-lo, continuei parada, olhando seus movimentos. E ele continuou andando.  

Ao chegar bem perto, abriu magnanimamente os bracinhos.  

E eu, de joelhos – se não para ficar da sua altura, para fazer justiça à grandeza do gesto de meu pequenino rei –, me deixei agasalhar. Em troca, coloquei a mão na sua cabecinha e a apertei contra meu peito. E assim ficamos por longos e intermináveis segundos: nem ele nem eu parecíamos interessados em fazer o mundo voltar a girar.  

Quando nos desgarramos, não éramos mais os mesmos. Já parte integrante de seu radar, fui levada pela mãozinha para a varanda, “pra brincar de pauendges (Power Rangers, pois não)”.  

O impacto que aquele pequeno grande abraço teve em meu dia e em minha existência jamais será medido. Porque as melhores coisas da vida não podem ser quantificadas por nossos rasos sentidos. E porque não há no mundo força maior do que a que vem do amor sincero e honesto de uma criança.  

A mãe do pequeno e indefeso João Hélio Fernandes, assassinado no Rio de forma brutal no mês passado, teve esse carinho arrancado aos safanões de suas mãos. E eu, que não acredito nessas coisas, me pego torcendo para que, num lugar nem tão longe, nem tão carente de amor, eles possam voltar a se abraçar. Uma esperança vazia porque, por ora, diante de tudo o que tem acontecido, apenas a não-existência de um Deus poderia desculpá-lo.  

E, enquanto lá fora o mundo não faz sentido, aqui dentro eu me agasalho no abraço apertado de meus descendentes. São eles que me fazem acreditar que deve haver uma razão. Mas, talvez mais do que isso, são eles que me fazem crer na divindade que existe em cada pôr-do-sol, e em cada um de nós.

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