Voltarei ao quarto rosa de onde nunca saí, e saberei tudo sobre bonecas e Melissas
No último dia 9 de julho, veio ao mundo, e mais precisamente ao bairro carioca do Humaitá, uma pequena chamada Dora. Não fosse Dora minha afilhada, não fosse Dora uma menina, não fosse Dora um ser de um deus em que eu passo a crer sempre que entro em uma maternidade, esse seria apenas um fato singelo e matemático. Duas pessoas viraram uma. Duas pessoas viraram três. Uma criança nasceu. Houve charutos e emoção. Houve sentido.
Mas a verdade é que esse projeto de minimorena francesa – cuja mãe nasceu em Aix-en-Provence, em pleno exílio de seus pais, só pra transmitir à sua filha nacionalidade tão charmosa – me aqueceu o coração escaldado, e, o que é pior, inadvertidamente. Sou mãe de meninos, irmã de meninos, tenho pai e padrasto, marido e ex-marido e, se há algo no mundo que conheço, é o cromossomo Y. Esse era meu lugar no mundo, minha confortável cadeira cativa do Maracanã.
Mas agora, como essa garota há de ter uma madrinha à altura do significado mais elevado da função, garanto: voltarei ao quarto rosa de onde nunca saí completamente, e saberei tudo sobre bonecas e Melissas.
Porque não foi à toa que, ao receber um torpedo do tio Rafael avisando do seu nascimento, eu imediatamente tomei o rumo da Casa de Saúde São José a tempo de ser a primeira a ver sua mãe sair do centro cirúrgico. E ela estava feliz, minha afilhada. Sua mãe te esperou a vida toda.
Serei firme, Dora. Parceira, divertida. Faremos compras fúteis, veremos filmes americanos que sua mãe comunista condenaria, comeremos língua de gato da Kopenhagen até passar mal. Daremos as mãos na rua como se não fosse nada e me exibirei a mim mesma. Porque o título que me deste ao nascer tornou imediatamente mais leves todas as ausências femininas que carregava silenciosamente comigo e que agora, por sua causa, me acompanham serenas.
Olha, eu não acho que a vida só faça sentido sendo mãe. Mas eu tenho certeza absoluta de que passar por aqui e não acompanhar a chegada de uma criança, e não ver de perto uma mulher virar uma mãe, sem isso não sei se dá pra compactuar com a propaganda do planeta azul.
Perfumaria
Escuta aqui, garota: não será no estádio, já que teu padrinho é flamenguista como teus pais e eu sou o contrário bem oposto, pra não dizer tricolor. Não será nas peças infantis, porque algo me impede de ver adultos fantasiados de insetos; e, desculpe, talvez não seja também nas apresentações de fim de ano da escola, às oito da manhã de um sábado de dezembro. Mas estarei ao seu lado, Dora. Como tua mãe tantas vezes esteve ao meu, e várias outras grandes amigas estiveram. Mães tardias que eu ganhei depois de adulta.
Com 36 anos eu acabo de ser convidada pra outra festa. Minha afilhada e tudo o que ela vai significar. A menina que eu fui e ainda sou, a mulher que eu era e a que chegou no instante em que avistei Dora e Moe-
ma no mesmo hospital que acolheu meus rebentos.
E agora me lembro da singular emoção que senti ao sair da sala de parto quando, aos 27 anos, tive João. Estava ainda na maca quando vi minha mãe como se fosse a primeira vez e senti estar tocando no Tempo, ele mesmo, com maiúscula, como na música do Caetano. Troquei de pele ao passar por uma porta e com o olhar cúmplice da minha progenitora. Minha vida passou com um Rachmaninov ao fundo e me vi menina e mulher num instante que acabou ali. Mas que talvez volte quando vir meus filhos sendo pais e perceber com alegria e tristeza que é chegada a hora de ser deixada pra trás.
Bem-vinda, Dora.
Maria Ribeiro, 36 anos, é atriz e diretora do documentário Domingos, sobre o diretor de teatro e de cinema Domingos Oliveira. Atuou em Tropa de elite, em 2007, e em Tropa de elite 2, em 2010. Seu e-mail: ribeirom@globo.com