Cultuado fotógrafo de nudez não acredita em nu artístico e gosta mesmo é de retratar gente (pelada ou não)

Certos temas estão à flor da pele, analisados como grandes fenômenos dos nossos dias: superexposição da nudez feminina, padrões inatingíveis de beleza, hipersexualização da sociedade, narcisismo e insegurança em relação ao próprio corpo como regras... Nada disso parece fazer muito sentido para J.R. Duran, que dá de ombros toda vez que provocado: “Acho que non”, responde, insistindo em seu sotaque catalão, que não o abandona mesmo depois de 43 anos de Brasil. “Tudo sempre foi assim”, diz, evitando filosofar sobre um assunto que, no fundo, entende como poucos: mulher pelada. Talvez por ter despido, sob todos os ângulos, formas e luzes possíveis, mais mulheres do que qualquer sultão, Duran entenda a nudez e todo o imaginário que a cerca como algo... normal. Simples assim.

Normal ou não, poucos vão discutir que no país da “mulher mais sexy do mundo” ninguém sabe deixá-la tão sexy como Duran. Desde os anos 70 até hoje, aos 60 anos de idade, realizou incontáveis ensaios e capas de revista com inúmeros símbolos sexuais do Brasil. Das top models mais abastadas às celebridades mais abestadas, das musas de gerações às turbinadas da semana... Mas esse portfólio, de longe, não lhe bate como um carma. “Não sou um fotógrafo de nu”, explica, “sou um fotógrafo. Ponto.” E, se tiver que detalhar, depois de muita insistência, o que está por trás de tantas fotos que ajudaram a definir boa parte do imaginário da nudez feminina brasileira, ele disseca: “São basicamente os mesmos personagens. O peito, a bunda e o púbis. O que faz a imagem especial? Pra mim é a sensação de intimidade que transmite o melhor do nu”.

É intimidade, no fundo, o que ele busca com qualquer de seus retratados, vestidos ou não. Algo que Duran encara como a essência de seu ofício: “Me considero um fisionomista. Alguém que busca entender a pessoa através da imagem dela, que tenta ver algo real naquela pessoa que nem ela mesma sabe”. É assim que pauta não apenas seus ensaios de nu, moda, publicidade ou expedições, mas também a Revista Nacional, sua publicação anual. Distribuída para um mailing seleto (ou à venda por módicos R$ 278), é nessa revista que Duran clica e edita as matérias – e as moças nuas – que a imprensa não viu. Só mais um jeito de seguir sua vontade de “criar algo que passe verossimilhança. Revelar algo real, algo do mundo. Mesmo que a partir de uma ficção. No fundo, busco uma fotografia naturalista. Um tipo de luz que não saiu de mim desde o verão de 1969”.

Capturar o tempo

Duran está falando da temporada que antecedeu sua vinda ao Brasil, depois de os pais anunciarem ao jovem Josep Ruaix (o J.R.) que a família iria mudar de país. Foi, então, passar uns meses em Saint-Tropez. “Tudo volta para esse verão. Tinha uma coisa ali que de alguma forma busco nas minhas fotos. Talvez, se não tivesse feito o que fiz, minha vida, meu olhar, minha fotografia fossem diferentes hoje.”

Um tipo de nostalgia que não remói o passado, mas se manifesta no presente. Um tipo de obsessão por experiências que acompanha seu discurso avesso a ideais cristalizados, mas que faz todo o sentido para um sujeito tão apaixonado pelo presente que se tornou um colecionador de instantes. Alguém que tenta, em cliques, nos desenhos que faz, nos livros e diários que escreve e nas cartas que manda para si mesmo (e nunca abre), capturar o tempo.

Na entrevista a seguir, Duran desnuda o senso comum de que a mulher está mais insegura em relação ao corpo. Que não se aceita nua. Que o excesso de fotografias transforma a relação das pessoas com a própria imagem. Que o padrão de beleza mudou. E nega que esteja, como tantos acreditam, em uma cruzada contra o Instagram.

Então, em inglês, como o catalão mais requisitado do Brasil anuncia o começo de suas saraivadas de fotos: “It’s showtime!”.

Tpm. Vivemos em uma sociedade obcecada pela imagem. Você acha que a própria invenção da fotografia fez isso? Mudou a maneira como as pessoas se enxergam e se relacionam com a própria imagem?
J.R. Duran. Acho que não... Por quê?

Em primeiro lugar, antes as pessoas só podiam contar com a memória para saber como elas eram. A imagem que tínhamos de nós mesmos era sempre a atual. Não sei se concordo com isso. As pessoas comuns não tinham imagens, quem tinha que ter a imagem registrada tinha, que eram os reis etc. Sempre houve os pintores, a imagem idealizada sempre existiu. Tem uma coisa curiosa: as pessoas discutem muito sobre o Photoshop hoje, e claro que há barbaridades, mas sempre existiu a imagem manipulada. Tem a história de um pintor chamado [Jean-Auguste Dominique] Ingres. Em certo momento, ele queria ser um dos pintores favoritos do Napoleão [Bonaparte]. Ele fez uma pintura tão idealizada do Napoleão, que o cara não gostou, não reconheceu o retrato como dele. E ele perdeu o cargo. Não era Photoshop, mas era o mesmo processo de idealizar a alma, o ego do cara, sei lá. O quadro existe até hoje. Mas não sei, não sei.

 

“Você reconhece que um filme é dos anos 60 ou 70 pelo corte de cabelo. No nu, o que muda é o tipo de depilação”

 

É que a impressão é a de que isso passou para um nível muito mais difundido e, talvez, banalizado. Pode ser. Mas não penso muito sobre essas coisas. Sou um fazedor. Acho que sempre existiu a vaidade, seja masculina, seja feminina, e as pessoas sempre querem ficar bem na foto. Tem dois universos complementares: o fotojornalismo, em que você reproduz uma realidade e está transmitindo uma informação, e o resto, em que não há um compromisso com a realidade. O cara que fotografa as férias quer mostrar que estava em um lugar mais bonito do que realmente estava. Sempre houve essa tentativa de otimização da foto.

E em relação às pessoas que você fotografa nuas? Existe uma preocupação maior com o resultado, como um padrão estético? Acho que não. Sempre foi igual.

Mas existe essa impressão, pelo menos no senso comum, de que a gente vive em uma sociedade mais exigente, com um padrão mais inatingível. Eu não sinto tanto isso.

Mas nada mudou desde quando você começou a fotografar até agora? A única coisa que muda é o corte de cabelo. Você reconhece que um filme, uma foto são dos anos 60 ou 70 pelo corte de cabelo. No nu também. O que muda mesmo é o tipo de depilação.

Mas não muda o tipo de corpo? Nas edições mais antigas da Playboy brasileira, as musas tinham peitos pequenos. Eu não posso falar pelas revistas, cada uma tem um ponto de vista e um público. Não consigo generalizar, até porque fotografo todo tipo de pessoa. Surgem fenômenos, existe o body building, a obsessão por determinado corpo. Mas nem todas as pessoas têm essa obsessão, não é assim tão evidente.

Mas insisto: não estamos assistindo a um aumento na idealização de um padrão de corpo, sobretudo o feminino? É mais difícil para a mulher se aceitar imperfeita hoje do que há 20, 30 anos? Acho que não. No geral, acho que as pessoas estão mais confortáveis com o próprio corpo do que antigamente. Hoje, fotos de mulheres nuas não são mais tanto motivo de frisson. Se há algo que talvez deixe as pessoas mais obcecadas pela imagem, é a expectativa de vida mais longa. Talvez por isso exista cada vez mais essa indústria de tentar prolongar a juventude.

Mas e as garotas que fazem cirurgia plástica cada vez mais cedo, colocam silicone aos
18 anos?
Mas aí é problema dos pais, né?

Mas o que leva as próprias meninas a desejarem isso não é um dado cultural também? Uma exposição massiva que leva quase à imposição de padrões de beleza? Não sei. Até porque não vejo isso como um problema ou fenômeno. Se você pensar na fotografia de nu... Antes da fotografia, os meios de transmissão de imagens eram a pintura e o desenho. E quase todo pintor de qualquer época pintava nus. Hoje tem mais porque tem mais gente no mundo. Tem mais tudo. Mais gente peituda, mais gente bunduda, mais gente a fim de ficar bem na foto. Acho que, teoricamente, não muda nada. Mas uma coisa que mudou foram as revistas.

De que forma? O grande concorrente da revista masculina, do nu feminino, é a revista de celebridade. Antigamente não tinha esse tipo de revista. Então, uma atriz que queria ganhar um dinheirão rápido podia fotografar nua, não tinha concorrência na internet, nada. A nudez podia ser mais romântica e tinha um valor maior nas bancas. Agora, as atrizes, as celebridades são assunto de outra forma. E ganham seus cachês altos vendendo perfume, carro... Houve um deslocamento de personagens. E apareceram as celebridades instantâneas. Para elas, o nu é um meio de vida, um meio de aparecer.

Um meio de começar uma carreira? Mas isso não é um problema. Veja a Playboy, por exemplo. Fazer Playboy hoje é um multiplicador. É meio como o dinheiro. Ele só multiplica o que você já tem ou o que você é. Se você é uma pessoa feliz, vai ficar mais feliz se tiver dinheiro. Se você for canalha, vai ser mais canalha. Se você for infeliz, você vai ser muito mais infeliz. A revista de nu é mais ou menos assim. Tem pessoas que fizeram ensaios nuas e partiram para carreiras completamente diferentes. Tem gente que não dá em nada. E tem gente como a Grazi Massafera e a Sabrina Sato, essas mulheres incríveis. Fizeram Big Brother, fizeram nu, e quase ninguém lembra disso. Uma é uma baita atriz, casada com um cara maravilhoso, a outra virou humorista, com luz própria. Então a exposição funciona, mas depois cada um vai seguir um caminho de acordo com o que é.

 

“Quando cheguei ao Brasil, onde achei que seria a maior liberdade, a nudez na praia não acontecia”

 

Me fala da sua chegada ao Brasil. Por que veio morar aqui? Meus pais vieram pra cá, eu tinha 18 anos. No dia 2 de janeiro de 1970 desembarquei no porto do Rio de Janeiro.

O que os fez deixar a Espanha? Acharam que a vida ia ser melhor aqui. Era uma época em que o Brasil estava começando o milagre econômico e importava muita gente qualificada. Meu pai comprou uma empresa no Brasil porque o governo oferecia muitas vantagens econômicas.

E como você recebeu a notícia de que viria para cá? Era 1969. Meses antes, não sabia o que iria acontecer comigo. Então chutei o pau e resolvi me divertir. Fui passar o verão em Saint-Tropez e Ibiza. Saint-Tropez já era o que é, o topless era uma coisa normal. Em Ibiza as pessoas eram mais
despirocadas do que em qualquer outro lugar. E, quando cheguei ao Brasil, onde achei que seria uau, a maior liberdade, era o contrário. A nudez na praia não acontecia. Fiquei surpreso. Mas era outro comportamento, outro jeito de lidar com o corpo. Por isso digo que as pessoas estão mais confortáveis com o corpo hoje do que antigamente.

E você já tinha a ideia de ser fotógrafo? Não. Cheguei e não tinha a intenção de ser nada. Comecei a ser fotógrafo como assistente do assistente do Marcel Giró, um cara incrível. Quase tudo que aprendi foi com ele. Um catalão, como eu, que morava no Brasil. Quando me decidi pela fotografia, sentia que queria fotografar gente. Mas aquele verão em Saint-Tropez foi decisivo para me definir como fotógrafo.

Como assim? Tinha uma coisa ali, uma luz que nunca mais saiu de mim e que de alguma forma busco nas minhas fotos. Ninguém inventa luz, sempre há uma referência, uma impressão que acabou ficando em você. Talvez, se eu não tivesse feito o que fiz naquele verão, minha vida, meu olhar, minha fotografia fossem diferentes hoje.

E como explicaria essa luz que você busca? Me considero um fotógrafo naturalista. E muito porque tento sempre reproduzir essa luz, que representa para mim um estado de espírito. Fiquei três meses experimentando essa liberdade. E aí voltamos à questão do nu. As pessoas eram descompromissadas naturalmente. E no Brasil foi o contrário. Quando montei meu primeiro estúdio, achei que seria interessante começar a fotografar nu.

E como foi esse começo? Naquela época, no Brasil, não havia fotógrafo de nu. Achei que poderia seguir um caminho que ninguém explorava. Acho que quebrei certos paradigmas porque busquei um nu diferente, descompromissado, feliz... com aquele espírito de Saint-Tropez. E até hoje, na publicidade, sou chamado para dar naturalidade, passar uma sensação de que a coisa é verdadeira. Esse é o pensamento por trás das fotos que faço. E é como literatura, como ficção. O legal é quando a invenção parece real. Por isso também não acredito no tal nu artístico.

Como assim? Não concordo com essa expressão. Uma vez perguntei pro Tarcísio Meira como era beijo técnico. Ele disse que isso não existia. O que existia era um beijo com um monte de técnico em volta. Acho que é mais ou menos isso. O que existe é a boa imagem e a ruim. Se a imagem tem qualidade, não precisa se escorar em nada. Ela se sustenta por si só.

E o que faz uma foto ser boa ou ruim? Aí é o X da questão. Não tem resposta.

Mas sabe por que decidiu ser fotógrafo? A fotografia, pra mim, é uma maneira de viver. É um trabalho que me dá o privilégio de conhecer os mundos em que eu queria viver. Porque a questão no fundo é esta: como quer levar sua vida? Como você entende o mundo? Para mim tem três maneiras: fotografando, lendo e viajando. E o tipo de fotografia que faço me permite viajar.

E como se define como fotógrafo, se não enxerga muita diferença entre o nu, a moda e as imagens que produz nas viagens? Sou basicamente um fotógrafo de publicidade que divide a vida profissional em muitos lados. No fundo me considero um retratista. É que retratista é uma palavra estranha. Mas é algo como fisionomista. Gosto de buscar a alma através da fisionomia da coisa. Quantas vezes fotografo uma modelo e percebo que ela não estava bem com o namorado, ou que acabou de arrumar um? Consigo captar um pouco o fluxo das pessoas que vou retratar.

No ensaio de nu tem alguma sedução para fazer a mulher se sentir mais a fim de tirar a roupa? Não para mim. Não sou um fotógrafo sedutor. Não chego fazendo jogo com a modelo. Explico o que quero fazer, vejo como a pessoa vai ficar confortável. Tem que haver cumplicidade. A sorte que tenho é de ter essa cumplicidade facilmente.

Mas não existe nenhuma diferença na hora de fotografar alguém sem roupa? Quando a pessoa está nua, são basicamente os mesmos personagens. O peito, a bunda e o púbis. O que faz a imagem especial? Não pode ser a aproximação. Pra mim é a sensação de intimidade que transmite o melhor do nu. Essa sensação é o que dá a verossimilhança, o fascínio pela imagem. Mas tenho a sorte de as pessoas tirarem a roupa para mim muito facilmente. Mas é porque eu peço também. Se você não pergunta, ninguém tira.

Mas aí o que facilita é o fato de você ser famoso, não? As pessoas topam tirar a roupa mais tranquilamente para o J.R. Duran... Sim, mas quando você vira uma marca, vamos dizer assim, tem gente que acaba não gostando de você só pelo nome. Mas o lado bom de ter um nome é que as pessoas enxergam como uma garantia de que vai ter um bom resultado. Se a pessoa vai se colocar ali nua, ela quer uma garantia de que vai ficar bem na foto. E eu ofereço a garantia de que vai ser um trabalho memorável. Vai ser melhor do que o, sei lá, Instagram!

 

“Quando viajo, me mando uma carta por dia. É aquela coisa de guardar o tempo”

 

Eu tinha esquecido! Você tem essa sua cruzada contra o Instagram! Não é uma cruzada. É uma provocação. Isso veio do Twitter, que é um lugar que uso pra provocar os outros. Acontece que a difusão da tecnologia colocou câmeras boas no bolso das pessoas. Acho que, quanto mais foto, no fundo, melhor. Mas pego no pé do Instagram porque o repertório é gato, comida, asa de avião e pôr do sol. As pessoas não conseguem comer um prato sem tirar uma foto. É irritante demais. Na verdade acho o Instagram genial porque mostra que fazer uma foto boa é mais complicado do que se imagina. E não fotografo de celular por respeito a mim mesmo. Só vou fotografar o dia em que puder atender um telefonema na minha câmera.

Mas aí você não está condicionando a boa fotografia a um tipo de equipamento? Não teria mais a ver com o olhar? E aí pode ser com um celular ou com uma Hasselblad (marca sueca famosa por suas câmeras de médio-formato)? Nada contra o celular. Mas o fotógrafo autêntico é o cara que não produz as coisas por acaso. Em inglês a palavra é shooting. Que é sinônimo de atirar. E para mim tem esse lado de caça, de mirar e disparar na hora certa. Aí acho que você começa a definir o que um fotógrafo é. A sensação que dá é de que todo mundo se deslumbrou com uma câmera no bolso e fica mostrando um pro outro: “Olha o que eu fiz, olha o que eu fiz!”. Não condeno, mas não é a minha.

E sua carreira de escritor, como começou? Sempre escrevi diários, cartas. Mas, por acaso, o Paulo Lima me convidou para escrever uma coluna na Trip. Comecei a colocar coisas no papel e descobri que também podia escrever. E isso cria uma nova relação com os outros. Por exemplo: no último dia do ano recebi um e-mail de alguém que não conheço dizendo: “Duran, mudei minha opinião a seu respeito. Li seu livro e agora acho que você é um cara legal e não queria que passasse o ano sem te dizer isso, porque me deixei influenciar por algumas pessoas e queria dizer que você é um cara generoso”. Provavelmente a pessoa devia achar que eu era um cretino [risos]. No fundo, escrever tem algo muito parecido com fotografar. Servem para a mesma coisa.

O quê? Para uma coisa curiosa, que é segurar o tempo. Isso é a minha grande coisa. Não é que queira parar o tempo. Mas quero, de alguma maneira, registrá-lo. Está lá, acumulando camadas. Como as cartas ali na estante.

O que tem elas? São cartas que mando para mim mesmo. Mas nunca abro... Isso começou muitos anos atrás. Em 89 fui morar nos EUA para trabalhar com moda. Acho que na história da fotografia de moda só tem dois brasileiros que trabalharam nos EUA, o
Otto Stupakoff e, vou confessar, eu. Nessa época, passava muito tempo sozinho, comecei a
escrever, a refletir. Até lá eu era um fotógrafo compulsivo, e passei a ser um fotógrafo mais reflexivo. Bom, aí comecei a viajar e mandava cartões-postais pras pessoas, mas ninguém mandava nada de volta. Aí falei: “Quer saber? Foda-se, vou começar a mandar coisas pra mim”. Com o tempo, depois que li que Proust mandava uma carta por dia, decidi que ia me mandar cartas. Hoje, quando viajo, me mando uma carta por dia. Coloco minhas impressões, um ingresso de museu, pedaços de memória e mando pra mim. E fica guardado, é aquela coisa de guardar o tempo.

E não necessariamente voltar nele. Não, porque você não pode dirigir um carro olhando pelo retrovisor. Tanto faz, já foi, não lembro mais do que escrevi dois, três dias atrás. Só tem dois países de onde não chegaram as cartas: Bolívia e Índia [risos]. Nunca chegou a porra das cartas até hoje!

E seu livro mais recente, Diários de viagem, é sobre isso? Não é sobre as cartas. Mas é uma tentativa de segurar o registro de três anos de viagens. São aquarelas que fiz de todos os quartos de hotel que dormi e os diários que escrevi. Mantenho diários com textos, fotos e desenhos há anos.

Tem que ser bem metódico para manter essa disciplina? Acho que esse é meu lado catalão. Outro dia estava em um jantar, e perguntaram para um curador como ele define o que é arte e o que não é. O cara respondeu que era pela obsessão. O artista é obcecado. Não que eu seja um artista, sei lá...

Você não é um artista? Acho que não. Tenho conhecimentos artísticos que aplico nas coisas que faço: fotografia, pintura, livros. Mas não tenho que me considerar nada. Só tenho a sorte de ter um lugar para publicar meu trabalho.

Bom, você tem a sua própria revista, a Nacional. Falo que sou um fotógrafo publicitário. Mas tenho sonhos, devaneios. E vou atrás disso. Adoro fazer editoriais, entendo a linguagem de revista. Por isso me senti à vontade para fazer uma.

E como tem sido fazer a revista? Uma coisa é ser entrevistado, outra é entrevistar. Eu ficava frustrado. Porque, fotograficamente falando, consigo transmitir quem uma pessoa é pela imagem. Reconheço como ela se portou, como se sentiu confortável em se expor. Mas, quando entrevistava as pessoas e começava a editar, sentia falta do ritmo, do jeito de falar. Então, eu tiro as perguntas e só transcrevo o que a pessoa diz.

Ficar mais próximo? É, como a fotografia, que para mim é uma maneira de ver o mundo de perto. Consegui chegar perto de pessoas que tinha vontade de conhecer mais. Então é aquela história de levar a vida do meu jeito. É uma maneira de juntar tudo.

 

“O meu talento é ter paciência, especialmente com as mulheres”

 

Trabalho e vida? Sim. E o olhar e a forma como trato as pessoas. A sensibilidade de entender as pessoas. Aprender os códigos. Tudo é a maneira como você fala com as pessoas e como isso funciona no estúdio... talvez o segredo desses anos todos seja exatamente isso, ouvir e entender as pessoas. Sejam mulheres nuas, vestidas, seja o universo da moda, que é muito etéreo, frágil, envolve padrões de beleza superavançados. Como tratar isso, como isso se traduz em imagem? Como traduzir o mundo corporativo da publicidade, da campanha de perfume, dos planos milionários de investimentos? Como fazer isso de uma maneira que dialogue com as pessoas? Isso pede um instinto.

Esse é o seu talento? Ter esse instinto afinado? O meu talento é ter paciência. O grande talento no mundo é ter paciência, especialmente com mulheres, não? Você não pode falar pras mulheres o que elas têm que fazer. Você tem que deixar que elas façam e, depois, quando não sabem mais o que fazer, você pergunta: “E aí? O que a gente faz agora?”. Aí as coisas se encaixam e acontecem. É com esse fluxo de trabalho que você aprende, desenvolve e passa a ter um estilo. E esse estilo é o que faz com que, ao longo do tempo, você construa uma... não vou dizer obra, que é pretensioso. Mas faz você ser identificado por alguma coisa.

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