Foi-se o tempo em que dizer ”amor, estou com dor de cabeça” para pular o sexo era truque de mulher
Foi-se o tempo em que dizer “amor, estou com dor de cabeça” para pular o sexo era truque de mulher. A crise na cama agora é outra: cada vez mais homens preferem ver TV, jogar videogame ou dormir a se divertir com suas mulheres – e elas não estão achando graça nessa novidade
Janaína*, 32 anos, e Sérgio, 31, ficaram em casa naquele sábado à noite. Alugaram uma comédia romântica e antes da meia-noite estavam na cama. Juntos há seis anos e casados há três, fazia 30 dias que cada um virava para um lado sem sequer dar um beijo na boca (leia box). A escassez de sexo, silenciosamente conduzida por ele, era uma constante desde o segundo ano de namoro. Nos últimos tempos, o argumento era o cansaço de tanto trabalho – ele é técnico em informática. Ela, auxiliar administrativa, não se lembrava da última vez que havia dito “não” – o que não significa que tomasse a iniciativa. Só que naquela noite, já deitados, o desajuste chegou ao ápice quando Janaína foi direto ao ponto: colocou a mão dentro da cueca dele. Sérgio a tirou e lançou: “Tô com dor de cabeça”. Ao escutar a frase, um turbilhão de ideias autodestrutivas invadiu o cérebro de Janaína. “Pensava: ‘Não acredito que ele deu a desculpa mais usada pelas mulheres. Será que estou gorda? Feia? Será que ele sentiria tesão por outra?’.” Mas perguntou apenas: “Quer que eu pegue um remédio, amor?”.
Sim, os tempos mudaram
A videomaker Dora, 31 anos, também fica indignada com a falta de sexo: transa uma vez na semana com o marido, gerente de marketing, 33, com quem está há dois anos. E vem escutando a frase “estou cansado” como justificativa para as dispensadas. Diz ser a primeira vez na vida que tem mais vontade de transar do que o parceiro, mas agora, morando há um ano em Buenos Aires, cidade natal dele, acostumou-se a procurar “o momento ideal” para abordá-lo.
“Não acredito que ele deu a desculpa mais usada pelas mulheres. Será que estou gorda? Feia? Será que ele sentiria tesão por outra?”, Janaína, 32 anos
Histórias como as de Janaína e Dora acontecem em muitas outras camas de casal e têm deixado cada vez mais mulheres inseguras e insatisfeitas. “O problema sou eu? Será que estou gorda e feia?” foram as principais questões apresentadas pelas mais de dez entrevistadas (entre 20 e 40 anos) pela reportagem da Tpm. O maior interesse feminino por sexo, associado à recusa masculina, até décadas atrás seria inimaginável. Afinal, um dos clichês sociais é que o homem está sempre a postos. Por isso, a maioria das mulheres se sente rejeitada quando ouve um “não” e evita o assunto até com os parceiros, o que só aumenta a distância e, portanto, a chance de resolver a situação. Quando cogitamos a hipótese de entrevistá-los, as respostas foram negativas. “Só toco no tema ironicamente, tipo: ‘E aí, vai comparecer?’. Não sei até que ponto ele entende”, diz Janaína. Quando elas falam sério, em geral, é em uma briga, em tom de acusação. Assim, fica difícil para a mulher ter uma conversa madura sobre o que a incomoda e escutar o que o parceiro tem a dizer. “Tenho medo de parecer insaciável, de ouvir algo sério que não queira, de descobrir que ele tem outra...”, explica Janaína, em coro com a maioria das entrevistadas.
Acontece com os melhores casais
Agora imagine o contrário: será que um homem que escuta “não” da mulher acha que está feio, gordo ou que o problema é com ele? Por que as mulheres logo pensam que tem algo errado com elas e não aceitam que o cara possa estar de fato cansado ou com alguma questão pessoal?
O publicitário Lucas, 40 anos, que namora há dois uma artista plástica, 30, conta que era seguro de sua sexualidade até que, em uma discussão, ela falou que queria mais quantidade. “Perguntei: ‘Por que não disse?’. E ela respondeu que se insinuou várias vezes, que estava se sentindo mal por parecer atirada. Mas juro que não percebi”, afirma Lucas. Como assim não percebeu? É isso que as mulheres questionam quando ouvem o parceiro dizer o que lhes soa como atestado de falta de atenção. E vale explicar: quando a namorada de Lucas diz que se insinuou, significa que, na cama, encostou seu corpo no dele, deu um beijo na orelha e umas passadas de mão. Minutos depois, sem ver reação, afastou-se. O psicanalista Nelson da Silva Junior, da USP, confirma o desconhecimento de muitos homens em relação a sentimentos da mulher que dorme ao lado: “Eles realmente não percebem o que está acontecendo. E o desejo que o outro adivinhe o que se quer é mais comum nas mulheres. Então, o melhor a fazer é elas falarem sinceramente do que sentem falta, o que desejam”, sugere ele, que atende dezenas de pacientes na faixa dos 30 anos com questão semelhante.
“Se as mulheres conquistaram o lugar de desejantes, os homens ocuparam o lugar de desejados. E não havia cartilhas culturais para isso”, Nelson da Silva Junior, psicanalista
Mas o que significa esse descompasso? Rotina é a resposta clássica. Outro fator relevante hoje é a liberdade que a mulher tem de tomar a iniciativa, mesmo que algumas ainda se sintam desconfortáveis quando isso vira regra. Como uma geração atrás o comum era o homem tomar iniciativa, não dá para saber se o interesse sexual deles diminuiu ou se a demanda delas é que aumentou. O fato é que eles agora também dizem não. O psicanalista Nelson acredita que a novidade, em geral, é fruto das mudanças de papéis. “Se as mulheres foram conquistando o lugar de desejantes, os homens também foram convidados/convocados a ocupar o lugar de desejados. E aqui temos um problema para ambos: não havia cartilhas culturais para isso. Então, a mulher se pergunta: ‘Será que seduzir não é coisa de vadia?’. Enquanto ele pensa: ‘Será que não sou homem?’.”
Nesse novo cenário, entra a vontade que os chefes de família têm de participar mais ativamente da vida doméstica, como confessam quando estão no divã do consultório de Nelson. Isso significa, por exemplo, trocar a fralda do filho, lavar a louça e ir ao supermercado. “Só que o homem não está acostumado a ter vários papéis, ao contrário da mulher, que lida com essa diversidade naturalmente. Quando a equação masculina não fecha, alguma coisa tem que ser excluída. E às vezes é o sexo”, observa o psicanalista. Para a historiadora Mary Del Priore, autora de livros como A história das mulheres no Brasil, a queixa da ala feminina denota que ainda há estranhamento em relação a essa nova realidade. “O homem de hoje não tem a virilidade como única carta do baralho. Lida com o desempenho sexual de outra forma. Não se trata de rejeição. Pensando isso, a mulher está se avaliando apenas como bonita ou feia”, opina.
Insegurança X vontade
Junte a isso o ritmo de trabalho que se tem hoje. Para o psicanalista Nelson, a difusão da internet nos últimos 15
anos aumentou significativamente a carga de trabalho, o que reflete no sexo. “Não há mais tempo para namorar sem compromisso. É tudo com hora marcada. E o sexo também. As pessoas transam como se tomassem um calmante para relaxar e dormir”, diz, comparando relações sexuais a remédios tarjas pretas, drogas, álcool, televisão. Essa observação apareceu no discurso das entrevistadas, que associam o desinteresse sexual com a dificuldade dos parceiros se desconectarem do trabalho, do iPhone, do Facebook, do videogame e de dizer “não” para baladas e bebidas alcoólicas.
Para chamar a atenção do marido, a videomaker Dora pensa a toda hora em uma forma de sair da rotina e, assim, aumentar o desejo dele. Dia desses, mandou um SMS, no meio da tarde: “Hoje quero pau”. “Ele ignorou, respondeu qualquer coisa, como se eu tivesse escrito: ‘Vamos nos ver mais tarde’. Não sei se ficou com vergonha...”, palpita ela, que, de vez em quando, se esforça para falar sobre o tema. Afinal, nem cogita a hipótese de terminar a relação por causa disso.
De acordo com o psicólogo Aílton Amélio, da USP, existe a ideia de que os homens estão sempre prontos para o sexo, mas não é assim. “Eles podem ficar prontos mais rapidamente logo que se conhecem, mas na intimidade não é a regra”, diz. “Pressionar, às vezes, pode deixá-lo inseguro com sua masculinidade. Nesse ponto, o homem é muito frágil”, esclarece ele, também a favor do papo aberto, sem intenção de apontar culpados.
Vamos falar de sexo?
Enquanto isso, no universo feminino, romantismo, sedução e demonstrações de carinho são fundamentais para a autoestima. Mais do que chegar ao orgasmo, elas enxergam no sexo um termômetro do relacionamento. “O que pega mais é a minha segurança do que a vontade física”, admite Dora, que diz não ter aumentado a frequência com que se masturba. Já a relações-públicas Renata, 29 anos, que namora um engenheiro, 30, garante ter energia para transar todo dia. “Ele me acha insaciável”, queixa-se. Segundo ela, o rapaz prefere guardar a energia para “sexo de qualidade”. Logo, ela se sente desprezada: “Fico achando que ele não se diverte comigo, sinto ciúme se fica na rua até quatro da manhã se saímos com amigos, mas em casa dorme cedo”, conta.
“Fico achando que ele não se diverte comigo, sinto ciúme se fica na rua até quatro da manhãse saímos com amigos, mas em casa dorme cedo”, Renata, 29 anos
Não dá para esquecer que, da mesma forma que a dependência financeira feminina concedia poder maior aos homens até uma geração atrás, o sexo sempre foi uma arma feminina de controle – atire o primeiro sutiã a mulher que nunca se recusou a transar por birra. “Quando o homem diz ‘não’ tira esse poder da mulher, que sente, de alguma forma, que não pode mais prendêlo”, observa o psicanalista Nelson da Silva Junior. Muito melhor do que “prender” seria construir uma relação em que ambos têm liberdade de abrir mão de padrões para fazer o que querem sem dramas, não?
Sejam quais forem as negociações, Laura Muller, psicóloga e educadora sexual há mais de 15 anos, acredita que o fato de os homens estarem dizendo mais “não” é motivo de comemoração. “Minha indicação no consultório é que todos, homens e mulheres, possam dizer ‘não’ quando realmente não estiverem a fim. Temos que tirar esse peso da cobrança social, deixar a relação mais livre, mais sincera”, resume.
Afinal, quem consegue relaxar com um clima tenso desses?
* Janaína, Sérgio, Dora, Renata e Lucas são nomes fictícios usados para proteger a identidade dos entrevistados
Queremos beijo na boca! As mulheres entrevistadas para esta reportagem chamaram a atenção para outro aspecto que as deixa insatisfeitas: a falta de beijo na boca. Algumas reclamam que seus parceiros só dão beijo de língua quando, em seguida, sabem que vão acabar transando. Ou então quando elas insistem, depois de semanas só no selinho. Outras comentam que, às vezes, nem durante o sexo rola beijo. O psicólogo Aílton Amélio aponta esse sintoma como corriqueiro entre casais de longa data, porém afirma que sinaliza a diminuição do romantismo, de maneira mais ampla, o que considera um “empobrecimento” da relação. O psicanalista Nelson da Silva Junior acredita que o beijo de língua é um gesto de “erotismo cotidiano, entre olhares, provocações, toques secretos”. “Se o beijo está em extinção, esses gestos também estão, e isto é o problema: a cultura do erotismo e da sedução está sendo substituída pela cultura do ato concreto da relação sexual, totalmente visível, sempre acessível.” |