Gastronomia Solidária

por Letícia Flores

Conheça a história de Sandra Simões, psicóloga que uniu chefs renomados em projeto social

Há cinco anos, Sandra Simões, era uma mulher comum. Casada há quase vinte anos, mãe de dois filhos cursando ensinos fundamental e médio, vivendo em Perdizes, bairro de classe média alta paulistana, pais morando em Franca, interior de São Paulo, e tardes semanais gastas em encontros entre amigas e idas ao shopping. Com uma criação católica, Sandra sempre teve a religião muito presente em sua vida. Ela, que já frequentava as missas dominicais da Paróquia São Domingos, do seu bairro, decidiu iniciar algo com algo que não mudasse só a vida, mas a de muitas pessoas que ela jamais imaginaria conhecer.

Num primeiro momento, em 2006, a psicóloga que havia abandonado a carreira para se dedicar ao lado familiar tornou-se voluntária na preparação de refeições da paróquia do bairro. O famoso "sopão" era feito pelos voluntários da igreja e distribuído para as pessoas em situação de rua que iam até ali buscar, talvez, a sua primeira e única refeição do dia. Sandra, que logo adianta não ser uma cozinheira de mãos cheias, ironicamente viu na cozinha uma possibilidade de melhorar a vida daquelas pessoas. "Pra mim, saciar a fome física daquelas pessoas estava sendo muito pouco", conta. Em um conflito com ela mesma, Sandra se viu na obrigação de pensar em algo que fizesse aqueles cidadãos vislumbrarem um outro mundo. "Foi aí que eu pensei que o alimento tem uma força muito grande. Por causa dele, aquelas pessoas se locomoviam de lugares tão distantes. Por que não descobrir um habilidade com o alimento? E por que não fazer desta habilidade uma ferramenta de trabalho? Mas aí eu precisava de um motivo concreto para convencê-los de que seria importante que viessem sempre, que comparecessem a paróquia não só para buscar a refeição. Tive a ideia do livro, afinal, um livro mexe com a auto-estima das pessoas", explica Sandra.

Cara de pau e grandes chefs do país
Com a ideia muito bem aceita (Sandra conta que era parada na paróquia com as pessoas lhe perguntando "mas eu vou sair em um livro? Nossa, é muita emoção"), em 2008 ela tinha na verdade um problema: como iria convencer aos chefs de cozinha, que ela nem conhecia, a irem até a sua paróquia ensinarem algo para um público que, em muitos casos, passava fome? Com uma fala doce e um sentido de persuasão aguçado, Sandra foi convencendo um a um. "Na maioria das vezes eu conseguia um contato, nem que fosse só o telefone da recepção do restaurante, e aí eu ia tentando, insistindo e acabou saindo melhor do que o previsto. Com a cara e a coragem eu ligava pedindo uma aula na Paróquia São Domingos" disse. E eles toparam. Ana Luiz Trajano (do restaurante Brasil a Gosto), Carlos Ribeiro (do restaurante Na Cozinha), Dijanira Trindade (do Arte em Bolos), Ida Maria Frank (do bistrô Maria's), Lúcia Velloso Verginelli (do Buffet Luana Gastronomia e Eventos), Paulo Pereira (da doceria Di Cunto), Rodrigo Oliveira (do restaurante Mocotó) e  Benê (Personalidade da Gastronomia, prêmio concedido pela revista Prazeres da Mesa), se revezaram para dar aulas. A partir das receitas que eles ensinaram e dos registros feitos em fotos, surgiu o Gastronomia Solidária, o tão prometido livro, que hoje está na segunda edição pela editora Melhoramentos.

Do papel para a vida real
Lançando ainda em 2008, o livro foi sucesso de vendas. Com o dinheiro arrecadado, Sandra conseguiu alugar uma casa também em Perdizes para dar continuidade a ideia. E aí, já em 2009, o Gastronomia Solidária deixou de ser apenas um livro e se tornou um projeto de inclusão social. Hoje, a casa tem 50 alunos que são pessoas de baixa renda que buscam por um ofício. "Tem a diarista que quer começar a cozinhar pra poder pedir aumento de salário. Tem as pessoas que moram na rua e querem aprender a fazer algo pra conseguir um emprego", explica.

Técnica, operação e psicologia
A intenção do projeto é claro ensinar um ofício, mas como em muitos casos os alunos são pessoas que vivem em situação de rua, Sandra também se preocupa com a parte psicológica deles. "Ainda na paróquia eu via a necessidade de fazer um trabalho mais completo. Só técnica e operação não resolvem todos os problemas deles. Justamente por estarem em uma situação e condição diferentes, é muito fácil de eles se perderem, abrirem mão de tudo isso aqui e voltarem para as ruas, para a dependência química e até para o crime", conta. Por conta desta preocupação, Sandra buscou parceria com os alunos de psicologia da Pontifícia Universidade Católica, a PUC. Semanalmente, os alunos do Gastronomia são ouvidos pelos futuros psicólogos da universidade do bairro.

Frustração versus todos os outros sentimentos bons
Justamente por trabalhar com pessoas em estado de vulnerabilidade, Sandra sabe o quão difícil é realmente transformá-los. Ela conta, com pesar, do caso de dois garotos que foram do Gastronomia Solidária, mas que optaram por voltar para as ruas. Recentemente Sandra recebeu a notícia que os dois não estão em estados ruins, mas sim péssimos. Mais do que se sentir culpada por não ter conseguido ajudá-los por completo, ela conta que se sente frustrada. "Pra ser muito sincera, eu fiquei muito, mas muito frustrada. Eu fico muito triste por o projeto não ter conseguido passar na íntegra pra ele a condição que ele poderia ter. Mas culpa eu não posso sentir senão eu desisto", disse. Na outra ponta da frustração, Sandra tenta traduzir os sentimentos que vem à tona quando após os nove meses de curso, alguém saí da casa de Perdizes com um novo ofício, paixão e até uma nova vida. "É um prazer tamanho que eu sou incapaz de mensurar isso. É incrível acompanhar o resgate da auto-estima e auto-confiança dessas pessoas. É um prazer gigante saber que é possível intervir de uma maneira preventiva na vida de alguém que não tem expectativas com si próprio. Uma vida que você consegue recuperar já é muito", define.

Lado mulher comum
Apesar de estar à frente de um projeto tão poderoso, Sandra Simões é uma mulher comum. Recebeu pedras e julgamentos de familiares, amigos e até da própria paróquia. "Não foi uma, não foram duas e nem três. Ouvi repetidamente que eu só fazia isso para aparecer. Da minha família eu fui julgada como a patricinha que se deu a luxo de ficar sem trabalhar, já que o Gastronomia Solidária é um trabalho totalmente voluntário, eu não ganho um centavo aqui. Mas eu descobri que há outra forma de pagamento, de retorno que não o dinheiro”, define.

Vinda de uma família cristã, Sandra atribui aos seus pais esta conduta que tem hoje. "Toda essa minha maneira de ser eu acabei herdando da minha formação familiar. Essa coisa cristã, de solidariedade, de tentar entender o lado do outro. O amor pelo outro, respeito pelo próximo. Tudo isso vem da religião que é realmente muito forte em mim", explica.

Hoje, aos 47 anos, mãe de dois filhos de 21 e 18 anos, a psicóloga confessa que está há um ano separada do marido e que o projeto teve sua parcela de culpa, apesar de não ter sido o motivo crucial. "Teve um momento que eu tive que ouvir dentro da minha casa: 'mas o que você quer da vida? Você quer levar nós quatro pra ir morar na rua?'", revela Sandra. E quem espera que ela lamente, se engana. "O Gastronomia me fez uma pessoa infinitamente melhor. Este trabalho me mostrou que eu sou muito mais forte do que eu imaginava. Não imaginava que eu fosse forte para assumir o fim de um casamento, por exemplo. Mas a principal lição que eu tiro é que quem começa um trabalho voluntário, acaba se tornando tão beneficiada quanto as pessoas por quem aquele trabalho é feito”, explica.

Livro premiado e sem dinheiro para o aluguel

O livro Gastronomia Solidária foi premiado no último mês de março no Gourmand World Cook Books Awards, o Oscar da literatura gastronômica. A produção de Sandra garantiu o prêmio de melhor livro em responsabilidade social.

No meio do bate-papo com a Tpm, Sandra confessou que não tinha o dinheiro suficiente para pagar o aluguel no dia seguinte. A casa, cuja renda para quitar as contas mensais vem da vendagem do livro, das aulas noturnas que são particulares e de uma pequena de parcela de doação, estima que o dinheiro se esgote por completo em setembro e que talvez o projeto tenha que ser encerrado. "Aí sim eu vou sofrer. Vou ter que interromper a melhoria e até de correção de várias vidas por conta de dinheiro", finaliza.

Quem quiser encomendar o livro ou colaborar com o projeto, o blog do Gastronomia Solidária é http://gastronomiasolidaria.blogspot.com.

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