Bouillier fala sobre o encontro com Sophie Calle na Flip depois do rompimento por e-mail
A vida de Grégoire Bouillier é um livro aberto. Literalmente. O escritor de 48 anos, nascido na Argélia mas radicado na França, ficou conhecido por suas histórias “de si mesmo”, ou, como quer boa parte de crítica literária, por seus livros de “autoficção”. Começou com Rapport sur Moi (Relato sobre Mim), em 2002, uma autobiografia não-linear, com cara de romance. E em seguida veio O Convidado Surpresa (2004), que acaba de ser lançado por aqui pela CosacNaify.
Esse segundo trabalho é uma história real de mistério. Mistério amoroso. Mas é também um livro engraçado. Nele, Bouillier projeta uma voz cômico-neurótica que faz pensar numa versão francesa, existencialista, de um Woody Allen.
O resumo é mais ou menos assim: estamos em 1990, toca o telefone, é sua ex-namorada, que desapareceu anos atrás sem explicação. Ela o convida para uma festa da artista Sophie Calle. Como diz o título, ele seria um coringa na lista de convidados. Meio perplexo, meio ultrajado, ele decide ir para confrontar aquela que o havia abandonado. No final, depois de peripécias sociais que não vale contar, fica amigo da curiosa Calle, aquela que segue pessoas na rua e expõe sua vida em elogiadas obras conceituais.
Na verdade, ficam mais do que amigos, o que não está no livro. Mas um belo dia ele manda um e-mail rompendo o namoro. Decidida a não interromper o ciclo lúdico/artístico/autobiográfico, Calle monta uma exposição com a fatídica frase que recebeu em seu computador. Prenez Soin de Vous, nosso popular “se cuida”, “vai pela sombra” ou “fica bem” foi apresentada com sucesso na Bienal de Veneza, em 2007, e virá agora para São Paulo (a partir de 10 de julho, no Sesc Pompéia).
Curiosamente, os dois irão se encontrar publicamente pela primeira vez depois do rompimento numa mesa na Flip - Feira Literária Internacional de Paraty, para debater o capcioso tema “Entre Quatro Paredes”. Pode ser a lavação de roupa suja mais interessante de que se tem notícia.
Nessa entrevista feita também por e-mail, Bouillier fala sobre o livro, sobre a relação com Calle (cujo livro Histórias Reais também foi traduzido, pela Agir, e em cuja capa ela aparece nua, de peito aberto) e essa confusão intencional entre vida pública e privada, além de seu mais novo romance, Cap Canaveral, história de amor entre um professor e uma aluna bem mais jovem.
O Convidado Surpresa foi um livro planejado desde o começo ou surgiu naturalmente?
Foi um livro que escrevi bem rápido – em um mês – e bem naturalmente, com prazer. A princípio pensei em incluir essa história no meu primeiro livro, Rapport Sur Moi, no qual está a personagem feminina de O Convidado Surpresa (a ex-namorada); mas achei que era uma história muito rica, que exigiria uma espaço maior do que o de mais um episódio entre tantos outros. Ao mesmo tempo ela pedia uma linguagem particular, que estivesse o mais perto possível da consciência do narrador, de suas sensações, e é por isso que as frases são bem alongadas, o que não é o caso no Rapport sur moi.
Você diria que seu livro é engraçado, a despeito da angústia do narrador?
Um pouco como a vida, não acha?
Quem você gostaria que fosse convidado surpresa na sua festa de aniversário?
Adoraria que uma mulher em particular viesse de surpresa no meu aniversário. Um pouco com a Yvonne do cônsul de Malcolm Lowry, em À Sombra do Vulcão (um dos melhores romances do século 20, publicado no Brasil pela L&PM. A história, semi-autobiográfica, se passa no México, no Dia dos Mortos. Yvonne é a ex-mulher do cônsul britânico Geoffrey Firmin, um alcoólatra em crise existencial, que surge inesperadamente para tentar reatar a relação).
Tem um momento no meio do livro, em que o narrador se mostra frustrado com a arte contemporânea, quando fica sabendo que a aniversariante (Sophie Calle) não abre seus presentes (e o dele era um vinho caríssimo), com a intenção de expô-los em suas embalagens, numa instalação...
Em geral os artistas preferem os o milagres da arte aos mistérios da realidade. Não é meu caso, e essa passagem no livro foi mesmo uma tomada de posição.
Calle já declarou que a arte, pra ela, é terapêutica. E pra você?
Meus livros não me fazem bem. Ao contrário, às vezes tenho a impressão de que eles me deixam doente.
Para que serve a literatura?
Parafraseando a Virginia Woolf, eu diria: para “colocar lentamente as coisas sob a luz”.
O que aconteceu entre você e Calle depois do episódio narrado no livro?
Eu a deixei assim que o livro foi publicado. Esse livro foi minha verdadeira carta de ruptura. Aliás, eu o dediquei a ela.
Como você se sente com a exposição Prenez Soin de Vous?
I feel good, como cantava James Brown...
Já pensou o que dizer para a Sophie na Flip?
Na verdade não. Vamos ver o que acontece.
Qual seria sua reação se alguém terminasse com você por e-mail?
Não existe uma boa maneira de terminar com alguém. Já levei foras de todas as maneiras – até de uma hora para a outra, sem nenhuma palavra ou explicação, como eu conto em O Convidado Surpresa. De minha parte, a última pessoa que eu deixei foi num avião. Mas se alguém tiver uma receita de ruptura que termina bem, eu tenho a maior curiosidade de aprendê-la.
Com a intimidade tornada pública, o que resta da intimidade?
Ao meu ver, aquilo a que chamamos intimidade nada mais é do que a parte encoberta da nossa vida pública. Em que ela mereceria nosso respeito? Não sei. Não me incomoda que a descubram. Mas tudo depende da intenção: se é para envergonhar alguém, apontar-lhe o dedo, atirar alguém às feras, é algo detestável. Mas se é para conhecer o indivíduo em todas suas facetas, aproximar-se o máximo possível da verdade da existência e – isso é importante -, sem se excluir, você mesmo, desse jogo da verdade, acho que vale a pena. De qualquer forma, acredito que minha vida privada acontece mesmo quando estou escrevendo. E é tão privada, que ninguém conseguiria violar essa intimidade.
É inevitável pensar que seu livro mais recente, Cap Canaveral, seja de alguma forma autobiográfico. Algo a ver com a famosa frase de Flaubert: “Madame Bovary sou eu”?
Nada do que eu escrevo é inventado. É um pacto de escritor que faço comigo mesmo. O que eu vejo ao redor de mim é suficiente: tenho a forte impressão de que a realidade está sempre ultrapassando a ficção e meu trabalho consiste em tentar encontrar as palavras que estejam à altura dessa ultrapassagem. É isso que me entusiasma. Agora, não posso dizer “Sophie Calle sou eu”, nem que a personagem feminina de O Convidado Surpresa sou eu. E não tenho a menor vontade de dizê-lo, mesmo porque não quero ser romancista, ou seja, ser o senhor supremo. Dou mais importância àquilo que me escapa do que às coisas que posso controlar. Cada vez que tentava escrever ficção ficava entediado na quinta página, porque tudo dependia de mim e eu achava isso particularmente cansativo e, na pior das hipóteses, inútil. Nos meus livros há um pequeno truque que consiste em enfrentar os acontecimentos procurando dar-lhes um sentido, nem que eu tenha que agarra-los pelos cabelos e pendurar seus escalpos no pescoço. E não importa que esse truque seja só meu. Enfim, tudo o que posso dizer é que O Convidado Surpresa sou eu e que Rapport sur Moi e Cap Canaveral também “são”eu.
Próximos planos?
Continuar a viver histórias que me desafiam a contá-las.