por Carol Sganzerla
Tpm #63

Hoje, fora da sombra do marido, Flora Gil é a produtora do melhor camarote do Carnaval baiano e empresária dos negócios da família

Ela é mulher do cantor e ministro da Cultura. E poderia ter se conformado em ser apenas isso. Mas, para a menina que conheceu Gilberto Gil aos 18 anos, trocou a casa dos pais pela vida a dois em um sítio e encarou três ex-mulheres, cinco filhos e a antipatia dos amigos, seria pouco. Hoje, fora da sombra do marido, Flora Gil é a produtora do melhor camarote do Carnaval baiano e empresária dos negócios da família

Flora podia estar deitada numa rede embaixo do abacateiro, mas entrou no Expresso 2222. Colheu os frutos que o sobrenome lhe rendeu e se tornou a grande mulher por trás do grande homem. Aos 18 anos, pegou carona com Gil, em Salvador, e desviou sua rota. Encantou-se com o músico-preto-baiano-ex-exilado, de 38, e tirou o sono dos pais, Janira Luiza e Domingos Giordano – morto de câncer há 15 anos. Aos 19, trocou Moema, bairro nobre de São Paulo, pela vida a dois num sítio em Jacarepaguá, no Rio. Ciumenta e insegura, foi uma namorada indesejada pelos amigos. Peitou três ex-mulheres e cinco filhos. Hoje, aos 47 anos, reúne todos na mesma mesa: “Desisti de ser chata, porque ser chata é foda”. Aprendeu a ser política e usa a arma para manter a união de 27 anos.

Flora não gosta do Gil ministro. Prefere o músico e marido, pai de Bem, 22, Isabela, 19, e José, 15. Prefere tê-lo embaixo da asa. Mas faz política. Como em 1988, quando se casaram no papel porque ele concorria a vereador e a sociedade pedia conservadorismo.

Flora fez do marido o primeiro artista brasileiro a ter direito sobre 100% de suas obras. Comanda as empresas da família, produz o trio elétrico e o camarote Expresso 2222, o mais concorrido do Carnaval baiano. Neste último, pela primeira vez, Flora levou uma escola de samba para a Bahia, a Grande Rio. E conseguiu a inédita subida de Zeca Pagodinho no trio, para cantar com Gil, já que o enredo falava sobre Caxias, cidade idolatrada pelo sambista. A anfitriã recebeu o produtor musical Quincy Jones, homenageado com um almoço na mansão do casal. Em 2006, foi a vez de Bono Vox. É do seu jeito político que Flora recepciona a Tpm, em Salvador. Leva a repórter às reuniões com patrocinadores, ao jantar com amigas e oferece um quarto para passar a noite, no fim da entrevista, às 3h da manhã. Com vocês, a Flora. Só ela.


Tpm. Você imagina a sua vida sem o Gil?
Flora. Não. E sei quem é a amiga da Flora, da Flora Gil e da mulher do ministro. Não fico pensando: “Será que essa pessoa está comigo porque sou mulher do Gil?”. Que bom que sou mulher dele e que essa pessoa está perto de mim.

Já passou por alguma crise existencial?
Não tenho paciência para ficar “meu eu interior”. Fiquei muito baiana depois dos 40.

Já fez terapia?
Nunca. Venho de família careta, não tive infância com traumas, pai brigando com mãe. Ou tenho vários e não apareceram. Só fiz santo no candomblé.

O que é fazer santo no candomblé?
É ser filha-de-santo. Fui ao Terreiro do Gantois pela primeira vez como turista. A Mãe Menininha jogou búzios para ver qual era meu santo. Depois fui num candomblé do filho-de-santo do Gantois, o Augusto César, e confirmei a santa, Ewá, santa guerreira. Tem que ficar recolhida um mês e fazer obrigações, que só você e a mãe ou o pai-de-santo sabem. E você não fica mais só, fortifica seu anjo da guarda.

Você tem fama de ser brava, como a Paula Lavigne (ex-mulher do Caetano Veloso).
Não tenho a fama que ela tem, não, somos diferentes. Nos damos bem, mas não somos “melhores amigas”.

Essa comparação entre vocês a incomoda?
Não. Já tive essa fama, mas melhorei. No Carnaval são as mesmas pessoas [na equipe de Flora] há oito anos. Quem troca de pessoa toda hora tem algum defeito. Se você é problemática e encrenqueira, tudo ao seu redor vai ser assim. Se tenho uma reunião de trabalho, não chego gritando.


Você é controladora, interfere nos problemas da família?
Sou, mas se não me pedem não interfiro. Controlo para tudo ficar bem, mas sei que não sou insubstituível. Era muito general, hoje consigo deixar coisas para o dia seguinte. Aprendi com o Gil.

Como manter a relação viva em 27 anos de casados, ainda trabalhando juntos?
Não entendo esse negócio de “não tenho mais paixão, agora é amor”. Nem parece que são 27 anos. Parece um casamento que começou outro dia. Não sou romântica nesse sentido. As pessoas dizem: “Em 30 anos você perde o encanto”. Eu não perdi nada, só ganhei respeito, compreensão.

Você é a favor de ele ser ministro da Cultura?
Todo mundo me pergunta. Sabe o que respondo? “O Gil tem que fazer o que ele quer.” Já pensou eu implorar pra ele sair? Ele até poderia sair por amor, mas não quero isso. Em um mês ficaria deprimido. Quero ele feliz.

O Gil pede sua opinião sobre essas coisas mais gerais, de política?
Ele sabe que os filhos e eu preferimos que ele não seja ministro, mas respeitamos. Ele gosta da opinião de poucas pessoas, como o Chico e o Caetano, que também tinham vontade de que ele não fosse. O Gil tem uma admiração imensa pelo Lula, que pediu para ele ficar. O Gil foi picado pela mosca da política. Música ele gosta muito, mas não escuta. Se ligo o rádio, fala: “Pra que rádio?”. E também não gosta de se ouvir, é tímido.

O que mudou na vida de vocês quando Gil se tornou ministro da Cultura?
A primeira mudança foi o terno, que ele ama. Montamos um apartamento funcional em Brasília, mas não compensava eu ir porque o Gil viaja muito. Nos fins de semana ele vai pro Rio e quando tem show vou junto. Viagem de ministério não vou, não tenho muita função, só como companhia mesmo.

Entraria para a política?
Nunca. Política é coisa pra homem, eles têm mais paciência. E política é tempo. Mulher é mais prática e lúcida, quer resolver tudo na hora. Há exceções, claro. A Dilma [Roussef ministra-chefe da Casa Civil] é uma grande mulher comandando os ministros com sabedoria.

Você e o Gil já passaram por crises?
Nunca. Já fui ciumenta, brigona, implicante, agora sou menos. Tenho ciúmes de certas pessoas com ele, mas nada perto do que era antes. Hoje tenho preguiça de discussão.

Como lida com os boatos de traição?
Às vezes recebo e-mails de pessoas falando para eu ir apurar, muito fora do Brasil. Brinco que, se alguém sabe de alguma coisa, não me diga, porque não vai adiantar. Talvez volte a roer unha e não quero. Não tem essa de um ficar atrás do outro.

Como é o relacionamento com as ex-mulheres?
Com a Belina, a primeira, sempre foi tranqüilo. A Nana [Caymmi] é só alegria. E fala: “Como você agüenta aquele preto horroroso?”. A Sandra foi difícil, porque foi a última. Depois foi ficando suave. As filhas dela, a Preta e a Maria, moraram comigo na Bahia. As crianças acabam sendo usadas para mandar recado, fazer chantagem. Depois que elas crescem parece que todo mundo cresce junto. Hoje a Sandra almoça em casa.

E você era uma menina, ela estava com o Gil havia 12 anos...
Menina, 20 anos, insegura. Aí vê a ex-mulher, que já teve filho, fica criando monstros. Mas tudo passa. Falo isso não porque sou legal, se elas fossem umas chatas não seriam bem-vindas.

Pelo que você e o Gil brigam?
Brigar é muito raro. Mas discuto com ele sobre memória, falo uma coisa e ele esquece. Para quem não o conhece, é fácil brigar com o Gil, ele fala alto, discorda. Tem gente que se assusta e eu falo: “Pára de falar assim”. Mas é o jeito dele. A gente se gosta, não tem essa de jogar na cara um do outro.

De onde vem essa tranqüilidade?
Não vem de criança, eu sempre criava problema. Acho que foi a idade, porque desisti de ser chata. Ser chata é foda. Prefiro ter amigos e viver na paz. Preguiça é o meu maior defeito, que acaba sendo uma qualidade. Quem tem preguiça não se mete em encrenca.

Você é muito assediada?
Era menos, quando na Bahia as pessoas queriam estar no camarote. Agora sou mais, porque a pessoa também tem um recado para o Gil.

Quando conseguem ficar juntos?
O Gil não gosta de jantar fora, de ir ao cinema. Ele só faz isso quando viaja. Eu já gosto de uma mesa com amigos. Ele gosta de solidão, de ficar contemplando, como o Dorival Caymmi. Eu já quero falar no telefone, passar e-mail, ligar o MSN. Se ele está quieto, lendo, ligo a televisão e fico quieta do lado. Embora não pareça, gosto de ficar em casa, conversando até 3h da manhã. Gosto de ir para o sítio em Araras [RJ], o Gil fica tocando. Tentamos ficar sozinhos lá, mas, no caminho, liga o Jorge Mautner, uma amiga e acabamos chegando em oito pessoas. É mais fácil fora do Brasil. Fomos para a Suíça, uma lua-de-mel. De manhã ele trabalhava, à noite nadávamos, víamos filmes.

Como se conheceram?
Em 1978, trabalhava na Levi’s do Shopping Ibirapuera, em São Paulo, e ganhei do gerente uma viagem para Salvador. Fui com uma amiga e, saindo de um show da Baby Consuelo, pedimos carona. Um carro parou, e nele estavam o Gil e a Regina Casé. Eles nos deixaram no hotel e falaram para irmos à praia da Boca do Rio. No dia seguinte, conhecemos Caetano e Vera Zimmerman. O Gil me disse: “Fiz uma música com seu nome”. Aí cantou “Flora” e me cantou. Linda, falava de jaqueira [“Imagino-te jaqueira, postada à beira da estrada, velha, forte, farta, bela, senhora”]. Voltei, ele ligou e começamos a namorar.

Ele estava casado com a Sandra (Gadelha, terceira mulher, mãe de Preta e Maria Gil)?
O casamento estava no fim, não separei ninguém. Ninguém tira ninguém de ninguém. Depois de um ano, em 1980, fui morar com o Gil em um sítio em Jacarepaguá.


E seus pais?
Meu pai ficou abalado. Mas, do mesmo jeito que achava uma loucura, passou a não achar. O Gil é um doce. Mas era casado, preto, baiano, músico, com trancinhas no cabelo, tinha sido preso com maconha, exilado, era muita informação para uma família tradicional de italianos.

Como era a vida no sítio?
Uma delícia, ele ficava fazendo música, acordávamos tarde, íamos para o Baixo Leblon ver os amigos, almoçávamos às 18h, jantávamos às 2h na pizzaria Guanabara, voltávamos às 5h num chevetinho. Mas, em 1981, fomos assaltados, levaram tudo. Aí fomos morar num hotel, depois alugamos o apartamento do Chico Anysio até o da Barra ficar pronto. Em 1984 engravidei do Bem.

O Cazuza era dessa turma?
Conheci Cazuza em Ipanema, em 1980. À noite, nos encontrávamos na pizzaria Guanabara. Produzi um show dele em Salvador, quando já estava com a saúde debilitada. Uma vez, a empresária dele queria levá-lo ao candomblé para tomar uns banhos. Ele topou. Fui pegá-los e quando cheguei quase morri. Ele estava da cabeça aos pés vestido de preto, a cara dele. Chegando lá, disse: “Desculpe, mas sou assim!”.

Quando mudaram para a Bahia?
Em 1988, Gil era candidato a vereador, e os amigos diziam que era bom se casar porque tudo era conservador. Casamos no fórum de Salvador, não avisei ninguém. Casei e voltei pra casa. No mesmo ano a Isabela nasceu e voltamos para o Rio, em São Conrado, onde moramos até hoje. Queria um apartamento seguro, as pessoas falavam que era um presídio. O Waly Salomão [poeta, morto em 2003, escreveu músicas para Gal, Cazuza e João Bosco] chamava o condomínio de Talavera Bruce [em referência à penitenciária feminina de Bangu, no Rio]. Lá moravam a Gal, a Simone, o Boni, a ex-mulher do Collor, era bem eclético.

Você o acompanhava em todos os shows?
Ia para todos os lugares, amava. Quando a Isabela veio, complicou, porque era eu, o Gil, o Bem, ela, a mamadeira. Você não tem apenas um marido e um violão. Em 1991, o José nasceu e eu já estava envolvida nas coisas do Gil. Fui arrumando a vida dele, a Gege Edições. Começamos a fazer turnês, já tinha uma infra-estrutura grande.

Você comanda todos os negócios?
Tomo conta de tudo, do dinheiro, da Gege Produções, Editora FG, Refazenda Webdesign, Alafia Produções, os selos Geléia Geral e o Preta Music, este em NY. Só não vendo os shows. O Gil foi o primeiro artista a ter direito sobre 100% das suas obras. Isso há 15 anos. Falamos com as editoras musicais que cuidavam das obras para rever o catálogo e administrá-lo. Contratamos uma advogada que disse ser legal o direito de não querer a editora administrada por terceiros. Ganhamos na Justiça. Antes, os discos pertenciam à gravadora, hoje temos a gravadora, produzimos CDs e shows para outros artistas, como AfroReggae, Jorge Mautner, trabalhamos com cinema, fizemos Eu, Tu, Eles e O Maior Amor do Mundo.

Como começou a se relacionar com o Carnaval da Bahia?
Em 1999, a Bela tinha 10 anos e morávamos no circuito Barra-Ondina, onde acontece o Carnaval, e ela queria ver. Aluguei com uma amiga um espaço, chamamos o Caetano, a Paula, o Zeca era pequeno. Providenciamos comida, camisetas, foram umas 100 pessoas. E já conseguimos patrocínio da IBM e da Embratel porque, no ano anterior, o Gil fez a música “Pela Internet”, a primeira lançada pela Internet, ao vivo. A IBM se juntou à Embratel, e o Gil fez um pocket show no prédio da Embratel. No meio do ano, as crianças já pediam o Carnaval de 2000. A cada ano se desenvolveu mais.

Como é o processo de produção?
O de 1999 levei 15 dias para fazer. Hoje são seis meses para conseguir os patrocinadores, é um trabalho absurdo. Depois dizem que baiano não gosta de trabalhar.


O camarote da Daniela Mercury já existia?
Já, o dela começou em 1997. O meu tinha 100 pessoas, o dela 300. Eram os únicos para convidados. No começo havia concorrência, porque só ela tinha. Mas uma concorrência saudável, ela é minha amiga.

E a concorrência em relação aos patrocinadores?
Patrocinador quer o que é bom. Nosso camarote é bem-feito, tem pessoas do candomblé, jornalistas, políticos, atores, só não pago para ninguém ir. As pessoas acham que é o melhor camarote de Salvador. São 12 horas por dia, durante cinco dias, você pede o que quiser: whisky, massagem, cabeleireiro. As empresas querem exposição e o retorno é excelente. O Bono Vox deu uma canja ano passado e espalhou o Expresso pelo mundo, o Quincy Jones chamou a produtora para fazer a produção local de um filme sobre música brasileira. Virou um megainvestimento.

Quanto lucra?
Depende. Ano passado não tive lucro, um patrocinador desistiu na última hora. Não faço isso para ganhar dinheiro, mas já comprei um apartamento para o Bem. No meu Carnaval, o lucro é menor porque não vendo abadá nem ingresso. Se somar o trio com o camarote dá uns 400, 500 mil reais para pagar quem precisa e o que sobra é lucro para a Gege.

Pensa em deixar o Carnaval?
Estou convencendo a Preta a ficar no meu lugar. Ela e minha irmã [Fafá Giordano], meu braço direito. Seria lindo vir à Bahia e perguntar: que dia vou ao camarote?

Qual seu próximo projeto?
Me dedicar exclusivamente à família. Passar mais tempo com meu neto Bento, de 2 anos, filho do Bem com a Bárbara [Ohana Gil], acompanhar mais o José. Meu projeto é não ter tanta responsabilidade. Quero acompanhar o Gil nas turnês pela Europa. E quero ter parceria comigo mesma, porque, se furar, não é com os outros.

Como lida com o envelhecimento?
Acho frustrante morrer. Tem gente que se conforma. O Gil pensa muito na morte. Tenho mais medo de morrer do que de envelhecer. Posso ficar muito velhinha. Depois dos 45 anos a idéia da morte é mais presente. É cedo para morrer, mas não é cedo para começar a pensar na morte. Não concordo com a idéia de desaparecer. Devia haver um lugar para onde a pessoa que já fez tudo o que tinha que fazer pudesse ir, e não embaixo da terra num cemitério.

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