Logo Trip

Filhas da terra

Ao libertar mulheres do sistema patriarcal, Vanete Almeida extrapolou os limites do Sertão

Vanete Almeida

Vanete Almeida / Créditos: Bruno Miranda/Na Lata


Por Fernanda Danelon

em 10 de novembro de 2009

COMPARTILHE facebook share icon whatsapp share icon Twitter X share icon email share icon

No início, elas não conseguem dizer nem o próprio nome. Chegam encabuladas. Quando fazem uma ilustração para representar o próprio corpo, desenham uma panela. Toque físico, então, nem pensar. Um abraço pode até doer. Mas, durante os encontros organizados pela educadora popular Vanete Almeida, as trabalhadoras rurais conseguem romper o casulo do machismo e descobrir o orgulho da feminilidade. A vida da mulher da roça é dura. As comunidades ainda vivem sob o sistema patriarcal, em que o homem domina as relações familiares. Há mais de 20 anos Vanete transforma essa realidade conscientizando mulheres que, antes isoladas, se entregavam a uma existência desoladora. Essa avó de 66 anos, que nunca se casou mas adotou duas crianças, é uma das três mulheres homenageadas do Prêmio Trip Transformadores 2009.

A mãe era descendente de portugueses e o pai, de africanos. Da mistura brasileira nasceu Vanete, no município de Custódia, interior de Pernambuco. Desde cedo a menina se sensibilizou com as condições de vida das comunidades rurais. E começou a levar conhecimento, ajudando o povo sertanejo a conseguir cisternas para arrecadar água da chuva, melhorando o acesso às escolas, promovendo oficinas de conscientização. Assim, viu diminuir a violência doméstica e aumentar a autoestima da população. Quando se deu conta, havia mais de 200 homens em suas reuniões. Mas onde estariam as mulheres? Vanete descobriu-as escondidas na cozinha de suas casas, solitárias. Pediu aos maridos que as levassem, bateu porta de casa em casa e, aos poucos, foi organizando encontros só de mulheres.

Mães e filhas, jovens e idosas, a mulherada despertou. Com firmeza e tolerância, Vanete exalta as qualidades de cada uma. Ensina as mulheres a reconhecer suas limitações e a valorizar o que têm de melhor. Hoje, à frente da Rede de Mulheres Rurais da América Latina e Caribe, leva dignidade a núcleos familiares do Brasil e do mundo. Reúne mais de 200 mil trabalhadoras rurais, de 23 países: “Conseguimos tudo isso sem dinheiro, telefone ou fax, mas com uma vontade enorme de transformar a realidade”. A seguir, três mulheres que saíram de seus casulos graças a Vanete.

 

Aos 25 anos, Núbia desenvolve cultivo de hortas agroecológicas, sem o uso de produtos químicos
Aos 25 anos, Núbia desenvolve cultivo de hortas agroecológicas, sem o uso de produtos químicos / Créditos: Bruno Miranda/Na Lata

Lucenir Maria dos Santos Silva
Para o pai de Lucenir, os filhos já estavam educados quando aprendiam a ler e a escrever uma carta. Escola era só até a quarta série. Depois, iam ajudar no roçado. Caçula de oito filhos, Lucenir logo percebeu o seu destino e tratou de fugir dele. Aos 16 anos, voltou para a escola, pra fazer a quinta série. Conheceu Vanete através do movimento sindical e não parou mais de estudar. Fez magistério, faculdade de geografia, pós-graduação. Aos 34 anos, carrega com orgulho Thaila, a filha de 5 meses que nasceu do casamento com Antonio Carlos. É o marido quem embala a pequena na hora de dormir. Ambos trabalham, mas todas as manhãs, juntos, arrumam a casa antes de sair. Lucenir é a única na família a manter essa rotina doméstica. As irmãs aprendem com ela a não serem tão submissas ao marido, a adquirir o hábito da leitura, a se organizar politicamente para melhorar as condições de vida. Até seus pais foram estudar e, hoje, não são mais analfabetos.

 

 

Aos 34 anos, Lucenir trabalha fora e conta com a ajuda do marido nos cuidados domésticos
Aos 34 anos, Lucenir trabalha fora e conta com a ajuda do marido nos cuidados domésticos / Créditos: Bruno Miranda/Na Lata

Núbia Rafaela do Nascimento e Silva
Núbia tem 25 anos, vários amigos gays, compra sapatos pela internet, trabalha chefiando homens. Recebe o noivo aos fins de semana em sua casa própria, onde mora sozinha. Nasceu e mora no sertão pernambucano. Como sua mãe e avó, é trabalhadora rural. Mas não sai de casa sem se maquiar e não liga para o que os outros pensam. Com medidas fora dos padrões – calça 43 e tem 1,83 metro de altura –, aprendeu a se valorizar. “Hoje me sinto bonita, faço as unhas, gosto de mim. Comecei a perceber que esse negócio de feiura e boniteza é relativo”, diz. Núbia conheceu Vanete aos 13 anos e ficou “encantada”. O pai, relutante, começou a acompanhá-la nas reuniões e virou o seu melhor amigo: “É com ele que converso sobre os namorados”, conta. O futuro reserva o casamento com o noivo, que estuda a criação de bombas de poços d’ água movidas a energia solar. Enquanto isso, Núbia desenvolve técnicas de agroecologia, cultivando hortas sem uso de produtos químicos: “Jamais sairia daqui pra trabalhar no sul. Quero criar os filhos soltos no terreiro”, planeja, orgulhosa de sua origem.

 

 

Aos 61 anos, 27 deles casada com um homem violento, Maria Jucá corre atrás do prejuízo
Aos 61 anos, 27 deles casada com um homem violento, Maria Jucá corre atrás do prejuízo / Créditos: Bruno Miranda/Na Lata

Maria José dos Santos Jucá
Antigamente, quando queriam encontrá-la, perguntavam pela Maria de Eliseu, pois este era o nome de seu pai. Depois de casada, chamavam-lhe Maria de Quinca, seu marido. Hoje, aos 61 anos, ela é Maria Jucá. Apropriou-se de nome e sobrenome pra deixar de ser a Maria de outrem. É dona de seu próprio nariz. Mas nem sempre foi assim. No dia em que o marido lhe deu a primeira surra, arrancando-lhe os cabelos quando ela amamentava o primogênito, Maria Jucá correu para a casa dos pais. Lá, ouviu o que não devia: “Volte pra sua casa e não reclame”, disse-lhe o pai. “Se seu marido bater de novo e você voltar pra cá, dou-lhe outra surra também, pra aprender que lugar de fêmea é em casa, calada.” Foram 27 anos de tristeza e isolamento, trabalhando na roça e costurando dentro de casa, “só pensando em tomar veneno”. Até conhecer Vanete, que certa vez pediu a Quinca para levar a mulher à reunião do sindicato. Maria Jucá entrou para o movimento de mulheres rurais, se separou, terminou o segundo grau e aprendeu a se amar: “Hoje me considero gente”.

 

Vai lá:
Conheça mais sobre o trabalho de Vanete

PALAVRAS-CHAVE
COMPARTILHE facebook share icon whatsapp share icon Twitter X share icon email share icon