por Fernanda Danelon
Tpm #93

Ao libertar mulheres do sistema patriarcal, Vanete Almeida extrapolou os limites do Sertão

No início, elas não conseguem dizer nem o próprio nome. Chegam encabuladas. Quando fazem uma ilustração para representar o próprio corpo, desenham uma panela. Toque físico, então, nem pensar. Um abraço pode até doer. Mas, durante os encontros organizados pela educadora popular Vanete Almeida, as trabalhadoras rurais conseguem romper o casulo do machismo e descobrir o orgulho da feminilidade. A vida da mulher da roça é dura. As comunidades ainda vivem sob o sistema patriarcal, em que o homem domina as relações familiares. Há mais de 20 anos Vanete transforma essa realidade conscientizando mulheres que, antes isoladas, se entregavam a uma existência desoladora. Essa avó de 66 anos, que nunca se casou mas adotou duas crianças, é uma das três mulheres homenageadas do Prêmio Trip Transformadores 2009.

A mãe era descendente de portugueses e o pai, de africanos. Da mistura brasileira nasceu Vanete, no município de Custódia, interior de Pernambuco. Desde cedo a menina se sensibilizou com as condições de vida das comunidades rurais. E começou a levar conhecimento, ajudando o povo sertanejo a conseguir cisternas para arrecadar água da chuva, melhorando o acesso às escolas, promovendo oficinas de conscientização. Assim, viu diminuir a violência doméstica e aumentar a autoestima da população. Quando se deu conta, havia mais de 200 homens em suas reuniões. Mas onde estariam as mulheres? Vanete descobriu-as escondidas na cozinha de suas casas, solitárias. Pediu aos maridos que as levassem, bateu porta de casa em casa e, aos poucos, foi organizando encontros só de mulheres.

Mães e filhas, jovens e idosas, a mulherada despertou. Com firmeza e tolerância, Vanete exalta as qualidades de cada uma. Ensina as mulheres a reconhecer suas limitações e a valorizar o que têm de melhor. Hoje, à frente da Rede de Mulheres Rurais da América Latina e Caribe, leva dignidade a núcleos familiares do Brasil e do mundo. Reúne mais de 200 mil trabalhadoras rurais, de 23 países: “Conseguimos tudo isso sem dinheiro, telefone ou fax, mas com uma vontade enorme de transformar a realidade”. A seguir, três mulheres que saíram de seus casulos graças a Vanete.

 

Lucenir Maria dos Santos Silva
Para o pai de Lucenir, os filhos já estavam educados quando aprendiam a ler e a escrever uma carta. Escola era só até a quarta série. Depois, iam ajudar no roçado. Caçula de oito filhos, Lucenir logo percebeu o seu destino e tratou de fugir dele. Aos 16 anos, voltou para a escola, pra fazer a quinta série. Conheceu Vanete através do movimento sindical e não parou mais de estudar. Fez magistério, faculdade de geografia, pós-graduação. Aos 34 anos, carrega com orgulho Thaila, a filha de 5 meses que nasceu do casamento com Antonio Carlos. É o marido quem embala a pequena na hora de dormir. Ambos trabalham, mas todas as manhãs, juntos, arrumam a casa antes de sair. Lucenir é a única na família a manter essa rotina doméstica. As irmãs aprendem com ela a não serem tão submissas ao marido, a adquirir o hábito da leitura, a se organizar politicamente para melhorar as condições de vida. Até seus pais foram estudar e, hoje, não são mais analfabetos.

 

 

Núbia Rafaela do Nascimento e Silva
Núbia tem 25 anos, vários amigos gays, compra sapatos pela internet, trabalha chefiando homens. Recebe o noivo aos fins de semana em sua casa própria, onde mora sozinha. Nasceu e mora no sertão pernambucano. Como sua mãe e avó, é trabalhadora rural. Mas não sai de casa sem se maquiar e não liga para o que os outros pensam. Com medidas fora dos padrões – calça 43 e tem 1,83 metro de altura –, aprendeu a se valorizar. “Hoje me sinto bonita, faço as unhas, gosto de mim. Comecei a perceber que esse negócio de feiura e boniteza é relativo”, diz. Núbia conheceu Vanete aos 13 anos e ficou “encantada”. O pai, relutante, começou a acompanhá-la nas reuniões e virou o seu melhor amigo: “É com ele que converso sobre os namorados”, conta. O futuro reserva o casamento com o noivo, que estuda a criação de bombas de poços d’ água movidas a energia solar. Enquanto isso, Núbia desenvolve técnicas de agroecologia, cultivando hortas sem uso de produtos químicos: “Jamais sairia daqui pra trabalhar no sul. Quero criar os filhos soltos no terreiro”, planeja, orgulhosa de sua origem.

 

 

Maria José dos Santos Jucá
Antigamente, quando queriam encontrá-la, perguntavam pela Maria de Eliseu, pois este era o nome de seu pai. Depois de casada, chamavam-lhe Maria de Quinca, seu marido. Hoje, aos 61 anos, ela é Maria Jucá. Apropriou-se de nome e sobrenome pra deixar de ser a Maria de outrem. É dona de seu próprio nariz. Mas nem sempre foi assim. No dia em que o marido lhe deu a primeira surra, arrancando-lhe os cabelos quando ela amamentava o primogênito, Maria Jucá correu para a casa dos pais. Lá, ouviu o que não devia: “Volte pra sua casa e não reclame”, disse-lhe o pai. “Se seu marido bater de novo e você voltar pra cá, dou-lhe outra surra também, pra aprender que lugar de fêmea é em casa, calada.” Foram 27 anos de tristeza e isolamento, trabalhando na roça e costurando dentro de casa, “só pensando em tomar veneno”. Até conhecer Vanete, que certa vez pediu a Quinca para levar a mulher à reunião do sindicato. Maria Jucá entrou para o movimento de mulheres rurais, se separou, terminou o segundo grau e aprendeu a se amar: “Hoje me considero gente”.

 

Vai lá:
Conheça mais sobre o trabalho de Vanete

fechar