um texto sobre dar notícias ruins, a professora do Charlie Brown e a mente humana
Sempre que chega aquele momento em que eu preciso dar uma notícia ruim a familiares de um paciente, eu tenho a mesma impressão. Não importa se é sobre o comprometimento agudo que os rins sofreram ou a limitação do pulmão em oxigenar o sangue. A partir do momento em que aquelas pessoas, ansiosas por informações, constatam que o que preciso dizer não é bom, acontece sempre a mesma coisa: eu simplesmente deixo de existir.
Sinto que, para eles, minha voz vai ficando progressivamente mais baixa e distante, até desaparecer. Que nem a gente vê naquelas clássicas cenas de filme, quando o personagem ouve ou presencia algo perturbador e a boca do interlocutor, instantaneamente, passar a se mover em câmera lenta, sem que som algum saia dela. Ou então me torno algo como a professora do Charlie Brown. Por mais que eu tente explicar tudo com a maior clareza, cronologia e objetividade possíveis, a pessoa não está mais ouvindo.
Tentei contornar isso com várias estratégias: ir contando gradativamente os eventos que se sucederam até chegar no ápice da piora (algo meio "o gato subiu no telhado/ o gato chegou perto da borda do telhado/ o gato perdeu o equilíbrio") já provou não funcionar. Os familiares ficam tão ansiosos para que você chegue logo no desfecho, que não se concentram. Foram frequentes as vezes em que fui interrompida por um "fala logo o que aconteceu, doutora!" ou então "Ai meu Deus, isso quer dizer que ele piorou?!". Também já tentei começar pelo desfecho e, em seguida, contar como ele ocorreu. Também sem sucesso. Depois que você disse que ele parou de respirar e teve que ser entubado, não adianta querer explicar o que levou a isso. A gravidade e a chance enorme de "acontecer o pior" já estão definidas. Pouco importa, naqueles segundos, explicar como ocorreu. Pedir para a pessoa sentar antes que eu comece a falar? Também já testei. Catastrófico. Além da pessoa se recusar prontamente a sentar, aumenta a ansiedade, gerando o "Por quê?! Ele tá ruim? O que houve? Fala logo, por favor!".
Confesso que ainda não achei a forma ideal. Afinal, o que pode haver de ideal em se comunicar algo que marcará negativamente a vida de toda uma família? Mas cheguei num meio-termo. Tenho optado por começar essas conversas dizendo que, infelizmente, a notícia que preciso dar não é boa. Isso me compra alguns segundos para dizer algumas palavras-chave, antes que minha voz suma de vez para eles. E das quais se lembrarão quando a negação diminuir, começarem a processar o ocorrido e voltarem para falar comigo de novo durante o próximo horário de visita.
Engraçado como, durante a formação médica, ninguém fala sobre isso, muito menos sobre o quão frequente é. Não me levem a mal, eu tive aulas de psicologia médica e aprendi direitinho os cinco estágios do luto que a Elizabeth Kubler-Ross descreveu. Só que, em seis anos de faculdade, dois de residência de clínica médica e, principalmente, dois de residência de Terapia Intensiva, ninguém me falou daqueles segundos que são o gatilho para início de toda essa cascata. Ninguém chegou do meu lado e perguntou se eu tinha alguma idéia ou o savoir-faire de como dar notícias ruins a alguém. Falha da formação? Talvez sim. Talvez não. Talvez nenhum de nós tenha uma receita. Médicos são silenciosamente doutrinados a acreditar que complicações são falhas e a morte é derrota.
Para familiares e amigos de pacientes, o desconforto é ainda maior. Mesmo que a certeza do fim seja a única que temos desde o nascimento, a morte e/ou eventos que podem levar a ela são invariavelmente chocantes. Sempre vêm como surpresa. Com 21 ou 93 anos, por mais que pareça clichê, todo mundo acha que sempre terá mais tempo, seja para o que for: fazer as pazes, concretizar a viagem sobre a qual sempre se falou, telefonar mais... não importa. E não há palavra ou estratégia capaz de amenizar o desalento que a constatação do contrário causa.
Duvido muito que, algum dia, eu vá encontrar uma receita mágica para essas conversas decisivas ou mesmo me acostumar com elas. Afinal, além de médica, sou filha, irmã, amiga e namorada também. E essas coisas não desaparecem quando se veste um jaleco. Na verdade, falei isso tudo porque, quanto mais penso sobre o assunto, chego à conclusão de que eu não salvo vidas. Honestamente, não sei se alguém é capaz disso (os bombeiros, quem sabe...). A cada dia, fica mais claro que o tento fazer, utilizando-me de todo meu conhecimento e empenho, é prolongar sua vida o máximo que eu puder. Para que você mesmo possa salvá-la, sendo fiel às suas convicções, ao que/quem ama e ao que te faz bem, antes que as cortinas se fechem de vez.
-meu Twitter: @mperroni