Estupro culposo: a sentença que revela o machismo judiciário

por Cinara Moura

O julgamento do caso de Mariana Ferrer gerou revolta nas redes sociais depois de cenas de humilhação, violência e a absolvição do réu por não ter havido ”intenção” no estupro

Mariana Ferrer foi violentada mais de uma vez. No dia 15 de dezembro de 2018, a influenciadora de 23 anos foi dopada e estuprada numa boate em Jurerê Internacional, praia badalada de Florianópolis, em Santa Catarina. Este ano, mais uma violência. No julgamento, ela foi ofendida e humilhada pelo advogado de defesa e o réu, André de Camargo Aranha, inocentado porque o juiz aceitou a tese de que não havia como ele saber que Mariana não estava em condições de consentir a relação. Ou seja, não houve a intenção de estuprar, argumentação jurídica que ganhou na internet o nome de "estupro culposo". Mais que uma sentença, o julgamento revela a força do machismo na justiça brasileira.

 

“O pacto de proteção mútua levou o juiz a inventar o que só existe em sua fantasia de mando: estupro culposo”
Débora Diniz

Segundo a antropóloga Débora Diniz, uma das vozes mais potentes na pesquisa do feminismo e dos direitos das mulheres no Brasil, o que aconteceu foi um pacto de proteção mútua entre quatro homens brancos de classe média alta.

"O que vimos na cena de audiência é como olhar pelo buraco da fechadura do que vivem as mulheres vítimas de violência nas delegacias e nos tribunais. São maltratadas, expostas ao ridículo, violentadas simplesmente por serem mulheres em uma ordem de poder patriarcal. Estavam ali quatro homens, todos parecidos entre si na voz, no mando, em imaginar-se como o possível homem a ser acuado por um estupro. O pacto de proteção mútua levou o juiz a inventar o que só existe em sua fantasia de mando: estupro culposo, quando um homem estupra uma mulher sem o querer. É preciso repetir que não há nem na lei ou na ética tamanho absurdo. Só mesmo na ousadia patriarcal que violenta mulheres e justifica a violência como um descuido, cuja culpada seria a própria vítima", disse à Tpm.

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A sentença causou revolta também nas redes sociais, com milhares de mulheres expondo, além do empresário acusado de estupro e o juiz, também o advogado que humilhou Mariana após o parecer, Cláudio Gastão da Rosa Filho, e o promotor de defesa que alegou o estupro culposo, Thiago Carriço.

A promotora Gabriela Manssur, que realiza um trabalho reconhecido no combate à violência contra as mulheres, foi uma das personalidades que se manifestaram nas redes sociais. "Não existe 'estupro culposo'. Todos os crimes culposos existentes no Direito Penal Brasileiro estão expressamente previstos no nosso Código Penal, sem exceções. O que existe, em alguns casos, é machismo, violência institucional de gênero, re-vitimização e culpabilização da mulher”, escreveu em seu Instagram. E continuou, pedindo aos seguidores que evitassem generalizações: "Há muitos juízes, promotores e operadores do Direito que lutam diariamente pelo fim da violência contra a mulher e juntamente com a sociedade brasileira, da qual fazem parte, se insurgem e se indignam diante de qualquer violação aos direitos e garantias constitucionais.”

À frente do Movimento Corpo Livre e do canal Alexandrismos, que discutem a relação das mulheres com seus corpos, Alexandra Gurgel também se posicionou sobre o caso em sua conta no Instagram e revelou já ter sido violentada, chamando atenção para mais uma nuance: as mulheres que não denunciam. “O que aconteceu com a Mari Ferrer é um reflexo de como a sociedade caminha pra legalizar o estupro. Parece exagero? Infelizmente não é. A cada 11 minutos uma mulher é estuprada no Brasil, mas nem fazemos ideia das subnotificações, ou seja, quando a mulher não denuncia. Eu mesma não denunciei na época", escreveu.

Para Viviane Duarte, fundadora da ONG Plano de Menina, a decisão coloca em risco todas as mulheres. "Imagina a quantidade de homens estupradores que vai se valer dessa brecha pra nos atacar. A gente é o quinto país que mais mata mulheres no mundo por feminicídio e ter essa indecência acontecendo na justiça do Brasil é surreal. É uma mistura de vergonha, impotência, raiva e, cada vez mais, vontade de lutar”, afirma. Na visão da empresária, o momento de indignação precisa servir de ponto de partida para alguma ação que contraponha a sentença: "Esse momento é de muita revolta, mas que também mostra que nós mulheres precisamos nos unir. Eu sei que isso já é algo determinado pela justiça, mas eles precisam entender que não existe estupro culposo. Não existe e não é agora que vai existir. A gente vai lutar para que essa decisão caia."

Em uma das cenas gravadas durante o julgamento, Mariana implora: “Eu exijo respeito, doutor, nem os assassinos são tratados da forma como eu estou sendo tratada”. A fala deixa claro que a luta pelos direitos das mulheres e o combate à cultura do estupro ainda está longe de acabar, assim como a violência de Ferrer não parou no ato de estupro. Por isso, não basta falar, é necessário que se grite: não existe estupro sem intenção.

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