Cantora e baixista americana se apresenta no Rock in Rio com Milton Nascimento no sábado
"Vocês têm que me manter afastada disso". A brincadeira é a primeira frase de Esperanza Spalding e o "disso" a que ela se refere são os fumegantes pães de queijo oferecidos em sua entrevista coletiva. Fã da língua, da música e do quitute brasileiro, a artista norte-americana veio para o Brasil para duas apresentações, um show solo realizado ontem em São Paulo e outro já com ingressos esgotados, no dia 24, com cantor Milton Nascimento no Rock in Rio 4.
Com uma figura frágil e que combina com seu jeito doce e simpático, Esperanza já tem uma carreira solidificada. Sucesso de crítica, a contrabaixista e cantora começou cedo, aos 5 anos de idade. No começo deste ano, aos 26, foi a primeira jazzista a ganhar o Grammy de melhor artista revelação, batendo ninguém menos que a sensação adolescente Justin Bieber.
Nesta entrevista coletiva, Esperanza falou sobre sua amizade com Milton Nascimento, suas influências musicais, seu período como professora e os shows no Brasil.
Você vai tocar, no dia 24 com o Milton Nascimento no Rock in Rio e hoje (quarta, 21/09) você vai tocar sozinha em um teatro menor. Tocar em lugares grandes é algo que você gosta?
Só toquei em arenas duas vezes e não foi em shows meus, por isso não me senti tão responsável [risos]. As pessoas vieram pra ver outro artista e eu só abri. Claro que gosto de tocar e escolherei músicas apropriadas para o ambiente em que estou. Não posso tocar música de concertos em um lugar onde as pessoas estão de pé para me ver, da mesma maneira que não vou fazer um set bombástico, agitado, em um lugar intimista. Mas as duas coisas me dão muita emoção, de maneiras diferentes, é claro. O show de hoje será em um lugar pequeno, por isso, o que eu pretendo fazer é convidar as pessoas a entrarem naquele clima, naquela energia mais calma, mais sutil. E no Rock in Rio nós estamos ensaiando canções que tenham essa energia mais aberta, lançaremos tudo para o público, para animá-los! As duas maneiras são muito divertidas!
E como será o show do Rock in Rio?
Nós ensaiamos [Esperanza e Milton Nascimento] pelos últimos quatro dias. As músicas dele que estão no setlist já são tão épicas, as letras, a maneira que a música progride. Acho que a questão é se sentir confortável o bastante para deixar a música sair dos nossos corpos e mãos de maneira natural, sem pensar no que irá acontecer depois. O Milton sabe como tocar desse jeito, sabe como fazer isso, como arranjar as canções. Nós pensamos no sentido de identificar o que eu poderia oferecer ao que ele já tinha. Já as minhas canções preparadas para o set têm uma energia mais bombástica. É difícil falar sobre o que vai acontecer, me pergunte depois e eu te digo... Vamos ver o que acontece.
"Não promovo minha sexualidade, nem me visto sexy, nem coloco isso como um atrativo para que as pessoas ouçam a minha música"
O nome do festival é Rock in Rio e seu estilo de música é o jazz. Você tem receio de tocar para o público que espera ver outro tipo de música?
O que você acabou de dizer é incrível. Porque o rock é uma evolução do blues, e o blues veio da África, uma parte específica dela. E a música que o Milton faz também tem muita influência da música folclórica brasileira, que também é influenciada pela africana, portanto, de alguma maneira nós também estamos tocando rock. A palavra que define a música não muda, mas a música continua evoluindo. Se os Beatles e os Rolling Stones são "rock and roll", com certeza nós estaremos bem. Pink Floyd e os Rolling Stones tiraram muita coisa do blues... A maneira de cantar, os grooves, e a harmonia evoluíram e se tornaram as diferentes ramificações do rock. Esse mesmo núcleo está na presente na música do Milton, igualmente senão mais. Por isso acho que ele tem essa habilidade de tocar para multidões e deixá-las hipnotizadas.
Como você e o Milton se conheceram e ficaram amigos?
Nós somos amigos há dois anos. Antes de conhecê-lo, mandei um e-mail dizendo "Eu amo você, obrigada por ter nascido e fazer essa música maravilhosa, que ainda está sendo descoberta e que toca bem no fundo das pessoas". Aí ele me respondeu: "Ok, legal. Também te amo. Tchau.", [risos]. Depois nós nos encontramos em São Paulo, porque minha banda ia abrir para o George Benson. Ele me convidou para ir à casa dele no dia seguinte. Nós tocamos bastante e nos mantivemos em contato por e-mail. No ano passado, também passei um tempo com ele... Depos ele me convidou para tocar no Rock in Rio e eu disse sim!
Existe o plano de gravar um disco com ele?
Ele gravou uma música comigo, mas não temos planos concretos de fazermos um disco. Nós vamos tocar juntos e ver como sai. Mas sem dúvida, fazer isso com ele seria um sonho.
No começo do ano, quando você ganhou o Grammy de melhor artista revelação os fãs de Justin Bieber, que concorria com você, invadiram sua página na Wikipedia. Como foi isso? Algum fã do Justin Bieber começou a gostar da sua música depois do episódio?
Acho que até o Justin Bieber não se importa com isso, ele está muito ocupado com o seu trabalho. Sem ofensa aos fãs dele, talvez alguém se importe com esse tipo de coisa, mas pra mim esse "ataque" não significou nada. Ainda mais porque, depois do Grammy, nós fomos para o Japão e não ficamos sabendo de quase nada. Alguns amigos meus me avisaram, mas não tomei muita consciência de tudo isso e depois já havia acabado. Não sei se os fãs dele começaram a escutar minha música. Mas acho que eles têm tempo, décadas para ouvir me ouvir. Talvez, depois de um tempo eles digam, "Até que ela não é tão ruim" [risos].
Isso acontece em todos os lugares, porque vivemos em uma era de de super sexualização. Isso se aplica a muitas coisas. Sexo vende e por isso muitos artistas incorporam esse aspecto da sua imagem, porque eles entendem que o seu principal objetivo é sua carreira, é tocar. Então eles pensam: O que vai fazer minha carreira ir pra frente?. Eles têm talento, um som único, beleza e sexualidade também. É só uma questão de o que as pessoas ficam confortáveis mostrando. Para algumas mulheres isso não é algo que as envergonhe. Talvez a mídia incentive , mas o artista também aceita e projeta isso. Também existem casos em que o artista não usa esse aspecto como parte da sua apresentação, mas a mídia não vê essa situação e isso pode magoar um pouco.
Como você lida com essa situação?
Não promovo minha sexualidade, nem me visto sexy, nem coloco isso como um atrativo para que as pessoas ouçam a minha música. Não é a minha natureza e não é assim que eu me defino. Quando as pessoas escrevem sobre mim, citando o que eu faço como uma novidade só porque sou mulher, acho bem frustrante. Penso que é uma pessoa de 50 anos que escreve sobre música, cresceu em uma época diferente. Não levo como pessoal. Mas parece que sou uma mulher fazendo algo reservado especialmente para os homens... Isso representa uma mentalidade ultrapassada, que está morrendo. O preconceito com mulheres está muito enraizado, até as mulheres mais independentes podem se pegar impressionadas por seus próprios estereótipos.
Você gravou a canção "Samba em Prelúdio" de Vinícius de Moraes de Moraes e Baden Powell. A música foi baseada no prelúdio das Bachianas Brasileiras n° 4 do Villa-Lobos. Você conhece outros compositores clássicos brasileiros?
Nossa, verdade? Não sabia disso. Em qual música? É engraçado como esses gêneros acabam de alinhando, existem tantos compositores que têm treinamento clássico, mas as músicas que eles fazem não ficam nesse nicho. Milton [Nascimento] é uma dessas pessoas, ele estudou coral, fundamentos clássicos. Na verdade, sou ignorante sobre compositores clássicos brasileiros. Gosto da Clarice Assad. Ela é compositora incrível. Sua música não fica em um nicho só, mas a escola dela é a clássica. Existem muitas maneiras de se aprender uma linguagem. A coisa mais importante é saber os fundamentos básicos e depois você vai ter seus coloquialismos no meio, seu sotaque. Também gosto do Felipe Lara. Ele mora em Nova York e é um compositor super contemporâneo.
Quais são suas influências como cantora?
Não sei se conseguirei me lembrar de todos. Um cantora polonesa chamada Urszula Dudziak. Muito Milton e Elis Regina. Também tenho escutado Chabuca Granda. Mas só pra esclarecer, influência pra mim são artistas que eu posso gostar em um nível emocional, sem analisar como musicista. Quando o meu cérebro analítico entra em cena é para coisas mais específicas. Com a Chabuca, por exemplo, entendi pela primeira vez como a voz também pode ser uma força rítmica na banda. A banda é super pequena, tem só percussão, guitarra e outra cantora. A voz dela entra quase como uma segunda percussão! Isso virou uma ferramenta pra mim. Outra pessoa que me impactou muito foi a Jeanne Lee, uma cantora de jazz. Me chamou muita atenção o fato dela parecer mais uma atriz que uma cantora. Ela se coloca no clima da história da canção e passa toda a emoção pela melodia.
Você canta em português. Já pensou em estudar a língua?
Estou tentando! Mas é um processo lento... Pratico com amigos e tento falar sem me importar em estar certa. Sei que com tempo vai melhorar, não importa que por enquanto eu esteja destruindo essa língua tão bonita... Mas peço que as pessoas tenham paciência e confiem, irá melhorar. Existem tantas coisas que eu quero fazer e sei que em 80, 90 ou 100 anos, tentarei fazer cada uma dessas coisas. Eu só começo e deixo rolar. Sei que em 10 anos irá melhorar, porque estou me empenhando naquilo. Português pra mim é como tocar o baixo elétrico, eu comecei e vou levando. Tenho aprendido muito escutando canções, mas em músicas de alguém como o Milton, os significados escondidos e referências das palavras são muitos...
Depois de ter se formado na Berklee College of Music, você se tornou professora lá. Ensinar te dá tanto prazer quanto fazer shows?
Isso é engraçado. É quase como todas as outras coisas. Você passa por um período de aprendizado que não é propriamente divertido. Você pode até gostar deste processo, mas sinto que só na hora em que você passa daquele período de aprendizado, que você praticou e estudou bastante, você pode realmente aproveitar e colher os frutos. Nesses três anos em que passei como Berklee, realmente estava tentando aprender como ser uma boa professora. No fim, acabei percebendo que quando eu soubesse como ensinar, percebesse o que cada aluno precisa, me divertiria mais. Gostei muito, imensamente de ensinar. Mas foi mais como se eu fosse uma aluna aprendendo como ser professora. Tipo: "Isso não funcionou na semana passada. O que eu vou fazer? Ah, isso funciona, isso não".Ensinar me ajudou muito como artista. Uma coisa que eu gostava muito era quando em um grupo de alunos, acontecia de eu simplesmente saber o que eles precisavam ouvir para aprender. Era um clique, quase um instinto maternal, uma coisa incrível. No entanto, quando você não sabe o que falar, não é tão legal [risos]. Resumindo: amo ensinar, desejo que isso seja, algum dia, o foco da minha vida. Parei de dar aulas porque a energia que eu gastava avaliando provas e trabalhos, estou usando para saber o que estou fazendo agora. Ensinar a mim mesma.
Vai lá: www.esperanzaspalding.com
Esperanza Spalding cantando "Ponta de Areia", de Milton Nascimento, no Tim Festival de 2008