por Alana Della Nina

Em Mães de Beira, o fotógrafo Rafael Stedile conta a história da tragédia em Moçambique a partir de pessoas invisíveis ao noticiário

Rafael Stedile caiu na fotografia por acaso —  ou melhor, por paixão: publicitário acostumado à rotina das agências, largou o emprego em 2012 e decidiu viajar. Levou uma câmera para registrar em vídeo sua jornada pelo México e pelo Haiti e descobriu a beleza da imagem estática. “Voltei para São Paulo decidido a não trabalhar mais com publicidade”, conta. De lá para cá, ele foi se encontrando dentro dos muitos estilos da área e aprendeu a separar o trabalho em duas partes fundamentais: fotografar para sobreviver profissionalmente e fotografar para exercer seu olhar autoral. Desta última, saem muitos ensaios em zonas rurais — cenário favorito do paulistano — , como o Mães de Beira, projeto que ele clicou em Beira, segunda maior cidade de Moçambique, devastada no início do ano pelo ciclone Idai.

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Rafael visitou um dos acampamentos para onde os moradores que perderam tudo foram realocados, com a missão de registrar a situação em fotos e buscar mais apoio. Mesmo impressionado com a situação de vulnerabilidade extrema em que as pessoas estavam vivendo, ele decidiu ir além da tragédia e conhecer as histórias das pessoas por trás dela. “Meu interesse circula por esse espaço de histórias pouco ou mal contadas. Realçar aquilo que é subjetivo do outro e, ao mesmo tempo, comum a todos”, diz ele, que escolheu contar essa narrativa pelas mulheres de Beira e seus filhos. Segundo o fotógrafo, elas eram a energia mais viva do lugar —  maiores e mais presentes do que a miséria que as cercava. Ainda que exista uma situação de extrema pobreza, extrema mesmo, essas mulheres não se resumem a isso. Elas têm nome, história, antepassados, cultura, desejos. Está tudo ali”, diz.

A seguir, Rafael fala mais à Tpm sobre sua experiência em Beira e em outras áreas rurais, a trajetória na fotografia e projetos futuros.

Tpm. Como você conheceu as histórias dessas mulheres de Beira?
Rafael Stedile. Eu estava na África do Sul cobrindo um evento e, pela proximidade com Moçambique, me convidaram para acompanhar a instalação de uma brigada de brasileiros voluntários —  que foi uma coordenação entre o MST do Brasil e a Adecru (Acção Académica para o Desenvolvimento das Comunidades Rurais) de Moçambique —  para prestar assistência médica e psicológica às vítimas do ciclone Idai. No meu primeiro dia em Beira, fomos visitar esse acampamento de desabrigados, acho que o maior da cidade. E a sensação que eu tinha é que aquelas pessoas estavam abandonadas, não podiam contar com ninguém. São famílias que perderam tudo e vivem à mercê do auxílio de uma ONG ou de uma igreja. A gente não tinha nenhum contato lá dentro, nem sabíamos se precisávamos de autorização, apenas chegamos, entramos e começamos a conversar com as pessoas. E essas mulheres me chamaram a atenção. Elas andavam em grupos e estavam sempre carregando seus filhos. Existe ainda esse papel cultural doméstico feminino bem marcado nessas zonas rurais. A divisão de tarefas por gênero é algo forte por lá, é uma sociedade muito machista, então o bebê fica a cargo da mãe. É muito comum vê-las carregando seus filhos envoltos pela capulana, um  tecido tradicional colorido que elas usam para tudo. Não me lembro de ter visto homens com crianças de colo. E, fora o cuidado com os filhos, eram as mulheres que cuidavam do acampamento, faziam tudo lá. Elas eram sorridentes, conversavam, conheciam o sotaque do brasileiro por novelas e programas de TV. 

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E como você idealizou o projeto? Não foi uma decisão muito premeditada. Minha ideia, a princípio, foi mostrar um diagnóstico visual de como estava Beira um mês após a passagem do ciclone com o objetivo de divulgar a brigada e conseguir apoio. Chegando lá, várias crianças vieram falar comigo, pedir foto, decidi clicá-las. É uma cena muito engraçada tentar organizar umas trinta crianças para fazer retratos, mas não dá certo, claro. Aí fui buscar perfis para minha proposta inicial, até que vi um grupo de mulheres com seus filhos, sentadas à sombra conversando. Me apresentei e perguntei se podia fotografá-las. Então aconteceu de forma natural. A primeira mulher que posou, a Isaura, foi muito simpática e me ajudou a chamar as outras mães. Foi um recorte interessante. Eu queria escapar daquele risco de fazer fotos de pessoas africanas em situação de grave vulnerabilidade, reproduzindo o estereótipo da história da fotografia branca. Ainda que exista uma situação de extrema pobreza, extrema mesmo, essas pessoas não se resumem a isso. Elas têm nome, história, antepassados, cultura, desejos. Está tudo ali. Então, busquei olhar outra coisa nessa cena e, de fato, as moçambicanas me chamaram a atenção —  a força, a altivez, a beleza, o sorriso, as cores, o cabelo. É impressionante.

Você tem ensaios com temas diferentes, como o LGBT rural. De onde vêm essas ideias? Acho que da minha curiosidade mesmo. Eu me identifico com trabalhos que tragam à tona narrativas que, em geral, são invisibilizadas, marginalizadas, esquecidas. Me interesso por discursos não hegemônicos, pela alteridade, por apostar nas pluralidades. No caso dos LGBT, o IBGE diz que 10% da população brasileira é LGBT. Pensei: Se é estatístico, onde estariam esses LGBT na área rural? São reprimidos? Será que se assumem? Como é viver em um ambiente que costuma ser mais conservador e religioso? Daí fui investigar. 

Conte um pouco sobre a sua trajetória como fotógrafo. Foi meio por acaso. Em 2012, larguei meu emprego, comprei uma câmera para fazer vídeos e viajei para o México. De lá fui para o Haiti e comecei a fotografar. Fiquei um mês no interior do país registrando a realidade camponesa. Foi uma experiência incrível e um divisor de águas. Voltei ao Brasil decidido a não trabalhar mais com publicidade. Comecei a fazer frilas de foto em tudo que era tipo de evento, enquanto frequentava workshops e aprendia na marra a fotografar. Não tive nenhuma formação acadêmica ou tradicional. Então, como freelancer, fui aumentando meus contatos na área, fazendo evento corporativo, fotojornalismo e peguei gosto por retratos. Há sete anos me dedico a isso.

Você já está planejando um próximo trabalho? Estou sempre à disposição do pessoal da Via Campesina [organização internacional de camponeses composta por movimentos sociais do mundo todo] e de outros movimentos que tenham projetos para serem fotografados. Me encanta essa questão rural. Quero ainda complementar o ensaio LGBT rural, voltar para o interior do Maranhão para produzir mais coisas de um trabalho que fiz sobre alfabetização de adultos. Neste segundo semestre, também quero fazer um curta-metragem com um amigo sobre um músico paulistano conhecido da boemia, mas já um pouco esquecido dos holofotes.

Créditos

Imagem principal: Rafael Stedile/Divulgação

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