por Flora Paul

Como Patrícia, corregedora que inspirou a série 9 mm, lida com morte, vaidades e mentiras

Trocas de tiros, perseguições, disfarces, gritarias nas salas de interrogatório. Quem acompanha a série 9mm: São Paulo, exibida no canal Fox, pode ver que não é bem assim a rotina de corregedora Paula, interpretada pela atriz Ana Petta, em sua busca por justiça enquanto investiga policiais infratores e corruptos. Ainda que a televisão influencie muito na visão meio superheroica que temos de policiais, nesse caso, não dá para negar uma certa verossimilhança com a vida real: a personagem foi inspirada em uma corregedora de verdade, a Patrícia, que é delegada da Corregedoria Geral da Polícia Civil.    

Há sete anos investigando as irregularidades que os próprios policiais cometem, é fácil entender por que Patrícia aparece por aqui sem sobrenome ou sem mostrar o rosto. “A Polícia Civil é uma polícia discreta, que não deve aparecer muito, a investigação requer isso mesmo. E a corregedoria mais ainda, como nossos clientes são policiais, temos que ser o mais discretos possível”, contou ao site da Tpm por telefone, em uma entrevista falando sobre seu cotidiano, vaidade, medo, morte e mentiras.

Como você entrou para a Corregedoria?
Prestei concurso público para ser delegada. Desde que vi que tinha de escolher uma profissão, almejei algo parecido com o que meu pai, promotor de justiça, fazia. Ele sempre foi minha inspiração. Então fiz faculdade de Direito e prestei concurso público. Por um acaso passei na Polícia. Com 24 anos, entrei, gostei e fiquei! Trabalhei mais de três anos na Sé, o distrito mais carregado de São Paulo. É o nosso Bronx. Tinha um ritmo alucinante. Eu tive oportunidade de vir, mas não planejava, sabe? Em 2002, um outro policial foi para delegacia em que eu estava, apareceu a possibilidade de transferência e acabei vindo. E hoje já vou completar sete anos na Corregedoria!

Como foi quando você começou a trabalhar como delegada de polícia? 
Foi diferente, eu nunca tinha trabalhado antes, só estudava. Foi meu primeiro emprego, numa área completamente diferente do esperado, um outro mundo. No começo você pensa que é fácil, mas pena bastante, sofre com os problemas de quem vai a delegacia, tem de ter muita cabeça. Sofri muito quando entrei, me sentia decepcionada com as pessoas, imagina, eu vivia num mundo cor-de-rosa! [Risos.] Você vê que a sociedade não é bem assim, que existe um lado muito sujo. Mas a parte boa foi que amadureci bem rápido. O sofrimento caminhou com o amadurecimento e me fortaleci muito.

A Corregedoria é um órgão especializado em apurar crimes e irregularidades realizadas pelos próprios policiais. Você sente que existe uma diferença no tratamento de outros policiais com os corregedores?
Existe. Eu nunca tive problema, vou te dizer que desde que vim pra cá fiz mais amigos na polícia. Mas a Corregedoria é um órgão complicado. Há policiais que se incomodam com ela, e provavelmente devem ter um motivo pra se incomodar. O que eu falo é que é um mal necessário,  nós precisávamos lavar nossa roupa suja em casa. Há policiais que viram a cara para os corregedores. Mas a grande maioria não. Se você é uma pessoa séria, que apura as irregularidades, trabalha de uma forma correta, faz seu trabalho com justiça, age dentro da lei, você não é mal visto. Você é aceito, respeitado. Mas se você é mais agressivo, ou mais pesado, talvez sofra um certo preconceito. Eu continuo sendo delegada, pertenço à mesma carreira que eles. Amanhã posso sair da Corregedoria e trabalhar em qualquer outro departamento de polícia.

E por ser mulher? As mulheres ainda são uma minoria dentro da polícia. Você sente que recebe um tratamento diferente dos colegas?
Olha, eu falo por mim. A mulher em ambiente totalmente masculino tem que ter postura. Esta é a palavra: postura. Você tem que saber se colocar, se fazer respeitar e manter essa postura. Se você dá espaço, realmente tem os engraçadinhos. Mas se você mantém essa postura, não só acaba sendo mais respeitada, como mais protegida, eles acabam te adotando. Temos que mostrar nossa firmeza, nosso conhecimento, porque acabamos sendo mais cobradas, mas depois que você adota uma boa postura, segue tranquilamente. Quando a policial engravida, faz o trabalho de rua normalmente. Trabalhei grávida, mas como tive alguns problemas e precisava de repouso, em algumas ações um colega muito camarada me cobria. Obviamente tem esse  lado da proteção, sempre tem um colega, um chefe que dá uma ajuda. Se você não está bem, eles ajudam.

Conte mais sobre como é sua rotina de trabalho. Existe todo um imaginário sobre policiais em missão, que vocês andam disfarçados, essas coisas. Como é a realidade?
Já existiu isso de se disfarçar, de se infiltrar, mas não existe mais. Hoje lidamos com os recursos de investigação comum: usamos grampos, fazemos levantamento das pessoas, usamos viaturas frias [descaracterizadas], ficamos moqueados, com os policiais fotografando, filmando, sem que a pessoa perceba. Mas não é nada muito Pegadinha do Faustão! Normalmente quem faz isso são os investigadores, os delegados determinam o que fazer. Mas em casos bem mais sérios, profundos ou arriscados, vou com eles para dar as diretrizes já do local. Se temos um mandado judicial para invadir uma casa, por exemplo, eu estou sempre presente.

E fora do trabalho, como é sua rotina? Você se cuida, faz exercícios, é vaidosa?
Lógico! Isso é um preconceito, um tabu que mulher da polícia é abrutalhada! Quando as pessoas me veem, nem acreditam, dá para dizer que eu sou superpatricinha. Nós ainda somos a minoria na polícia, mas não perdemos a vaidade: nos maquiamos, fazemos a unha, o cabelo, normal! E vamos para a rua assim, subimos em favela da mesma forma. Não tem mais essa não. Agora, exercícios, eu sempre gostei de academia, mas tenho uma filhinha de 3 anos. E depois que tive minha pequenininha ficou complicado, minha vida ficou mais corrida, então eu estou meio parada nessa parte. Estou esperando ela crescer um pouquinho pra retomar.

Você consegue sair numa boa, não teme ser reconhecida por alguém que investiga?
A grande vantagem de trabalhar numa metrópole é que você sai, vira a esquina e ninguém sabe quem você é. No interior, há delegacias menores que têm uma certa visibilidade, aí tem que ter mais cautela na vida social. Aqui é bom porque a gente não se preocupa tanto, não tem visibilidade, só se estiver muito na mídia. Mas a Polícia Civil é uma polícia discreta, que não deve aparecer muito, a investigação requer isso mesmo. E a corregedoria mais ainda, como nossos clientes são policiais, temos que ser o mais discretos possíveis.

É muito difícil o homem aceitar uma mulher na polícia, que trabalha de noite, faz diligência na favela, que demonstre mais força do que ele

 

E dá para namorar? Os homens não se intimidam com sua profissão?
Olha, sou divorciada, mas ele era delegado. E quando entrei para a polícia ele era da minha turma da Academia. Então eu nunca tive a experiência de namorar alguém fora da polícia, nem sei como seria! Acho que não daria muito certo. É muito difícil o homem aceitar uma mulher na polícia, que trabalha de noite, faz diligência na favela, que demonstre mais força do que ele. 

Como sua família e seus amigos de fora da polícia veem seu trabalho?
Como já venho de uma família da área jurídica é tranquilo. Mas lógico que eles têm medo, porque, né, São Paulo, violência, ninguém está livre disso. Às vezes eles preferem nem saber dos meus casos, dos assuntos, preferem ficar meio alheios para ficarem tranquilos. Mas sentem muito orgulho. Já minhas amigas adoram, acham o máximo! Imagina pensar que estamos saindo e eu tenho uma arma na minha bolsa. É muito diferente para elas, normalmente as pessoas nunca têm esse contato, a não ser que sejam assaltadas. A televisão influencia muito, acho que elas vão mais para esse lado, elas falam: “Ai, parece filme!”.

Até pode ser porque você influenciou uma personagem da televisão, a corregedora Paula, da série  9mm: São Paulo. Como isso aconteceu?
Pois é! Uma irmã minha mora em Los Angeles e conheceu o roteirista da primeira temporada da série, o Marc Bechar, por lá. Ele comentou que vinha para o Brasil para uma série policial e minha irmã falou: "Ai, que legal, minha irmã é delegada em São Paulo!". Ele ficou interessadíssimo em me conhecer. Eles têm um trabalho muito sério, querem cada vez mais mostrar nossa realidade, então estão sendo muito responsáveis. A ficção existe, mas eles estão muito próximos. Então ele veio, me procurou, a gente conversou bastante, dei vários toques, e aí surgiu a ideia de pôr uma corregedora na série. Eu achei ótimo.

Como foi quando você conheceu a Ana Petta, que interpreta a personagem inspirada em você? O que você acha dela quando assiste à série?
Olha, quando a vi pessoalmente tive a mesma impressão de quem me vê: "Nossa, delegada? Parece tudo, menos isso". Mas quando a pessoa vê a gente trabalhar, mostramos ao que viemos. Acho que a Ana foi perfeita, ela diz que se espelha em mim, mas eu me espelho muito nela quando a vejo na série. Ela adotou uma postura muito interessante, ela é séria, nunca deixa de ser, mas não se descuida, não deixa de ser feminina.

Como é sua relação com o medo pelo seu trabalho? Você sente medo?
No começo a gente tem medo de tudo. Depois, você vai vendo que não é bem assim. Existe o risco, lógico, mas não é nada que você não possa enfrentar. Passada essa primeira fase, é difícil alguma coisa te dar medo. Mas eu nunca estive em uma troca de tiros, imagino que dê medo. Uma vez tive que pegar duas pessoas num lugar muito feio, escuro, favela mesmo. Chegamos, notamos os olheiros, era de noite, com pouca iluminação. Naquela hora me deu um frio na barriga. Mas existe um respeito mesmo da parte deles. Não que a gente deixe de ser polícia, mas tem uma certa vantagem. E depois que minha filha nasceu comecei a ficar mais medrosa. Antes não tinha problema, mas agora, se eu morrer, alguma coisa acontecer, sabe? Agora eu tenho que ser invencível.

Você fala da morte com naturalidade. Como é sua relação com a morte?
Você se acostuma. Quando criança, era um tema que me incomodava muito, a morte de meu avô me marcou muito, era uma pessoa que eu amava demais. Ver a morte de perto era realmente traumatizante, tinha medo do morto voltar, fantasmas, espíritos. Depois que você entra na polícia e começa a ver várias vítimas mortas das formas mais terríveis, acaba endurecendo bastante. Vai ficando normal para você. Logicamente que a morte de um ente querido te pega. Mas no trivial você, acho que igual a médico, acaba achando a morte natural.

A revista Tpm deste mês tem como tema a mentira. Descobrimos pesquisas que falam que não só as mulheres tendem a mentir mais, como melhor que os homens.
Com certeza tudo que a mulher faz ela faz melhor que os homens! [Risos.]

"Acho que temos mais facilidade para investigar a mentira, saber que tem alguma coisa errada ali"

 

E você lida com a mentira no seu trabalho, tentando combatê-la. Como é essa relação com a mentira?
Eu não sei, acho que nós temos uma vantagem em relação aos homens, temos um sentido, né? Aquele negócio, é mentira que uma mulher não esteja sendo traída, ela sabe, talvez só não convenha pensar nisso no momento. Da mesma forma para saber que uma pessoa está mentindo, é muito fácil, não é nada cientifico, não é nada que se aprenda, é da mulher mesmo, a percepção, aquela vozinha lá dentro que está te falando. Acho que temos mais facilidade para investigar a mentira, saber que tem alguma coisa errada ali. O homem é muito objetivo. Pelo fato de a mulher ser mais emocional, acho que leva vantagem nessa hora.

Você acha que se tornou expert em relação a mentira?
Ah, eu fiquei bem mais sim! Você desenvolve cada vez mais essa arte de interrogar, fazer o cara entrar em contradição sem qualquer esforço, agressão física ou tortura psicológica, só por fazer o cara se enrolar!

 

Verdade encenada

Quando Ana Petta foi convidada para ser a personagem Paula, na série policial, sabia o que se costuma saber da corregedoria – que é um órgão interno e fiscaliza a própria polícia. Mas conheceu um universo maior e mais interessante. “Ver as mulheres na corregedoria, para mim, foi uma novidade. A própria Patrícia é supernova, bonita!”, falou ao site, por telefone.

A Patrícia me disse que quando te viu teve a impressão que as pessoas geralmente têm dela: "Nossa, nem parece delegada!".
Exatamente. Quando encontrei ela pensei que minha personagem corresponde à realidade, de alguma forma. Se você olhar a Patrícia na rua nunca vai pensar que é uma delegada, que vai a campo, realiza prisões. Aí a gente acabou ficando amiga, temos idades próximas, filhinhas pequenas, rolou uma identificação. Ela vê as cenas e me liga, a opinião dela é muito importante.

Como você viu a questão de ser uma das poucas mulheres trabalhando dentro da polícia?
Tem que ter uma coragem danada, né? A sociedade é machista, então o ambiente da polícia, que lida com essa coisa da força física, também deve ser muito, acredito eu. Uma mulher conseguir superar isso e se impor, ser respeitada pelos outros policiais, tem um valor muito grande. Como atriz, foi muito interessante ver a postura que essas mulheres têm, sempre de altivez, determinação, impondo respeito pela atitude. Também, o lado feminino que elas não perdem, que fogem do estereótipo.  E, principalmente, a coragem.

Qual foi sua maior dificuldade quando aceitou o papel da Paula?
Principalmente entender qual é a autoridade da corregedora diante dos investigadores e dos policiais. Na primeira temporada, em uma cena tive que interrogar um policial mais velho que a Paula investiga faz tempo, e ali eu senti um pouco a questão de uma corregedora jovem, mulher, diante de um policial mais velho, mais experiente e esperto, e como ela consegue se impor. Mesmo no seriado, quando os homens interrogam, eles gritam, xingam, tem toda aquela intimidação. Uma mulher, se for por esse caminho, já sai perdendo, porque é fisicamente mais fraca que um homem. Aprendi com a Patrícia a ir por um caminho mais psicológico, mostrar que é melhor que a pessoa fale. E o olhar, nunca tirar o olho da pessoa. Olhando o olho no olho é mais difícil mentir.

Você passou a acreditar mais na polícia?
Eu passei, sabia? Claro, a gente sabe que tem muitos problemas, mas ao mesmo tempo você vê que tem pessoas que dão um pouco da vida para tentar fazer com que a coisa seja justa, séria, um trabalho honesto. O mais legal foi entender a motivação da Patrícia, das outras mulheres, de  fazer com que a polícia seja realmente uma instituição séria. Imagina uma pessoa ir todo dia trabalhar, correndo risco, tendo que lidar com violência, armas, morte. tem que ter uma motivação muito forte.

Uma coisa muita marcante da Patrícia é sobre a questão da morte, que ela vê de uma forma diferente do comum, sem medo. Você acha que conseguiu absorver um pouco disso na personagem?
Foi um desafio. Quando conversei com ela na corregedoria, ela me mostrou as coisas que utiliza,  pegou um colete à prova de balas e falou meio brincando: “Agora estou usando porque eu tenho uma filha pequena para cuidar”. Imagina eu pensar na hipótese de que posso ser baleada? Para ela, é igual pensar que vai chover, então vamos sair de guarda-chuva. O médico constrói uma relação com a morte do outro, mas os policiais têm que ter distanciamento com a possibilidade da própria morte, porque se ele sentir medo da morte não consegue fazer nada.

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