Musa do cinema nacional, Darlene Glória volta às telas no longa Feliz Natal
Musa do cinema nacional nas décadas de 60 e 70, Darlene Glória volta às telas no longa Feliz Natal. A atriz, que se afastou da carreira por causa de depressão e drogas, há 30 anos encontrou Jesus e hoje está em paz
Do passado, a atriz Darlene Glória não gosta de falar. Prefere focar no presente e no futuro, especialmente no resgate de sua carreira e na repercussão de Feliz Natal, longa de Selton Mello de que a atriz participa. Mas falar de Darlene Glória sem recorrer ao seu passado é tarefa difícil. Musa de diretores como Glauber Rocha, Luis Sérgio Person e Arnaldo Jabor, a atriz brilhou em filmes relevantes das décadas de 60 e 70, como Toda Nudez Será Castigada, dirigido por Jabor e pelo qual ganhou o prêmio de Melhor Atriz no Festival de Berlim, e Terra em Transe, de Glauber Rocha.
A atriz, nascida em 1943, em São José do Calçado, no Espírito Santo, começou aos 14 anos, na Rádio Cachoeiro do Itapemirim, ao lado de Roberto Carlos. Da cidadezinha do interior se mandou para o Rio de Janeiro, na década de 60, onde fez de tudo um pouco: se apresentou em programa de calouros, foi vedete de teatro de revista, até estrear no cinema, em 1964, em Um Ramo para Luíza.
Em 1974, logo após a estréia de Toda Nudez, Darlene vivia o auge. Era a atriz mais requisitada, a mulher mais desejada – ela e Leila Diniz dominavam as areias de Copacabana e Ipanema –, e foi aí que ela parou. Sua depressão e seu envolvimento com drogas chegaram ao limite. “Era uma fome que eu tinha dentro de mim, é um vazio dentro do homem que só Deus pode preencher. Parei a minha carreira por alguns anos para reciclar minha vida, para deixar Deus lapidar aquela criatura que precisava saber o caminho direito”, conta ela, hoje evangélica.
Em uma conversa franca com o site da Tpm, Darlene fala sobre fama, drogas, Feliz Natal, maternidade e Deus.
Entrevistei o Selton esses dias e ele disse, entre outras coisas, que você em cena é puro delírio, que está em cena mesmo quando não aparece. O que significa para você, e para sua carreira, o filme Feliz Natal?
Significa muita coisa. Primeiro, pude trabalhar com o Selton, que eu admiro como ator e que foi uma surpresa como diretor. Ele é tão maduro, tem muito conhecimento de cinema e maturidade como diretor. Foi uma surpresa o convite dele. Eu participei do Tarja Preta [programa que Selton apresenta no Canal Brasil] e, quando ele me convidou, um mês depois, aceitei de pronto. Não tinha nem papel para mim, ele falou que ia criar, e achei isso interessantíssimo. Ele declarou que era meu fã, com muita consideração por mim. O que me gratificou muito. Fiquei honrada com esse presente, que é a personagem Mércia. Desde Nudez [Toda Nudez Será Castigada] eu não tinha uma personagem tão maravilhosa. Eu vejo como o resgate de um tempo que estive parada por opção, depois de algumas voltas tímidas, a convites que eu atendi. O Selton me deu um ânimo novo, saudade. Tenho saudade desse tipo de cinema, de papel, de personagem. Creio que é um cinema puro, verdadeiro, não é um cinema comercial, não é um cinema para agradar, mas um cinema que se faz com a mente e com o coração.
Um cinema de reflexão?
É sobre a vida, uma reflexão. Nos dias atuais, isso surpreende, porque o cinema é uma indústria, e quando alguém, fazendo o primeiro filme, insurge contra todas as opiniões e contra qualquer tipo de comércio e faz o que está no coração, com maturidade, surpreende muito. Nós temos ganhado muitos prêmios, o que vejo como o coroamento de um trabalho. Realmente eu nem esperava toda essa repercussão, esse resultado. Mas, quando você faz algo de que gosta, que se diverte, que se sente bem, não tem expectativa. Eu não tive nenhuma expectativa de ser um sucesso. Pensei “o que tiver que ser, será”, muito fatalisticamente, mas lá no fundo tinha aquele gelo, aquele frio, aquele medo. A mesma sensação de quando fiz Toda Nudez, que levou um ano para ser lançado e eu falava para alguns amigos que tinha feito um filme que podia me dar tudo aquilo que eu tinha esperado. Com a Mércia me atirei do pára-quedas sem saber se estava em condição de abrir, e graças a Deus está sendo muito bonito.
Você acredita que com esse filme pode atingir o público jovem?
Certamente. Porque fica aquele questionamento: “Quem é ela?”. Mas, é incrível, em todos os festivais que nós temos ido, os estudantes de cinema mostram uma admiração enorme por mim. Fiquei boba de ver os meninos todos me abraçando, declarando amor pra mim. É muito interessante, que eu faço parte do currículo dos estudantes de cinema! [Risos.]
Foto Paula Huven
Voltando um pouco no tempo, me diz como era sua família. Seus pais eram liberais, apoiavam sua escolha de ser artista?
Minha mãe me acompanhava em tudo. Eles eram evangélicos, presbiterianos, e minha mãe não tinha nenhuma restrição. Ela que me levou ao Rio, quando tinha só 16 anos.
Aos 15 anos você foi eleita miss Cachoeiro de Itapemirim e teve uma história trágica na época... [Darlene foi violentada aos 15 anos, história que conta em seu livro, Uma Nova Glória, da Editora Vida]
[Interrompe] Eu prefiro falar de outras coisas, isso aí eu já publiquei no meu livro e já cansei de contar. Quero falar só do filme agora, do futuro, das coisas que estou fazendo, como a minha pintura, que eu faço desde 1968, entendeu? Eu não quero falar de passado.
Vamos falar de outras coisas, então. A década de 70 é o marco do feminismo no Brasil. As mulheres podiam enfim, fazer o que tinham vontade, sair para trabalhar, se divorciar... Como você experimentou essa liberdade?
Ah, eu estava no meio do movimento, né? A gente sofreu tudo, todo o choque da geração de antes e de depois. A gente acreditava em paz e amor, só que, como dizia John Lennon, “o sonho acabou”. Aquilo foi uma mentira, não aconteceu nada. O que que nós passamos para essa geração, as drogas? Acho que foi uma revolução mundial, alguns padrões tinham que cair mesmo, não de moral, mas do homem escravizando o homem, das mulheres sendo objetos de desejo, e eu acho que algumas conquistas foram positivas, mas em relação à chamada liberdade, à felicidade, não aconteceu nada.
Pode ter sido um início para as pessoas acreditarem que era possível mudar o sistema...
É, mas o que que veio depois? Não teve nada, humanismo não existe mais, isso é uma balela. O que acontece é que cada um é um indivíduo, cada um faz sua opção do que ser. Eu vejo uma confusão muito grande hoje em dia no mundo, e vejo conquistas boas que tivemos, como a abolição do sutiã, a jornada de trabalho, mas também as mulheres ficaram sacrificadas porque quiseram cada vez mais competir com os homens, e aí hoje ninguém sabe mais quem é quem, o que que é, enfim.
Você e Leila Diniz eram o máximo na década de 60. Todos os homens as desejavam, todas as mulheres as invejavam. Como era a relação de vocês?
Éramos amigas, ela em Ipanema e eu em Copacaba, cada uma em sua área. Copacabana era o centro da noite cultural, e Ipanema era mais dos intelectuais, da turma do Pasquim. A gente tinha um relacionamento muito interessante.
Você tem filhos?
Tenho quatro filhos. Tive o Saulo com 17 anos, e ele mora nos Estados Unidos. Tem o Rodrigo, que nasceu do meu romance com o Mariel Mariscot [policial que fez parte do esquadrão da morte nas décadas de 60 e 70, e com quem teve um rápido envolvimento], e tenho um casal do meu casamento com o Marcos [Vinícius de Almeida Brandão, seu ex-marido]: a Rebeca, com 30 anos, que é aeromoça da Air France, e o João, que trabalha na TV Record. O Rodrigo é empresário, músico e produtor.
Foi uma mãezona?
Não, eu fui uma péssima mãe adolescente e minha mãe me ajudou a criar o meu filho. Depois, com o Rodrigo foi um outro problema, porque era época daquela loucura de 70 e eu trabalhava muito, então comprava o amor dele mais com presentes do que com a presença. Mas quando Jesus entrou na minha vida, em 1974, pude corrigir isso, me casei, Deus me deu um marido que era o sonho do minha vida. Mas eu já estava tão desgastada de confiar meus sentimentos e ter tantas decepções. E também, sendo uma atriz, uma mulher bonita, todo mundo quer tirar um picote, um pedacinho, desfilar. E trabalhando demais você às vezes não enxerga o que está conquistando, então, há muitos enganos, e isso aí me levou a uma depressão muito grande. Com relação ao vazio espiritual também, ao vazio interior, e às drogas também... Todo mundo usava drogas, então tudo isso me deixou com um buraco na alma. Mas esse vazio Jesus preencheu. Ele mudou a minha vida, hoje tenho esperança, vivo por ela, que é da eternidade com Deus.
Você acha que isso que aconteceu com você tem a ver com o fato de ter vindo de uma cidade pequena, com outros valores, para o Rio de janeiro, ainda menina, e ter que lidar com sucesso, drogas...
Não, minha caminhada era muito ajuizadinha. Bebia socialmente, mas não... Todos os meus colegas tomavam ácido, e eu também fui experimentar e saber como. E aí... Eu nunca fui para drogas pesadas, as drogas eram uma vírgula na vida da gente, uma experiência que o mundo inteiro estava passando. Eu embarquei naquilo, como a minha geração embarcou, como a maioria dos jovens dessa geração de Woodstock. Mas não foi nada disso, era uma fome que eu tinha dentro de mim, é um vazio dentro do homem que só Deus pode preencher. E esse era meu vazio, não adiantava ter fama. Nunca tive ninguém me ajudando, eu venci pelo talento, pela persistência. Hoje uma menina é lançada da noite para o dia. No meu tempo não, a gente tinha que ralar muito. Só consegui porque eu sabia da minha chamada, tinha consciência de que eu era uma atriz. E tenho como nunca deixei de ter, mesmo quando parei a minha carreira por alguns anos para reciclar minha vida, saber para ver quem eu era e também deixar Deus lapidar aquela criatura que precisava saber o caminho direito, entendeu?
Muitos da sua geração não tiveram a mesma sorte que você. Se perderam nas drogas, morreram...
Eu sou um excedente da minha geração. Muitos morreram, outros estão aí arrasados e tudo e eu sei que eu sou um excedente. Encontrei o Domingos de Oliveira e ele falou assim: “Nós somos sobreviventes”. Eu não sou sobrevivente, sou excedente. Era para eu estar morta há muitos anos. Quando eu cheguei lá em cima, no auge, que eu tinha tudo, que podia desenvolver, ganhar dinheiro com a minha carreira e tudo, eu já não tinha força, estava morta, desgastada. Foi na época de Toda Nudez, minha irmã morrendo, a Leila morrendo, os referenciais de vida morrendo e eu sozinha, entendeu? Filho sem pai, carente de amor e de vida, aí Deus me deu uma chance, um novo começo.
Como é sua vida hoje?
Moro em Teresópolis, em uma casa maravilhosa, no meio dos macaquinhos, dos bichinhos, dos esquilinhos... [risos].
Vive com quem?
Com uns amigos e com os filhos que vêm me ver. Às vezes é full house, às vezes é vazia, mas eu gosto também de ficar só, não tenho medo ou problema de solidão. Tenho o meu piano, minha pintura, amigos.
Não se casou mais?
Não, o Marcos se foi vai fazer 20 anos, no ano que vem.
Era jovem quando acabou...
É. Mas eu fui morar nos Estados Unidos quando acabou, eu tinha 47 anos, e fiquei sete anos lá. Eu tinha o complexo de velhice, e lá chamavam as meninas de 70 anos de “girl”, então conheci qualidade de vida, respeito humano. Trabalhei lá, fazia rumo-missionária, preleções dentro das igrejas, nos colégios, com o pessoal brasileiro, hispano-americano, e também fazia faxina. Aprendi a limpar casa, foi bom pra mim, eu precisava ter a mente renovada num espaço maior, largar as minhas tendas. E gostava e ganhava bem à beça...
Por que você não procurou fazer cinema lá, se na época de Toda Nudez a Universal tinha te chamado?
Porque eu não queria fazer cinema lá, estava com muita dor-de-cotovelo, queria sumir, não queria mais começar um desafio de carreira como no passado, não, eu queria outra coisa. Tava correndo atrás de mim mesma.
Mudando de assunto, já fez plásticas?
Não, eu só fiz erros em plásticas. Esses dias eu vou corrigir alguns errinhos. Eu fiz uma plástica e dez para consertar, entendeu? Eu sou exagerada, mas umas cinco foi! Então, agora eu não quero cara esticada, boca projetada, quero meu rosto de volta, naturalidade, minhas marcas. É ridículo o que a gente vê hoje em dia, as pessoas fugindo da idade. Não tenho nenhum problema em ter 66 anos, só quero poder fotografar bem, sem distorção de um queixo que não é meu, isso que eu vou corrigir já já.
A atriz Helena Ignez deu uma entrevista à revista Tpm na qual disse que as mulheres dessa geração foram cobaias dos cirurgiões plásticos, e que ela chegou inclusive a pensar em processar...
Não adianta, querida, fomos cobaias. Hoje eles não cortam, já enfiam uma agulha ali e pronto. As agulhas que enfiaram em nós nos mutilaram. Em nós que eles aprenderam, eu sei que isso me impediu também de procurar o trabalho, isso daí me deixou arredia, realmente me desmotivou. Eu fiz plástica com 42 anos, e não tinha que fazer, estava perfeita.
E o que acha da obsessão de hoje? Tem meninas de 20 anos colocando Botox...
É horrível, elas vão se arrepender. Se é para melhor, que façam, porque é modismo e todo modismo passa. Quero ver na hora que a boca diminuir o tamanho, querida. Ah, ai vai ser difícil, né? Mas hoje tá muito na aparência, só aparência, só querem isso. Obsessão é a palavra certa.
Falando um pouco de cinema, você viveu o cinema novo e agora faz parte dessa nova geração. O que acha da produção atual?
Aquilo era um laboratório, né? Fervilhava de idéias. Uma câmera na mão e uma idéia na cabeça. O Glauber gritou mais alto e fez escola para todo mundo, e depois vieram os pseudo-intelectuais, os que eram de faculdade, veio a miscelânea toda, mas ficou gente boa. Teve uma safra boa que hoje é referencial para os novos que estão vindo aí. O Brasil está passando a ter história, a contar nossa história. Cinema na região do sul é fortíssimo, de Santa Catarina, Paraná, Mato Grosso, Vitória... Eu estou encantada de ver o que tá acontecendo. O Selton e o Matheus Nachtergaele são meninos que estão absorvendo mundialmente muito melhor, e para nós isso é muito lindo.
Qual foi sua época mais feliz como atriz?
Acho que o melhor da minha vida ainda está para acontecer. Você só sabe que foi feliz depois que a felicidade passou. Então eu tenho sempre expectativa de coisas boas, nunca espero o pior, e se o pior vier eu sei que eu vou saber lidar com ele, porque já vivi todas as situações ruins, já tive muitos abismos. Fiz muitas escolhas erradas. Se eu tivesse ido com o Luís Sérgio Person acho que ia ser uma felicidade total para os dois, mas eu não fui. Se tivesse ficado com ele, seria uma chance de felicidade, mas não aconteceu...
Romanticamente?
Romanticamente e de todas as maneiras. Ele era meu Antonioni e eu sua Monica Vitti. Mas não foi e eu não sou fatalista, não acredito em destino, acredito que Deus tem escrito nossa vida. Com o Mariel Mariscot deu certo, foi um desencontro que aconteceu, e se tivéssemos ficado juntos poderia ter nascido uma tragédia, e não uma bênção, como o Rodrigo. Mas acho que a felicidade é estar em paz com Deus, com o próximo e com você mesma. E paz eu tenho em abundância.