Exército da salvação

por Natacha Cortêz
Tpm #157

Enquanto parte da população mundial consome 1,6 planeta por ano, 800 milhões de
pessoas sofrem com a pobreza extrema. Como salvar a humanidade dela mesma?

A Terra acaba de entrar no cheque especial. Esse é o aviso do Global Footprint Network (GFN), think tank independente com bases nos EUA, na Bélgica e na Suíça que trabalha para promover a sustentabilidade. Em oito meses, no dia 13 de agosto de 2015, ultrapassamos o limite de uso dos recursos naturais renováveis para um ano inteiro. O dia da sobrecarga do planeta chega cada vez mais cedo: em 2000, foi no início de outubro.

Atualmente, a população mundial consome o equivalente a 1,6 planeta por ano. Secas, erosão do solo, perda de biodiversidade e acúmulo de dióxido de carbono na atmosfera são apenas algumas das consequências desse consumo. É preciso um plano para salvar o mundo. Que tenha não só metas concretas, mas novas utopias. “As utopias são para a comunidade o que os sonhos são para os indivíduos”, afirma Adauto Novaes, filósofo e curador do evento Mutações, citando o filósofo francês Francis Wolff.

O Mutações é um ciclo de debates e palestras tradicional entre intelectuais do mundo todo. O evento já levantou temas como violência, silêncio e preguiça e discutiu na sua 30ª edição, no mês passado, em São Paulo, as utopias da humanidade. Não é por acaso. Isso se faz cada vez mais urgente.
Quando se fala em utopia abarca-se tudo: as primeiras, as superadas, as anunciadas pela ficção científica (como a trans-humanista, um futuro em que homem e máquina se fundem), as políticas (como o comunismo de Karl Marx) e a falta da produção intelectual em torno de problemas e soluções contemporâneas, que aponte para as utopias de nossos tempos.

O primeiro registro da palavra é de 1516, do livro Utopia, do inglês Thomas Morus. Em sua etimologia, ela quer dizer “não lugar”, mas também pode ser traduzida por eutopia – lugar da felicidade. Ou, como escreveu Marx, a “expressão imaginativa de um mundo novo”. Embora as utopias geralmente projetem o futuro, seu objeto de estudo é o presente. Ao propô-las, refletimos o amanhã e questionamos nosso caminho até então. “Recorremos às utopias quando a realidade torna-se insuportável”, diz Adauto.
Pois, bem-vindos ao insuportável.

Qual é o destino da humanidade? Quanto tempo resta ao homem na Terra? É sensato o modo como vivemos? As respostas, em primeiro lugar, trazem retratos do hoje e, ainda, previsões desesperadoras para o amanhã. Guerras, desigualdades, fome, pobreza, intolerâncias, o fim dos recursos naturais, mudanças climáticas bruscas e suas consequências. A realidade mais parece uma distopia – um pesadelo em forma de utopia. “Precisamos acordar no sonho e não do sonho”, complementa Adauto.

Um acordo global para acabar com o uso de combustíveis fósseis deve ser assinado na Conferência do Clima das Nações Unidas em Paris (a COP 21), em dezembro. Em relação às temperaturas anteriores à Revolução Industrial, o objetivo é limitar seu aumento a no maximo 2 graus celsius.

A COP 21 é só uma das ações da ONU para este ano. A organização também propõe um projeto ambicioso para tornar o planeta um lugar melhor (e possível) para todos nós: a primeira agenda universal para o desenvolvimento sustentável. Nela, estão 17 objetivos, subdivididos em 169 metas, chamados Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS).

“Recorremos às utopias quando a realidade torna-se insuportável. Precisamos acordar no sonho e não do sonho”

Paz e inclusão
A proposta nasceu em 2012, no Rio de janeiro, na Conferência das Nações Unidas sobre Desenvolvimento Sustentável, mais conhecida como Rio+20. Os ODS têm foco na erradicação da pobreza; na melhora da saúde e da educação; na igualdade de gêneros; na promoção da sustentabilidade econômica (crescimento inclusivo, empregos e infraestrutura) e na sustentabilidade ambiental (mudança do clima, oceanos e ecossistemas e consumo e produção sustentável). Tudo isso a ser construído em sociedades pacíficas e inclusivas. O objetivo 17 – Parcerias pelas metas –, se refere aos meios de implementação e financiamento de todos os outros. “As fontes são múltiplas: governos de todos os níveis – locais e internacionais –, o setor privado, a sociedade civil e a academia”, diz Haroldo Machado Filho, assessor sênior do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) no Brasil.

Haroldo explica que os ODS estão baseados em três pilares fundamentais: o social, o ambiental e o econômico. “Desenvolvimento sustentável é a ideia de transformar as vidas das gerações presentes e futuras sem causar danos ao planeta”, diz. “Significa investir na economia global, mas principalmente garantir que esse crescimento econômico e individual ocorra de forma sustentável.” Para Haroldo, enfrentar a mudança do clima e promover o desenvolvimento sustentável são “dois lados da mesma moeda”. “O desenvolvimento sustentável não pode ser alcançado sem uma ação em relação à mudança climática e à forma como o homem consome”, afirma.

Os 17 ODS são o passo seguinte de um outro projeto: os 8 Objetivos de Desenvolvimento do Milênio (ODM), instituídos em 2000 pelas Nações Unidas, e que tiveram na erradicação da fome e da pobreza as suas maiores bandeiras. “Os ODM produziram o movimento antipobreza de maior sucesso da história”, é o que diz o relatório oficial de resultados. Segundo a ONU, o número de pessoas vivendo em extrema pobreza (menos de US$ 1,25 por dia) diminuiu em mais da metade, passando de 1,9 bilhão em 1990 para 836 milhões em 2015. Os ODM trouxeram também outros resultados: a taxa de crianças que morrem antes do quinto aniversário diminuiu em mais da metade, de 90 para 43 mortes por mil nascidos vivos. Os números relativos à mortalidade materna tiveram declínio de 45%. Mais de 6,2 milhões de mortes por malária foram evitadas. O número de pessoas que ganharam saneamento básico foi de 2,1 bilhões.

“O desenvolvimento sustentável não pode ser alcançado sem uma ação em relação à mudança climática e à forma como o homem consome”

A nova agenda de desenvolvimento sustentável será oficialmente adotada pelos 193 países-membros da ONU no fim de setembro, durante uma Assembleia Geral em Nova York. Assim como os Objetivos do Milênio, os novos Objetivos não têm obrigação jurídica. “Devem ser compromissos morais e aspiracionais, cabendo aos governos e à sociedade civil torná-los possíveis”, diz Haroldo.

“Com a ajuda do meus amigos do Porta dos Fundos, queremos fazer um enorme barulho sobre essas metas, quase como se fosse o fim de semana de lançamento de um grande filme”, resume o cineasta britânico Richard Curtis, que dirigiu longas como Simplesmente amor, foi roteirista de Um lugar chamado Notting Hill e lidera o Project Everyone – iniciativa para divulgar os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável. A ideia é espalhar, em 7 dias, as novas metas para as 7 bilhões de pessoas do planeta. “O que eu espero é que, do jeito que puderem, vocês brasileiros divulguem os ODS da maneira mais divertida que puderem”, pede Richard.

As ações têm data entre 26 de setembro e 3 de outubro e incluem um show no Central Park, em Nova York, que vai virar programa de TV, e a “maior aula do mundo”, ministrada em escolas de cem países. No Brasil, os sócios do canal Porta do Fundos, Antônio Tabet, Gregorio Duvivier, Fábio Porchat, João Vicente de Castro e Ian SBF, são a maior aposta para divulgação da agenda. Em quase três anos, o canal atingiu 1,8 bilhão de visualizações e conquistou mais de 10 milhões de assinantes. O grupo vai produzir três vídeos, que serão lançados no início de outubro, sobre os objetivos 5 – Igualdade de gênero –, 10 – Redução de desigualdades –, e 16 – Paz e justiça. “Escolhemos essas três metas porque nos pareceram as mais inspiradoras e também por estarem muito longe de serem alcançadas. Mas é exatamente isso que nos interessou”, conta Gregorio. “O Porta também começou de forma ambiciosa. Éramos todos contratados da televisão e resolvemos chutar o balde para começar nosso canal. Foi um risco louco, e todo o mundo dizia que íamos fracassar. Temos especial simpatia pelos objetivos longínquos e pelos projetos que parecem impossíveis.” Ainda afirma: “Tudo parece impossível quando nunca foi feito. Utopia, muitas vezes, é só um lugar onde ninguém chegou ainda”.

Apocalipse
O objetivo número 12 – Assegurar padrões de produção e consumo sustentáveis – talvez seja o maior desafio. Somente com sua realização é possível seguir com os outros sem que a Terra entre em um colapso. O modelo econômico vigente, no qual consumimos de maneira predatória, tende ao caos. E não são poucos os que apostam em uma barbárie generalizada para o futuro.

É de um tipo de apocalipse que o antropólogo Eduardo Viveiros de Castro e a filósofa Déborah Danowski falam no livro Há mundo por vir? – Ensaio sobre os medos e os fins (ed. Cultura e Barbárie). “As espécies estão se extinguindo, e a humanidade parece que continua andando para um abismo. O mundo vai, de fato, piorar para muita gente, para todo mundo”, afirmou o antropólogo em entrevista à jornalista Eliane Brum, na ocasião do lançamento da obra, ano passado. “Primeiro é preciso crescer para depois distribuir. Está crescendo, está dando renda para os pobres, mas esse dinheiro não está saindo do bolso dos ricos. Está saindo da natureza, da floresta destruída”, enfatizou.

Haroldo concorda: precisamos rever o modelo que abastece a vida no planeta. Mas diferente de Viveiros, é bastante otimista. “As indústrias têm um posicionamento muito progressista hoje. Sabem que precisam se modernizar e estão deixando de ser as vilãs e partindo para alternativas sustentáveis.” Ele diz também que é importante os governos aumentarem a resiliência das populações, com medidas de proteção e ajuda. “Podemos ser a última geração que verá a pobreza extrema no mundo se a agenda da ONU for cumprida.”

No entanto, é perceptível a falta de alguns tópicos no documento. Entre os 17 objetivos e as 169 metas propostas, nenhum toca em direitos LGBT. Fala-se em igualdade de gêneros, em diminuição das violências, injustiças de forma geral, e da redução das desigualdades, mas essa população não está representada em palavras nos textos. Isso se justifica pela limitação do órgão, que vive entre a ideologia e a diplomacia de suas funções. “Estamos falando de um documento que é global e precisa do consenso de todos os 193 países-membros”, responde Haroldo. “E essas questões são sensíveis para muitos países. Em alguns lugares da África, homossexualidade é crime.”

Plano de fuga
Para Pedro Duarte, doutor e mestre em filosofia pela PUC do Rio, há uma incompatibilidade entre as três ambições que pautam os novos objetivos das Nações Unidas: manter o desenvolvimento produtivista industrial, fazer que seja inclusivo e estimular que seja sustentável. “Essas não são metas possíveis juntas. O projeto ocidental moderno, de um produtivismo desenfreado, não me parece compatível com o desejo da ONU.” O objetivo 15 diz que é preciso “deter e reverter a degradação da Terra, e estancar a perda de biodiversidade”. Além do mais, ele diz, “a organização não pode determinar as mudanças. É preciso que os países as queiram”.

 “O planeta é finito, sobretudo para nós. É preciso sonhar mais e idealizar uma transformação profunda. Nossa salvação talvez dependa de idealizar o desconhecido”

O modelo econômico que praticamos é também um modo de entender quem somos. “Não dá pra mudá-lo sem mudarmos a nós mesmos”, afirma Pedro. “O que me parece ser completamente utópico, mas ideal, seria a transformação do nosso processo civilizatório.” Ele reconhece que, ao propor os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável, a ONU escancara as nossas doenças enquanto humanidade, e que esse já seria um primeiro passo para um plano de fuga. Contudo, lembra: “O planeta é finito, sobretudo para nós. É preciso sonhar mais e idealizar uma transformação profunda. Nossa salvação talvez dependa de idealizar o desconhecido, ou seja, desconstruir nosso modelo civilizatório”, afirma Pedro, num exercício genuíno de utopia.
 

Precisamos falar sobre igualdade

A ONU vem pedindo igualdade de gênero desde 2000. O que tem sido feito pelas mulheres no Brasil para que batamos essa meta?

Por Ana Luisa Abdalla

Dos oito objetivos do milênio estabelecidos pela ONU em 2000, dois dizem respeito especificamente às mulheres: “Igualdade entre os sexos e valorização da mulher”, e “Melhorar a saúde das gestantes”. Para saber o que o Brasil tem feito para avançar nesses aspectos, recorremos à Secretaria de Políticas para as Mulheres (SPM), criada em 2003, na gestão do presidente Lula.

“Entre 1990 a 2012, a razão de morte materna reduziu de 141 para 63,9 óbitos por 100 mil mulheres, uma queda de 57%”, diz Rurany Silva, coordenadora geral de saúde da Secretaria de Articulação Institucional e Ações Temáticas da SPM. Apesar da queda significativa, o país não conseguiu atingir a meta estabelecida pela ONU: 75% de redução. O que fez com que ficássemos com a quarta pior taxa, atrás da Guatemala, da África do Sul e do Iraque. Uma ação para tentar melhorar a situação, cita Rurany, é a Rede Cegonha, que garante a 2,3 milhões de mulheres “atendimento humanizado e de qualidade durante a gestação”.

Violência contra a mulher é um traço forte da sociedade brasileira. Para combatê-la, a Secretaria lançou o programa Mulher: viver sem violência, em que o objetivo é garantir o acesso ao atendimento integral e humanizado a mulheres em situação de risco. Apesar do novo modelo de atendimento, dados de 2013 do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) estimam que ocorreram, em média, 5.664 mortes de mulheres por feminicídio a cada ano.

Em relação aos indicadores que medem a Igualdade entre os sexos e valorização da mulher, um compete a participação no Parlamento. Segundo o Relatório dos Objetivos de Desenvolvimento do Milênio de 2013, a média global estaria acima de 20%. Na Câmara dos Deputados brasileira, a participação feminina não ultrapassa os 9%, e, no Senado Federal, representa 14,8%. Esse valor só sobe quando chega ao Poder Executivo, onde 43% dos cargos de confiança estão nas mãos delas. Nos últimos três anos, dez dos 39 ministros nomeados são mulheres, 25,6% do total. Vale lembrar que desde de 2006 o Brasil tem uma lei específica para punir crimes de violência doméstica, a Lei Maria da Penha. Nesses nove anos, o número de mulheres mortas dentro de casa se manteve estável, 5,43 para cada 100 mil mulheres, mas, o IPEA garante que a lei conteve o crescimento desse índice.

Em 2015, dos 17 objetivos propostos pela ONU, apenas Igualdade de gêneros foi pensado exclusivamente para nós. Linda Goulart, secretária executiva da Secretaria de Política para as Mulheres, afirma que “há um consenso entre os países da América Latina e do Caribe que a igualdade de gênero perpasse todos os objetivos. Isso porque todos têm a ver com os interesses da mulher e afetam seu cotidiano”. Linda acredita que a “igualdade de gênero estar pela segunda vez na lista dos objetivos alerta o quanto ainda precisa ser feito”. 

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