Documentário conta histórias de mulheres que abortaram ilegalmente. Entrevistamos a diretora
Idealizado pela roteirista carioca Renata Corrêa e dirigido por Fádhia Salomão, o documentário Clandestinas conta histórias de mulheres que abortaram ilegalmente no Brasil. Com depoimentos de quem já viveu a experiência e relatos de anônimas, interpretados por atrizes, o vídeo mostra como a criminalização do aborto penaliza todas as mulheres. O filme teve o apoio da Sempreviva Organização Feminista (SOF) e da International Women’s Health Coalition e foi lançado em 28 de setembro deste ano, data que representa a luta pela Descriminalização do Aborto na América Latina e Caribe.
Conversamos com Fádhia sobre o tema.
Da onde veio a ideia de gravar o documentário? Fui convidada pela Renata Corrêa para dirigir o filme. Ela participa de movimentos feministas e em uma conversa surgiu a ideia de lançar um vídeo no dia 28/09, dia da luta latino americana pela descriminalização e legalização do aborto. Rapidamente me mobilizei para contribuir com essa discussão. A Renata fez a curadoria dos textos, entrou em contato com as mulheres/atrizes, eu entrei em contato com a Karla Meneghetti, fotógrafa e amiga que logo topou participar e trouxe com ela a Taís Nardi, outra fotógrafa e amiga. Formamos uma equipe super reduzida, e filmamos todas as entrevistas em um dia e meio.
Desde quando você se interessa pelo tema aborto? Desde muito nova me considerava “cabeça feita”, tinha certo orgulho por ter opinião definida sobre assuntos polêmicos, e achava aborto um absurdo. Eu estava com 16 anos e tinha acabado de conhecer uma turma muito legal. Um dia cheguei na casa de uma das minhas melhores amigas e percebi algo estranho no ar. A irmã dela e outra amiga estavam agitadas e se preparavam para visitar uma terceira, que estava passando muito mal. Quando cheguei ali todas já sabiam do que se tratava, eu não me lembro da palavra “aborto” ter sido mencionada. Fiquei mobilizada também, me preocupei ao saber que nossa amiga estava com um sangramento horrível, muito fraca, muito deprimida. Eu queria ajudar de alguma maneira. Demorou até que eu entendesse o que realmente estava acontecendo, e fiquei alguns dias em choque.
Você era contra o aborto, mas com a aproximação as coisas começaram a mudar? Pois é. Essa amiga havia interrompido uma gestação com a ajuda do farmacêutico que eu conhecia há anos, o mesmo que furou minhas orelhas, o mesmo que várias vezes me ajudou indicando um remédinho pra cólica. Lembro que deixei de frequentar a farmácia motivada pela minha indignação, pois ele havia cometido um crime e eu achava que não poderia mais respeita-lo. Mas algo estava mudando em mim, já não dava para pensar no assunto da mesma maneira. Minha amiga sofria e eu sofria junto, talvez esse tenha sido o primeiro esboço de sororidade na minha vida. Muito tempo se passou e não é apenas esse tema que me interessa, há anos venho entrevistando mulheres para um documentário sobre parto em que um dos principais assuntos abordados é a autonomia da mulher na tomada de decisões sobre o próprio corpo e o tipo de parto desejado. Como mulher procuro plantar sementinhas diariamente contra o machismo nosso de cada dia. Como cineasta procuro estar aberta e sensível aos temas que a vida me traz.
Algo mudou em você depois de dirigir Clanestinas? Me senti privilegiada por ajudar a contar essa história, poder olhar no olho de cada uma daquelas mulheres e ouvir seus relatos. Talvez o que mais tenha mudado em mim seja a clareza que tenho hoje de que este é sim um problema de saúde pública, e que deve ser tratado como tal. Não dá para tratar um assunto desse porte pelo viés da religião ou do achismo, não é uma questão de opinião. Que cada mulher tenha a chance de fazer a sua escolha, livre de julgamentos, livre do ódio que permeia essa discussão, livre do machismo que diz que ela deveria escolher melhor seus parceiros, livre de dedos em riste que lhe dizem o que fazer. Quem é contra vai continuar sendo contra, e isso não vai impedir que mulheres abortem. Vejo pessoas furiosas na internet desejando as piores desgraças para as mulheres que abortam e me pergunto, cadê o senso de humanidade que eles supostamente defendem? É de uma incoerência assombrosa.
Você já abortou? Creio que para essa questão não há resposta aceitável. Se digo que sim, o foco deixa de ser o filme, ele perde seu valor e vira uma bandeira em causa própria. Se digo que não, perco o conhecimento de causa pra afirmar que aborto não é um momento fácil na vida de alguém. Fico com a certeza de que somos todas clandestinas.