Milly Lacombe manda uma carta ao seu pai, falecido há dez anos
Paulo prestou vestibular para engenharia. Politécnica, o doido. Passou na primeira fase, pontuação excepcional, como você deve imaginar. Não fez a segunda fase ainda. Aliás, quantos anos ele tinha quando você o viu pela última vez? Cinco? Seis? Não lembro mais, porque, por uma dessas trapaças do tempo, embora pareça que foi ontem que você morreu, já faz quase dez anos. Dez anos, acredita? Mesmo assim ele se lembra bem de você, que ele chama de vovô até hoje. “O vovô”, ele fala quando se refere a você. E pensar que você teve tão pouco tempo para brincar de vovô.
Naquela época o Paulo era um molequinho de cabelos quase brancos que ficava correndo pela casa, você orgulhoso observando o primeiro neto. Hoje o garotinho tem mais de 1,85 metro, os cabelos escureceram um pouco, mas o sorriso não mudou nada. E ele continua crescendo, não sei de verdade onde vai parar.
Lembra como ele fazia você descer até o térreo e ficar horas em frente à câmera do circuito interno para que ele o visse na tela da TV do quarto da mamãe? E você, aquele senhorzinho careca de calça social e suspensório, descia sem titubear e ficava ao lado do porteiro, este sempre meio incrédulo com a situação patética, acenando para a câmera, todo sorridente. As coisas que a gente não faz por amor.
O curioso é que eu ainda olho para ele e vejo aquele moleque pequenino de cabelos brancos chutando bola na parede do corredor. E aí o moleque pequenino me diz que está namorando e meu mundo fica de ponta-cabeça. Vai passar isso um dia, será?
Eu não posso continuar a ver um garotinho onde hoje existe um homem, com barba, ideias, opiniões e tudo mais.
Pai, ele senta na mesa e fala sobre política, aborto, religião e, para seu orgulho supremo, futebol. E depois levanta, dá um beijo e um abraço apertado e diz que vai a uma festa. Sozinho. É são-paulino, mas algum defeito esse garoto tinha que ter.
Tanto afeto
Você acredita que ele me manda mensagem de texto – uma função do telefone celular que você não chegou a conhecer, mas que apreciaria – dizendo que me ama? Assim, do nada, no meio do fim de semana. Eu fico esperando o dia que ele vai cansar de mim, da tia estranha que arruma briga pública com o ídolo supremo dele, que é casada com outra mulher, que não tem um tostão no bolso. Mas ele não cansa. E, pelo contrário, só faz me dar amor, e mais amor, e mais chamego, e mais cafuné. Você ia adorar ver o homem que aquele molequinho virou, pai.
Tão gentil, tão doce, tão companheiro.
E tem o Antonio, que é um adorável e apaixonante cabeça de vento. Tá com o quê?, 14 anos? Isso, 14. E namora há dois. E calça 45 e tem 1,85 de altura. É uma família de gigantes essa da Nininha. Pai, o moleque é delicioso. Não é tão sério e responsável como o irmão, pelo contrário, é um debochado, mas é feito da mesma gentileza, da mesma elegância, da mesma bondade. Você chega e ele te abraça forte, tira você do chão, aperta, beija e faz tudo outra vez mesmo que tenha te visto há 5 minutos.
Se tem um problema que esses dois garotos não têm é o de demonstrar amor das mais variadas formas, seja física ou verbalmente. Você não sabe como tratam a mamãe, que agora é oficialmente a Nonna. A Nonna original foi embora seis anos depois de você, e com a saída dela a mamãe ficou com o título e com a obrigação de fazer o molho do macarrão. E a Nonna atual é a mais popular da família. Todos os netos têm adoração por ela. Todos os nove. São nove, você sabia? Sério.
A Nininha teve mais duas meninas, quase dez anos depois do Paulo e do Antonio. Bruna e Mel. Elas têm hoje 5 e 3 anos. Lindas, como você deve imaginar. E a Adriana teve a Estela no ano em que você morreu. Pai, você teria adoração pela Estela. Esta é outra sem dificuldade para mostrar afeto. Abraça, beija, faz chamego, deita no colo. E bate papo, e toca piano, e quer saber das coisas da vida. Às vezes eu acho que estou conversando com alguém da minha idade, mas aí lembro que é a filha da Adriana, e tanta maturidade não me surpreende mais. Lembra como a Adriana sempre foi a mais racional, a mais séria, a mais inteligente? Então, Estela é uma versão aperfeiçoada da mãe.
Depois vieram Francisco e Marcelo, os dois da Adriana também. Dois mini-homens encantadores. Francisco vive num mundo que não é este aqui. Tipo alma evoluída, tipo última encarnação. E Marcelo é um piadista. Tem só 5 anos, mas tá na cara que puxou seu lado sarcástico e debochado.
Para fechar os nove, Kiko teve gêmeas. Duas meninas lindas, Carolina e Larissa. Carolina, uma risonha. Larissa puxou a mamãe antes de virar Nonna: bravíssima. Tem quase 9 meses e deve ter sorrido umas três vezes até agora, duas acidentalmente. Já manda na casa inteira, é evidente.
A gente vai levando
Comigo, tudo bem. Mamãe relaxou com minha homossexualidade finalmente. E meu colchão de afeto, papel que era tão seu, agora é feito desses nove carinhas; além, claro, da minha mulher, que eu queria que você tivesse conhecido. Nem sei como consegui conquistar uma mulher tão bonita, você precisava vê-la, mas o fato é que faz cinco anos que ela chegou e não saiu mais. Todo os dias quando acordo e a vejo dormindo a meu lado penso: “Como consegui colocar essa mulher na minha cama?”.
Mas tudo isso para dizer que consigo ver um pouco de você em cada um desses nove carinhas bacanas que se juntaram à família depois da sua partida, e que isso deixa a saudade menos doída. No mais, a luta diária de sempre, que, aqui e ali, fica bastante dura. A gente vai, como você gostava de dizer, pelejando. E tudo bem. Porque com tanto amor em volta dá pra levar numa boa.
A carioca Milly Lacombe, 43 anos, é jornalista. Seu e-mail: millylacombe@gmail.com