Capítulo 15: Tem flor no lodo

por Milly Lacombe

O anúncio do começo do fim vem com um grande evento? O que foi que desandou? Otávio e Marina olham para trás para encontrar respostas em mais um capítulo da história de Milly Lacombe

Perdeu os primeiros capítulos desta história? Leia aqui.

Quarentena, dia 23

– Onde será que a gente errou?

– A gente errou?

– Obviamente que a gente errou. Ou não estaríamos nos separando

– Estamos?

– Otávio, sério cara. É um plano para me enlouquecer esse gaslighting sem fim? Você não pode achar que dizer a alguém “eu não te amo mais” é uma coisa trivial

– Marina, eu vou te pedir uma coisa do fundo do meu coração. Eu disse assim, ó: "eu acho que não te amo mais". Achar faz uma diferença enorme. Se alguém me diz "meu senhor, o seu pinto terá que ser que ser amputado", e se alguém me diz: "meu senhor, eu acho que o seu pinto terá que ser amputado" eu me agarro nesse "eu acho" com todas as minhas forças

– Vamos tirar a porra do seu pinto dessa história, pode ser? E superar a questão linguística pra tentar entender o que trouxe a gente aqui

– Tá. E essa luz do outono tá convidando a gente a ter coragem, né? Olha esse pôr do sol, Marina

– O de ontem também foi absurdamente laranja. Tem flor no lodo, Otávio

– Tem sim. Tem vida na morte. Tem beleza na destruição. Mas a gente nem sempre consegue enxergar porque não é fácil mesmo enxergar um tantinho de luz na escuridão, ou os primeiros sinais de uma flor nascendo no lodo

– E a gente também não consegue enxergar os primeiros sinais de um relacionamento quando ele começa a desabar

– O que eu acho é que o anúncio do começo do fim não vem com um grande evento, como com um aborto ou uma traição, sabe? Acho que os sinais estão nos detalhes, entende? Um relacionamento não é feito dos momentos triunfais, mas do dia a dia

– Você enxerga algum detalhe no nosso?

– Eu lembro do primeiro dia que notei que você não tinha colocado um copo de água na minha mesinha de cabeceira à noite. Lembra que você sempre fez isso? Eu ia para o banho e quando saía tinha um copo de água pra mim ali. Eu achava que esse gesto continha muito amor e hoje entendo como me feriu não ver mais um copo ali, e também como eu optei por fingir que não estava vendo

– Eu não sei por que eu fiz isso, ou por que deixei de fazer isso. Eu sinto muito, Marina

– Não precisa ficar assim. É só um sintoma, um que eu já tinha até esquecido mas que recentemente voltou

– Eu lembro da sensação da primeira vez que você disse que iria trabalhar até tarde e que era para eu comer qualquer coisa e não te esperar. É uma bobagem, agora falando soa bem pequeno, mas me machucou porque a gente sempre sincronizou nossa fome porque achava importante sentar e comer junto à noite. E nesse dia você não pareceu se importar. E depois disso a gente passou a sentar junto para jantar mais e mais raramente, você voltava para casa cada vez mais tarde…

– Isso foi antes do aborto? Você lembra?

– Antes sim, sem dúvida foi antes

– É como se um cuidado tivesse deixado de existir. Como se a gente tivesse aberto mão desses gestos tão pequenos e ao mesmo tempo tão enormes e focado em outras coisas, coisas fora do relacionamento

– Eu preciso te perguntar uma coisa

– Fala

– Tem outra pessoa?

– Não

– Não tem mais por que mentir, Otávio. Eu não vou nem poder te colocar pra fora de casa

– Não tem, Marina

– Teve?

– …

– Teve?

– Teve

– Quem?

– Importa?

– Claro que importa! Quem?

– A Julia

– Qual Julia?

– A Julia produtora

– A Julia que produziu seu ultimo jingle?

– Essa

– Ah, Otávio, vai se fuder

– O que importa quem foi?

– Acabou meu cu! Agora sei por que você quer se separar

– Marina, eu nunca disse que queria me separar. E foi uma história de três saídas. Acabou faz mais de um ano

– Tá marcando os dias no calendário?

– Não, Marina. Acabou. Era sexo. Foi sexo

– Pra quem precisa ser tirado para dançar antes de transar essa é uma história super verossímil: só sexo. Vai a merda, Otávio

– Preciso ser tirado pra dançar pela pessoa que eu amo

– Acha que ama

– Ah, agora você usa o “acha”?

– Deixa de ser ridículo. Enfia o “acha” no seu cu largo. Cara, como você fez isso com a gente? A gente falava tanto sobre ser sincero…

– Eu não consegui ser sincero, Marina. Eu quase te falei uma noite, mas eu não consegui e acho que não consegui porque eu sabia que era só sexo

– Só sexo? Como só sexo? Sexo é coisa pra caralho! Não existe “só sexo”. E tanto faz, Otávio! Porque a gente prometeu se falar. Quantas vezes a gente prometeu contar, quantas vezes a gente criticou amigos que se traíam, que mentiam e omitiam?

– Eu sei. Eu sei. Eu me senti um bosta. Mas acabou e eu nunca mais pensei nisso

– Por que, Otávio? Por que, caralho!

– Eu não sei, Marina. Não sei porque deixei rolar. Não sei por que tive tanto medo de te contar. Não sei. Mas eu sei que a história me fez te rever. Eu olhei você de um outro jeito. Eu voltei a me apaixonar. A gente voltou a transar. Tudo melhorou até piorar outra vez. E se eu tivesse te contado talvez não tivesse melhorado

– Do que adiantou melhorar para depois piorar? Olha onde a gente tá agora. Presos dentro desse apartamento juntos e separados. Era melhor ter acabado antes, era melhor hoje a gente já estar livre dessa situação bizarra

– Eu não acho, Marina. A gente passou por coisas boas depois disso e agora a gente tá aqui falando sobre como podemos nos reencontrar

– A gente não tá falando sobre se reencontrar, Otávio. Tá falando sobre como a gente se perdeu. Não tem nada de reencontrar. Acabou. Agora eu sei que acabou

– Ah para, Marina. É a hora de achar a tal flor no lodo

– Ah puta que o pariu com essa flor. Não tem flor. É só lodo. Que porra de flor? Vai a merda com tua poesia que só serve pra levar mulher pra cama

– Mas faz cinco minutos que você mesma achava que tinha flor no lodo

– Mas não tem. Não tô vendo mais beleza nenhuma. Só miséria e dor

– Não é assim. A gente tá conversando, tá se abrindo

– Se abrindo o caralho, Otávio. O caralho. Que absurdo. Como eu pude um dia achar que a nossa história era diferente da história das minhas amigas? É a mesma bosta. Sempre é a mesma bosta

– A gente tava indo bem e agora desandou essa conversa

– A conversa é que desandou? O que desandou foi você não conseguir ser leal. Não tô nem falando de ser fiel. Tô falando de ser leal, de fechar comigo, a pessoa que você dizia amar, a pessoa a quem você prometeu sinceridade. Tô falando de ser honesto

– Tá. Eu não te tiro a razão. Eu fui um bosta

– O que faltava era você me tirar a razão! Foi mesmo um merda. Foi um merda. Você transou com ela aqui nesse apartamento?

– Claro que não! Tá doida?

– Tô o oposto de doida. Tô lúcida. Super. Tão lúcida que lembro perfeitamente que enquanto você fazia a porra do clipe eu tive que passar dez dias trabalhando em São Paulo

– Eu não trouxe ninguém aqui, Marina

– Então onde você comeu essa vaca?

– Vaca? Fim da campanha feminista?

– Ah, vai pra puta que o pariu você agora. Eu seria capaz te te esganar, Otávio. Esganar com as minhas mãos agora mesmo

– Mas a Julia tem tanta responsabilidade quanto eu. Ou menos porque ela tá numa relação aberta e eu disse pra ela que a nossa também era

– Isso é o que você é. Um cuzão babaca como qualquer outro esquerdomacho

– Eu fui isso sim. E eu me arrependo

– Vocês ainda se falam?

– A gente se fala

– Vai tomar no cu, Otávio!

– Eu tô te dando a verdade, tô sendo sincero. Não vou mais mentir porque acho que a verdade é o que você merece

– Idiota!

– Marina, coloca esse cinzeiro na mesa. Se você me atirar esse troço e acertar você vai me machucar

– Não tanto quanto você me machucou. Nem perto. Eu quero estourar sua cabeça

– Pensa que eu já tô praticamente sem a cabeça do pau. Não serve como consolo?

– Seu canalha!

– Marina! Puta merda, Marina! Olha o que você fez?

– Foda-se. Agora pega o aspirador e limpa. Limpa os cacos de um cinzeiro que ninguém nunca usou, que nunca serviu pra nada. Mais ou menos como esse seu pau aí. Uma bosta de uma ferramenta que você mal sabe pra que serve

– Ah tá. Agora vai reclamar de uma coisa que nunca reclamou

– Espero que você tenha chupado muito a buceta dela. Mas muito mesmo. Pra ela ter certeza de que você não sabe chupar porra nenhuma

– Marina, até outro dia eu era o melhor chupador de buceta do mundo

– Eu menti. Também sei mentir, tá vendo? Você chupa mal pra caralho

– Ah tá bom. Então você fingia que gozava três segundos depois que eu colocava a boca lá?

– Pra acabar logo

– Eu não acredito. Não acredito mesmo

– Pergunta para alguma ex então. Pergunta se você sabe chupar uma buceta

– Vou perguntar mesmo. Vou fazer isso amanhã sem falta. Ou hoje depois de limpar essa sujeira que você fez

– E eu vou dormir. Chega. Assim que acabar essa quarentena te quero longe daqui. No segundo seguinte. Seu merda

Esta história continua. Acompanhe os próximos capítulos na Tpm.

Créditos

Imagem principal: Manhã Ortiz

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