Um ritual do desamor sempre precisa de um extintor por perto. Acompanhe a história de Otávio e Marina, da nossa colunista Milly Lacombe
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Quarentena, dia 20
– Você vai trabalhar até muito tarde hoje?
– Não sei. Por quê?
– Porque vou fazer um jantar pra gente comer junto, se você topar
– Topo sim
– Tipo sete horas?
– Pode ser um pouco mais tarde? Assim acabo aqui e tomo um banho tranquilo
– Oito horas então?
– Fechado
– Não quer saber o que vou cozinhar?
– Acho que vou ficar com a surpresa
– Indo pra cozinha então. Não entra lá
– Você sabe onde fica o extintor?
– Não, mas tenho certeza que em caso de incêndio você chega nele antes de mim
Dez para as oito Otávio abre a porta da cozinha trazendo duas taças de vinho. Marina já tinha tirado o computador e a papelada de cima da mesa e estava saindo do quarto secando o cabelo com uma toalha. Otávio estende um braço com a taça, ela coloca a toalha no ombro:
– A um jantar tranquilo – ele diz, sugerindo um brinde
– A um jantar tranquilo
– Estamos calibrando nossos brindes ao tédio que o momento traz?
– Como assim?
– Brindando a coisas simples como à paz durante uma refeição e não à saúde ou coisas maiores?
– Talvez não seja uma coisa muito simples ter paz durante uma refeição
– Nunca ou só agora?
– Depende do que a gente chama de paz, eu acho
– Segura esse pensamento aí que eu vou trazer os pratos. Você coloca a toalha na mesa?
– Deixa eu passar e pegar a toalha então antes de você trazer os pratos
– Tá, mas não olha na panela
– Pode deixar. Tô apegada na surpresa
– Pega aqui os guardanapos, por favor
– Me dá. Toalha posta. Pode trazer
– Não espera muita coisa – Otávio coloca os pratos na mesa
– Arroz de brócolis?
– Eu chamo de risotto de vegetais à moda
– Que moda?
– Moda do Tavo quarentenado
– Pegou numa receita?
– Não. Descobri que minha cozinha é intuitiva
– Tô entre o medo e o desejo
– Não estamos todos?
– Talvez
– E?
– …
– E?
– Surpreendentemente bom. Tem cominho?
– Tem um mix de temperos que eu não saberia dizer quais são, mas posso apontar pra eles na cozinha
– Tá bem bom, Otávio. Obrigada
– Tem mais na panela, se quiser
– Estamos celebrando alguma coisa?
– É um pedido de desculpas
– Por não me amar mais?
– Sério, Marina. Não é uma piada, eu tô falando sério
– Ué. Eu também. Acho que todos aqueles que deixam de amar deveriam pedir desculpas de joelhos e com um jantar bem feito e um bom vinho. Tinha que ser ritualizado o desamor, eu acho. Um cerimonial de despedida. Talvez a gente se tornasse pessoas melhores se pensasse assim
– Ou talvez muitos casais não se separassem por preguiça
– Ah, meu amor. Acho que esse já é o motivo número um para casais não se separarem
– Tá, Marina. Ok. Eu tô aqui pedindo desculpas por nunca ter tentado entender o que o aborto significou pra você. Eu parti da ideia de que você queria o aborto então não tinha motivo para eu me preocupar com os efeitos dele
– Eu realmente quis o aborto
– Eu sei. Mas sei agora que eu não tinha o direito de achar que você estava indo ali rapidinho retirar uma mancha indesejada na pele
– Eu aceito a desculpa
– É que você parece sempre tão inabalável…
– Otávio, não fode o pedido de desculpas menos de dez segundos depois de fazer ele. Tá na cara que você não tá habituado a isso
– Tem razão. Desculpa
– Sete anos sem pedir desculpas e hoje abriu a represa do perdão? Um brinde a isso. O que mais tem aí?
– Enquanto fuço e sirvo mais vinho pra gente você pode também dar uma olhada na sua represa, que tal?
– Acho justo. Vamos lá. Eu peço desculpas por ter deixado você no posto de gasolina no meio da estrada
– Caralho! Você realmente fez isso. Eu tinha apagado da minha memória
– Eu não sei como posso ter esquecido que você tava comigo no carro. O que eu achei? Que eu estava indo para Petrópolis sozinha numa sexta à noite?
– Ah, Marina, pelo amor de Deus. Você saiu da nossa casa falando no telefone com a Joana um assunto que parecia ser muito sério e nunca mais desligou. A surpresa é que alguma hora você tenha lembrado que me esqueceu e tenha voltado pra me pegar
– Você estava sentado na porta da lojinha tomando um sorvete, nunca me esqueço da cena. Você achou que eu ia voltar?
– Eu torci por isso, mas o que eu ia fazer? Meu celular estava no carro e a gente tava no meio da serra. Só me restava esperar
– Que absurdo eu ter feito isso. Me perdoa, Otávio
– Eu já tinha te perdoado e você já tinha me pedido desculpas. Precisa ser desculpa nova, não vale reciclar desculpas
– Tá. Pera então
– Não pode ser assim tão difícil, Marina
– Peço desculpas por não ter conversado mais profundamente com você sobre os motivos de não querer filhos
– Aceito, mas eu ainda queria saber sobre esses motivos profundos
– Acho que eu já deixei a maior parte deles sair há dois dias
– Foi durante uma briga e acho que a gente devia tentar falar sobre isso sem brigar
– Mas não hoje porque minha cabeça tá fritando
– Trabalho?
– Trabalho
– O que tá pegando?
– O que não tá pegando, né? Tá tudo pegando. Cliente desistindo, cliente sem pagar, cliente dizendo que vai fechar as portas…
– Mas imagino que todo mundo no mundo esteja passando por isso
– Quase todos, sim. Mas não me adianta olhar em volta se a gente tem uma empresa com 18 funcionários que dependem desse emprego
– E agora?
– A gente não sabe. Tem aí uns sistemas de empréstimo rolando, a gente tem algum caixa, mas é difícil saber o que fazer quando a gente não faz a menor ideia de como será o mundo depois da quarentena
– Mas alguma vez a gente fez alguma ideia de como seria o mundo?
– Alguma a gente fazia. A gente sabia que num sexta-feira, por exemplo, o Ananda abriria as portas com 70% das mesas já reservadas. A gente sabia que num bom mês o restaurante teria um lucro de tantos porcento, e que num mês ruim ainda assim haveria lucro. Os sócios sabiam que retirariam algum dinheiro, os cozinheiros e garçons sabiam que teriam um emprego… E isso é só um dos clientes
– Mas no caso do Ananda, um restaurante tão premiado há tantos anos, os sócios têm grana para se manter, não?
– Para se manter, sem dúvida. Para manter o negócio fechado por um tempo também. Mas quem disse que eles querem? Eles estão conversando sobre isso, e a gente precisa esperar a decisão
– Precisa esperar? Vocês não podem propor nada?
– O que, Otávio? Propor o quê?
– Ah, eu sei lá, não entendo um caralho desse seu negócio. Mas eu tô achando que a gente tá sem imaginação. Todas as coisas parecem girar entre salvar vidas ou salvar a economia, como se essas fossem as duas alternativas únicas
– E não são?
– Não podem ser. Não podem, Marina. Olha onde a gente se meteu. Olha a situação. Então a economia é uma coisa fixa? Leis matemáticas universais? Caralho! Não é. Nunca foi. Economia é uma teoria. É uma filosofia. É um debate. É um modo de organizar relações de trabalho, relações que envolvem seres humanos e o planeta. São pessoas. Vidas. Não é sobre números. Não é sobre escolher vidas descartáveis e vidas essenciais, quem pode morrer e quem pode viver. Eu acho tudo uma maluquice. Eu começo a hiperventilar só de pensar
– Eu sei o que você pensa sobre isso, Otávio. Mas a Joana e eu não vamos reinventar o sistema
– Olha, às vezes bastam duas malucas corajosas para inspirar outros malucos corajosos e fazer nascer uma onda.
– E eu sou uma das malucas?
– Pera, não tô te chamando de maluca no sentido machista do termo. Não me leva pra esse lugar
– Eu não ia te levar para esse lugar, Otávio. E faz tempo eu ressignifiquei a maluca em mim. Sob muitos aspectos eu sou a maluca e me orgulho disso, então tá tudo certo. Mas voltando ao começo, minha cabeça tá fritando e hoje eu não vou mesmo conseguir falar mais sobre o aborto
– Quer mais?
– Não, brigada. Mas estava mesmo muito bom
– Sobremesa?
– Opa! Temos essa opção?
– Eu pensei em flambar umas bananas
– Otávio, pelo amor de Deus. Você se desapegou da vida?
– Se eu flambar e você ficar com o extintor na mão bem perto de mim ainda assim tem problema?
– Eu não sei dizer, Otávio. De novo: entre o pânico e o desejo
– Vamos tentar?
– Ai, caralho. Vamos. Vamos tentar.
Esta história continua. Acompanhe os próximos capítulos na Tpm.
Créditos
Imagem principal: Manhã Ortiz