Por que você não se protegeu? Por que eu? As mágoas do passado inundam a ressaca de Otávio e Marina no décimo sétimo dia de quarentena. Acompanhe a história contínua de Milly Lacombe
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Quarentena, dia 17
– Bom dia!
– Bom dia, Otávio. Tô achando que você fica aqui na cozinha em pé esperando eu entrar alguma hora
– Quem sabe? Dormiu bem?
– Estranhamente bem, mas acordei com dor de cabeça. E você?
– Bem também, e sem a dor de cabeça
– Café? – Otávio pergunta e começa a servir uma xícara antes mesmo da resposta
– Por favor. A gente bebeu muito ontem? – Marina pega a xícara de café da mão de Otávio
– Quase três garrafas de vinho
– Por isso minha cabeça tá assim
– Eu queria agradecer o jantar
– Por que isso agora? Você nunca agradeceu nenhum jantar antes, e eu fiz sete anos de jantares
– Sei lá. Deu vontade de agradecer
– Foi a recompensa pela limpeza, que ficou ótima, aliás
– Há quanto tempo a gente não era assim tão educado um com o outro?
– A gente foi alguma vez?
– Não lembro. É normal não lembrar dessas coisas?
– Otávio, não sei mais o que é normal
– Eu coloquei a mesa do café na sala hoje. Espremi sua papelada e seu computador num canto e coloquei a mesa no outro
– Que dia é hoje?
– Sexta? Sexta!
– Você já tomou café?
– Não. Estava te esperando
– Pega a garrafa térmica e vamos lá porque bateu uma fome aqui e isso tem sido raro
– Eu tô te achando mais magra
– É…
– Mas também tô te achando menos tensa
– Um pouco, acho
– Você lembra que a gente ficou conversando ontem até quase duas da manhã?
– Vagamente
– A gente ficou e, o mais surpreendente, a gente não brigou nem uma vez
– Jura? Do que falamos então? Do clima?
– Você me contou dos seus pais, de como eles estão lidando com isso. Falou da Joana, falou um pouco de trabalho, mas não muito, e eu falei da minha mãe e de como ela tem se comportado bem nessa quarentena
– Falamos do clima então
– Por muitas horas
– Acho que tá todo mundo cansado de brigar. Me passa o pão?
– Acho que sim. Quer o queijo?
– Não. Só a geleia, por favor
– Mas me fez bem sentar e conversar com você sem tensão envolvida. Fazia um tempo
– Há quantos dias estamos trancados aqui?
– Hoje é o décimo sétimo
– Uma hora a gente teria que parar de se estapear para tentar conviver até isso passar e a gente seguir com nossas vidas
– Você tem feito planos?
– Sim: eles envolvem sobreviver física e financeiramente. Você?
– Não. Nenhum. Acho que nunca me senti tão vazio de planos e ideias
– Nenhuma ideia de para onde você vai quando isso passar?
– Você fala sobre isso como quem fala sobre o clima mesmo. Curioso que não te machuque pensar que eu vou embora
– Como você sabe que não machuca?
– Tô vendo
– O que você tá vendo, Otávio?
– Uma mulher inabalável
– O que você gostaria de estar vendo? Uma mulher descabelada, aos prantos, implorando para que você voltasse a amar ela?
– Você lembra que eu nunca disse que não te amava mais, né?
– Ah sim, teve um “eu acho” antes de “não te amo mais”
– Teve, e ele faz diferença
– Sabe o que eu acho desse “eu acho”? Eu acho que você não teve coragem de me dizer a verdade. Porque se você tivesse dúvidas mesmo você jamais soltaria um “eu acho que não te amo mais”, você esperaria ter certeza porque é cruel jogar a dúvida na mesa assim
– Você me ama, Marina?
– Você é foda, Otávio
– Ué. Ama ou não?
– Não sei. De verdade eu não sei mais.
– Pois é. Eu tive coragem de falar. Precisa de coragem e de respeito para oferecer a verdade desse jeito. A alternativa seria eu fazer a investigação sem te falar nada. Que tipo de amor é esse que esconde sentimentos do outro, mesmo que sejam sentimentos de desamparo, de desamor, de desapego?
– Você vai dar uma volta nesse troço e sair como o fodão, é isso? Então vamos escarafunchar esse quarto aí que você abriu. Você não esconde sentimentos, é isso? Onde estava esse cara corajoso e emocionalmente tão responsável quando eu fiz o aborto?
– Você quis fazer o aborto! Vai agora pagar de vítima?
– Você realmente não tá nem no primeiro círculo da desconstrução do seu machismo. Pode dar cinco horas seguidas de bunda pra qualquer mulher que nada vai mudar isso. Você faz alguma ideia do que significa abortar? Mesmo para as mulheres que, como eu, têm o enorme privilégio de poder optar pelo aborto e fazer ele num lugar seguro? Você sabe o que a gente sente? O que passa pela nossa cabeça? A quantidade de dúvidas e de incertezas? Será que fiz o certo? Eu queria um filho ou quem quer um filho em mim é a sociedade? Eu sou culpada? Devo me punir? Era hora de deixar a carreira para lá e cuidar de uma criança? Era a sua carreira que ia sofrer com a decisão, Otávio? Eu fui sozinha fazer o aborto. Sozinha!
– Mas então por que abortou? Era nosso filho. Era meu filho também, caralho!
– Era nosso filho que ia crescer no meu corpo. No meu ventre. Nas minhas vísceras
– Então era mais seu do que meu?
– Não é uma propriedade. Não somos sócios, não tem contrato. Precisa de dois pra fazer, claro, mas é no corpo de um que cresce. E o corpo não é seu
– Cara, isso é de enlouquecer. Se você sabia que não queria um filho por que não se protegeu?
– Caralho! Puta que o pariu. Porque o corpo é meu! Porra, Otávio. Eu não quero ser uma bomba hormonal, não quero passar boa parte da vida submetendo meu corpo a regulagens químicas, baixar minha libido em nome do quê? Tomar um caralho de uma pílula que fode meu tesão para que eu possa transar sem engravidar, para que o cara possa gozar dentro? Qual a lógica disso? E me espanta você, que se diz tão de esquerda, defender a pílula. Você sabe como a pílula foi criada? Quantas mulheres pobres e quantas mulheres negras foram usadas como cobaias, submetidas a doses cavalares de hormônio até que o tal laboratório encontrasse uma fórmula mais ou menos correta? E pra quê? Para seguir regulando o corpo de uma mulher! Pra isso. Por que não investir em técnicas de aborto seguras, em abortos gratuitos, em uma política pública que dê à mulher o controle moral sobre seu corpo, sem culpa, sem crise, sem religião dando as cartas? Por que não investir em técnicas contraceptivas para os homens? Não são eles que cometem os piores tipos de aborto, abandonando as crianças, que nem mais feto são. Por que não educar os homens a respeito disso? Por que não punir o babaca que faz o filho e abandona? São histórias medonhas, histórias horrorosas as que envolvem as pesquisas para que uma porra de uma pílula fosse criada e a mulher pudesse abrir as pernas livremente. Liberdade sexual meu cu. Nunca foi sobre liberdade sexual. Nunca! Até hoje a gente não abre a perna livremente. Tem sempre uma opinião. Tem sempre uma regra, uma cartilha moral. Nem quando forçam nossas pernas para que elas abram a gente é dona da nossa verdade. Não somos sequer consideradas testemunhas críveis dos abusos que a gente sofre. Liberdade sexual envolve liberdade para abortar, liberdade de informação para contar para todo mundo que um feto não é uma criança, não é uma vida: é uma possibilidade de vida. Assim como teu esperma é uma possibilidade de vida e uma fundação é uma possibilidade de prédio. Ou destruir uma fundação é a mesma coisa que implodir o World Trade Center? Toda vez que você se masturba você tá assassinando crianças? E toda a vez que eu menstruo, idem? Ah, vão pra puta que o pariu. Tudo pelo lucro e, pior, fantasiado de feminismo, de libertação sexual. Quando é com mulheres, a maravilhosa indústria farmacêutica investe bilhões em aberrações hormonais como essas, sem se preocupar com nossa libido, foda-se a libido da mulher, pra que gozar, pra que ter tesão? Abre as pernas aí e cumpre seu destino, que é fazer um cara gozar dentro e povoar o mundo. Já com vocês, nossa, vamos investir aqui em um remédio que deixe o pau do babaca de 70 anos duro mesmo acoplado àquele saco enrugado e murcho que tá batendo no joelho. Ah, vão a merda vocês e seus paus. Por que você não se protegeu? Por que eu?
– Porque eu queria um filho. Eu nunca escondi isso. E por isso não fui com você abortar. Eu não queria abortar
– Super emocionalmente responsável mesmo. O corajoso que me ofereceu a verdade sobre não me amar mais em uma bandeja não foi me acompanhar no aborto porque, afinal, queria o filho. O filho no corpo alheio, que é um corpo que é um pouco dele também, um corpo sobre o qual todo macho se sente no direito de legislar. Porque a maternidade é, claro, o destino de qualquer mulher normal. É uma jornada de entrega e de sacrifício que é natural de toda a mulher. A mulher que não quer filho, ou que ousa dizer que não sabe se ter tido filhos foi a escolha certa, é apedrejada até a morte. Como ousa? Como ousa dizer o que sente? E vem você se vangloriar por dizer o que sente, por colocar as dúvidas para fora? Ah, vai a merda. Quer um filho? Então engravida você. Submete seu corpo a nove meses de um ser humano crescendo nele, deixa um ser humano completo, com cabeça, ombro e pernas passar pelo seu pênis para sair do outro lado nesse milagre que é dar à luz. E eu nem acho que estranho é ter quem queira passar por isso. Tá tudo certo. O estranho é a gente não poder debater livremente sobre uma coisa tão séria, tão profunda, tão importante porque, afinal, engravidar é um milagre divino e toda mulher deveria querer passar por isso com gratidão e devoção
– Ficou ilógica essa discussão agora. Melhor parar
– Ilógico é eu ter que, dois anos depois de abortar, ainda me explicar e, de quebra, cuidar de suas feridas ainda abertas por não ter tido um filho no meu corpo. Vai fazer um filho na barriga de quem bem entender. Na minha que não vai ser. Eu não quero, não vou ter e tô, finalmente, muito em paz com isso. Vou tomar um banho agora. Faz a enorme gentileza de tirar a mesa do café pra eu poder trabalhar quando sair. E obrigada pelo café. Acho
Marina entra no quarto e bate a porta com força. Ela não vê quando Otávio abaixa a cabeça e deixa as lágrimas cairem. E ele não vê quando ela senta na cama, leva aos mãos ao rosto e chora o mais profundo choro da sua vida.
Esta história continua. Acompanhe os próximos capítulos na Tpm.
Créditos
Imagem principal: Manhã Ortiz