Convidamos as deputadas Tabata Amaral e Áurea Carolina e a senadora Simone Tebet a contar suas rotinas no ainda tão masculino Congresso Nacional
Mulheres são maioria no Brasil: 51,6% da população, segundo dados do IBGE. Começar direto no óbvio é muitas vezes necessário, ainda mais se entendermos que o assunto aqui é política e, neste universo, essa estatística parece realmente ficção.
Em Brasília, neste novo ciclo legislativo que se iniciou em janeiro, a Câmara dos Deputados teve um pequeno aumento no número de mulheres em relação ao período anterior: agora, são 77 (antes eram 51), 15% dos 513 deputados federais. No Senado, a proporção é praticamente a mesma: 12 mulheres para um total de 81 cadeiras, ou 14,8% da bancada.
Com os números lado a lado, fica mais que evidente a diferença entre a presença das mulheres na sociedade e o que existe em termos de representatividade no coração da vida política brasileira.
Em um momento em que discussões sobre os inúmeros temas ligados às causas feministas têm alimentado debates acalorados, é de se imaginar que a rotina de ser mulher no ainda extremamente masculino Congresso Nacional é por si um ato político.
Por isso, convidamos duas deputadas federais – Áurea Carolina, do PSOL, e Tabata Amaral, do PDT – e uma senadora – Simone Tebet, do MDB –, todas em primeiro mandato em Brasília, a contar à Tpm seu dia a dia, seja nos debates travados no legislativo brasileiro, seja nas relações pessoais estabelecidas na capital.
Por Tabata Amaral,
25 anos, deputada federal
25 de fevereiro, segunda-feira
As segundas são corridas porque é o dia que saio de São Paulo e vou para Brasília: acordei às 6 horas, molhei a planta, lavei a louça, tirei o lixo e fiz a mala. Tive uma reunião com um amigo que faz um trabalho muito bacana de educação em Sergipe. Em seguida, passei por consulta médica e fui correndo para o aeroporto.
No voo, consegui examinar a proposta do governo para a previdência e avaliar as análises que recebi sobre o tema, para começar a fechar o meu posicionamento. Do aeroporto, direto para o gabinete e, enquanto almoçava salada de frango, fiz a reunião com o meu time. À tarde, fui para o plenário. Declarei o voto da bancada do PDT, que é sempre uma oportunidade muito bacana, mas é também um pouco de pressão. Quando estava tudo se encaminhando, uma outra deputada pediu votação nominal por uma questão que, enfim… E aí, começam as brigas da polarização, que aborrecem, mas depois tudo volta à normalidade. Foram votados como urgência projetos importantes para o direito das mulheres, então foi um dia especialmente gratificante.
Fiz as últimas reuniões com a equipe no gabinete e, na hora de sair do Congresso, vem a notícia do e-mail assinado pelo ministro Ricardo Vélez, da Educação, enviado às escolas públicas. Decidi gravar, na hora, um vídeo de repúdio. Não dava para esperar nem contemporizar. Cheguei no apartamento e tinha atividades de casa para fazer – tirar a roupa do varal, dobrar e desfazer a mala.
Às 22 horas, começou uma reunião do Acredito, movimento do qual faço parte, que durou até meia-noite e meia. Escrevi os agradecimentos do dia, que eu sempre escrevo, e fui dormir.
26 de fevereiro, terça-feira
Acordei bem cedinho e, no caminho para a Câmara, recebi uma notícia muito triste: um dos meus quatro cachorrinhos, a Potoquinha, tinha morrido. Chorei, especialmente, por não estar lá para me despedir. O gabinete me esperava e não poderia deixar de atender as pessoas. Então, me dei um momento e fui para uma sessão de fotos. O fotógrafo era bem-humorado e isso me ajudou.
Tomei um café rapidinho, não tinha comido, e fui para reunião com a presidência da Capes [Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior]. Foi muito bom. Meu foco é a educação básica, então, pude identificar melhor as visões, os projetos encaminhados, entender como estão impactando na educação básica.
Saí correndo para a audiência no Senado com o Vélez. Eu não tinha direito a me pronunciar, era uma reunião para os senadores, mas achei importante estar lá. Está difícil processar as afirmações do ministro, como o convite às escolas para gravar os alunos lendo o slogan da campanha eleitoral de Bolsonaro, depois de cantar o Hino Nacional [o ministro voltou atrás e reconheceu a ação como errada]. Enviei perguntas para amigos senadores fazerem por mim. Infelizmente, ele não as respondeu. Me preocupou a visão muito ideológica e pouco prática.
A audiência foi longa e fui almoçar bem tarde. Enquanto comia a salada de frango de sempre, me reuni com a equipe. Depois, terminei um artigo, respondi e-mails, li uma série de projetos de lei que estou estudando e rascunhando, assinei alguns requerimentos e fui para o plenário da Câmara. Pude participar de uma votação muito importante, da criação do prêmio Nise da Silveira de Boas Práticas e Inclusão em Saúde Mental – isso fala muito do que vivi com meu pai, que enfrentou doenças psicológicas e a dependência química. Me deu esperança de que a gente comece a falar de uma saúde mais inclusiva e humana, diferente da que temos hoje.
Saí do plenário e fui para inauguração da Secretaria da Mulher. Encontrei várias mulheres que estão sendo realmente muito companheiras e amigas. De lá, fui para o gabinete da deputada Aline Gurgel, que me apresentou o projeto que desenvolveram no Amapá, de namoro sem violência. Fiquei encantada. Já tive várias ideias e saí com uma série de tarefas para implementar em São Paulo.
Voltei ao meu gabinete e fiz a live semanal destinada a minhas redes sociais. Foi bem cansativo. Respirei fundo e rumei para a happy hour de comemoração de aniversário da minha chefe de gabinete.
27 de fevereiro, quarta-feira
Acordei bem cedinho, porque às 8h30 tinha o lançamento da Frente Parlamentar Ambientalista. Quando cheguei, me lembrei de algo que sempre me dizem: os eventos em Brasília atrasam sempre entre 30 minutos e uma hora.
O evento só começou às 9h20. Foi muito emocionante quando a Joênia (primeira mulher indígena eleita deputada federal) subiu à mesa. Meus olhos encheram de lágrima. Também achei muito bonita a fala do cacique Raoni. Foi muito bom ver quão diversa era a plateia, e quão representativo estava sendo aquele evento. Me deu muita alegria.
Saindo de lá, fiz algumas ligações e trabalhei em documentos, como o meu posicionamento sobre a reforma da previdência. Fui registrar presença e o painel, que tinha sido aberto às 6 horas, por causa do Carnaval, estava cheio, mas a Casa estava vazia.
Almocei com um representante de um instituto do meio ambiente e com minha chefe de gabinete. Em seguida, fomos conhecer o Lab Hacker, da Câmara, junto com os outros dois parlamentares do Acredito e nossa equipe do Gabinete Compartilhado. Foi muito legal. Tem gente também pensando em renovação, em mudança de práticas, novas ideias.
Voltei ao gabinete para uma reunião com um vereador de Barra Bonita (SP) interessado em ajudar a organizar o Gabinete Itinerante em sua cidade. Voltei aos e— mails e resolvi pendências.
Percebi que estava morrendo de fome e cansada. Fui comer um crepe dos trailers do estacionamento ali da Câmara pouco antes de uma reunião com um especialista em segurança, professor da USP. Finalizei pendências com o meu time e vim para o apartamento. Tira o lixo, lava a louça, faz a mala, toma banho...
28 de fevereiro, quinta-feira
Não teve plenário na quinta, então voltei mais cedo para São Paulo. Pretendia descansar no voo, mas decidi ler a biografia da Gisele Bündchen. Escrevi algumas cartas e arrumei um pouco minhas finanças. Desci em Guarulhos e peguei o maior trânsito.
Cheguei em casa já bem tarde, mas aproveitei a hora do almoço para encontrar com a consultora de moda, que está me ajudando a comprar algumas roupas de que preciso. Estou compondo um guarda-roupa mais formal, considerando minhas novas atividades como deputada.
Depois, fui para o gabinete de São Paulo e fiz uma série de reuniões. Cantamos parabéns para nossa chefe de gabinete e teve um bolinho surpresa. Saí bem tarde, voltei para casa e, depois, fomos para a festa de aniversário dela.
1º de março, sexta-feira
Acordei cedo para arrumar a casa e, às 11 horas, fui para a fisioterapia. Depois, peguei duas esfirras e separei as roupas que tinha que levar para uma sessão de fotos. Eu me reuni com a equipe de trabalho para validar o evento de inauguração do gabinete aberto, de São Paulo, no dia 9 de março, discutir detalhes das ações do Gabinete Itinerante, que percorrerá cidades paulistas. Saí bem animada!
Fui correndo comprar presentes para o meu irmão e para o meu namorado, que fazem aniversário logo mais. Cheguei e terminei as tarefas, todas essas coisas domésticas. Cozinhei cuscuz e comi com leite e ovo frito. Hora de baixar a adrenalina, mas restam alguns e-mails antes de cair na cama.
2 de março, sábado
Fui para um bloquinho em São Paulo com algumas pessoas do meu time.
Por Áurea Carolina,
35 anos, deputada federal
O túnel carpetado de cor mostarda parece uma cápsula congelada do tempo, com ares de uma modernidade cafona, mofada e sufocante, condenado a velar para sempre a pretensão desenvolvimentista que deu origem a Brasília. Percorro suas esteiras monótonas várias vezes ao dia, na correria entre os anexos 2 e 4 da Câmara dos Deputados, para dar conta das demandas que surgem sem descanso e reverberam para além daquele espaço e das horas do relógio. Aprender tantas coisas de uma só vez e me ambientar em um terreno tão complexo e hostil é uma experiência tão intensa que me dá a sensação de que já estou ali há meses.
No anexo 2, frequento principalmente os plenários e a sala de liderança do PSOL. No 4, ocupo a sala 619 com mais cinco parceiras da Gabinetona, um mandato coletivo que construímos desde Minas Gerais. A Gabinetona, parte da movimentação cidadanista Muitas, é um projeto de democracia radical do qual participo ao lado das vereadoras Bella Gonçalves e Cida Falabella, de Belo Horizonte, e da deputada estadual Andréia de Jesus, junto com uma equipe de mais de 80 pessoas que atuam em diversas lutas populares.
Chegar chegando
Nossa chegada em Brasília foi inaugurada com a posse da bancada do PSOL, em um cortejo emocionante liderado pela deputada Luiza Erundina. Logo no primeiro dia, criamos o corredor Marielle Franco, sinalizando cada um dos gabinetes das mulheres da nossa bancada, todos no mesmo andar, com uma placa em homenagem à nossa querida companheira.
A rotina na Câmara dos Deputados, acelerada e muitas vezes violenta, contrasta com a outra política que buscamos efetivar nas Muitas e na Gabinetona. Não há tempo para processar com qualidade todos os posicionamentos políticos, o que prejudica a tomada de decisões coletivas, e a lógica tradicional do poder é carregada de preconceitos e interdições. Um exemplo dessa lógica é que não fui vista como parlamentar em situações corriqueiras. Já fui barrada no elevador privativo para deputados e em seguida constrangida pela ascensorista ao convidar para subir conosco pessoas que aguardavam na fila dos elevadores públicos, simplesmente porque não acho razoável um elevador subir quase vazio quando mais gente precisa usar o serviço.
Tenho sentido no corpo esse desajuste. Dia desses, passei mal por ficar muitas horas sem comer. É impossível almoçar com tranquilidade – isso se consigo parar para almoçar. A equipe da Gabinetona também fica espremida nessa rotina. A sobrecarga afeta todas nós, mas temos umas às outras e nos amparamos com generosidade e cuidado.
A função parlamentar traz outras questões. A energia dentro do plenário é terrivelmente pesada, o ar é mais denso e o barulho, perturbador. Nesse início de legislatura, sobressaem os ataques e a competição entre os colegas, em um jogo machista que naturaliza a política como aniquilação e polarização. Os gestos de cooperação são raros, mas tenho percebido que, na bancada feminina, há um clima mais favorável ao diálogo. Notei a diferença quando uma sessão foi conduzida pela deputada Soraya Santos (PR/RJ) para tratar de proposições relacionadas aos direitos das mulheres e finalmente tivemos um momento mais respeitoso na Casa.
Existe beleza nos encontros que transformam aquele lugar. Um dos mais marcantes aconteceu, de novo, no acesso aos elevadores. Estava com Talíria Petrone, aliada mais que amada na bancada do PSOL, quando se aproximou uma trabalhadora da limpeza. A moça disse que tinha prometido um abraço em Talíria desde o resultado das eleições, porque se sentia muito representada por ela.
Nós três nos abraçamos e aquela mulher negra nos contou com os olhos brilhantes que é formada em pedagogia, que sabe do valor que nós, negras, temos e do quanto ainda somos desprezadas por essa sociedade racista, mas que estamos cada vez mais fortes e preparadas para ocupar todos os espaços que são nossos por direito. Subimos para o corredor Marielle Franco e ela nos iluminou com seu nome: Nzinga, o mesmo da brava rainha africana que enfrentou o poderio colonial no século 17. Minha esperança se refez. Não tem túnel parado no tempo que abafe a revolução que estamos movendo no nosso país.
Por Simone Tebet,
49 anos, senadora
Hoje é segunda-feira, dia 18 de fevereiro, e sei que posso adiantar as páginas do meu diário da semana inteira. Se, por isso, me perguntarem se minha vida política é feita de rotinas, respondo que é feita de dinâmica. É como a leitura de um livro: a obra e o ato de ler podem parecer sempre os mesmos, as páginas, não. A agenda de hoje está repleta de contatos, entrevistas e reuniões, como em todas as segundas e sextas, dias em que permaneço em Campo Grande (MS) – “meu aeroporto”, de onde “decolo” e onde “aterrisso” e me “abasteço” das energias de que necessito para minha viagem política e existencial.
Às terças, amanheço em Brasília, cidade de pouco batom e de muito terno e gravata. Política é uma palavra feminina pronunciada com timbre e sotaque masculinos. Essa é uma das minhas principais lutas: somos mais da metade da população e do eleitorado, mas não ocupamos os espaços que nos são devidos. Essa não deve ser uma luta apenas feminina. A mulher na política e em todos os segmentos da vida tem de estar na essência do processo civilizatório.
Primeira vez
Na terça, o trabalho começa em Brasília: reuniões, entrevistas, mais reuniões, mais entrevistas. Como presidente da Comissão de Constituição e Justiça (CCJ), o coração do Senado, sei que é preciso destravar a pauta e me preparo para a reunião. Por ser a primeira mulher a comandá-la, a responsabilidade é grande. Pesa sobre mim a vontade de acertar.
A CCJ é a prioridade da quarta. Lá, aprovamos projetos em caráter terminativo, que seguem para a Câmara dos Deputados, ou não terminativos, que precisam ser encaminhados a outras comissões temáticas ou ao plenário. À tarde, as atenções se voltam justamente para as votações em plenário.
Às quintas, especial atenção às audiências com quem me procura – unicamente para discutir temas de interesse coletivo –, aos contatos internos com a minha equipe de trabalho (processo legislativo, imprensa, administrativo, chefia de gabinete) e à leitura de textos legislativos precursores da próxima semana. À noite, volto para casa.
Às sextas, em Campo Grande, atendo lideranças comunitárias, representantes da sociedade civil e políticos do meu Mato Grosso do Sul. Aos sábados, viajo para o interior, onde “ouço as ruas”. Entrar em contato com os moradores das pequenas cidades me ajuda a trazer para Brasília as reais demandas da população e a me conectar com o meu lugar.
Essa é a minha vida, de horas marcadas. Mas a política não marca horas, exige em tempo integral. Impossível um diário clássico. Soaria rotineiro o que é, na verdade, bastante dinâmico.
Aos domingos, embora não deixe de lado compromissos tipicamente políticos, tento compensar o que os “whats” da semana não conseguem preencher: família, livros, cinema, pipoca, shopping, amigos...
Mas se, ainda assim, falarem que meu diário é preenchido com atividades rotineiras, confesso que tenho três preferências que não ouso dispensar: azeite, chocolate e Fernando Pessoa.
Créditos
Imagem principal: Manuela Eichner
ILUSTRAÇÃO: MANUELA EICHNER / FOTOS REPRODUÇÃO INSTAGRAM E DIVULGAÇÃO