Arqueologia culinária

Gabi Sampaio volta ao passado com o livro de receitas que herdou de sua tia avó

 

Minha Tia Zequia era a irmã mais velha da minha avó, filhas de sírios. Quando eu era criança lembro de ficar fascinada com seus cabelos brancos e sobrancelhas pretas. Achava superexótico. Assim como cordeiro, que eu provei na casa dela pela primeira vez num ano novo dos anos 80. Tinha um pé de jabuticaba no quintal e um forno elétrico que eu achava maravilhoso. E o kibe frito que ela fazia é até hoje o melhor e mais generoso que eu já comi na vida.

Tia Zequia era uma cozinheira prendadíssima. Nos muitos relatos sobre seu casamento, minha avó – que jura ter feito cabelo e maquiagem sozinha – pelo menos contou com a ajuda da irmã no cardápio. Parece que ela fez os docinhos mais delicados e caprichosos. Esse dom, aliás, virou meio que sua profissão. Diz a lenda que ela fez a alegria de muitas festas. Mas sem ganhar um tostão pelo trabalho. Já viu uma “turca” assim? Nem eu!

Ela morreu há quase 15 anos. Na época eu não era exatamente íntima do fogão. A ideia ainda estava brotando em mim e eu cozinhava só para passar minha tristeza. Talvez se soubesse, ela teria me ensinado algumas coisas. Não sei se teria sido fácil... Ela tinha a personalidade forte. Como eu. E como a minha avó, com quem quase toda tentativa de cozinhar a quatro mãos até hoje acaba em crise.

De algum jeito, a vontade de aprender com a minha tia-avó aconteceu mesmo com ela já numa melhor. E não foi por psicografia ou com a ajuda de médiuns! Pois os caderninhos de receitas da Tia Zequia, que foram herdados por uma prima mais velha, vieram parar na minha mão! A prima em questão desistiu de executar as receitas e resolveu que eu faria melhor uso deles. 

E... puxa! Que viagem desvendar os caderninhos! Primeiro porque eles não são um hábito que eu vejo hoje em dia. Você tem um caderno de receitas? Eu não. Segundo porque perdi a habilidade de escrever à mão. Eu só digito. Terceiro, porque é mais fácil dar ctrl+C e ctrl+V ou favoritar páginas. Certo? Daí eu pergunto... O que vamos deixar para nossos descendentes? Ou os alienígenas que aqui pousarem depois do fim do mundo no ano que vem?

Algumas páginas caindo, outras manchadas pelo tempo e por comida espirada. Muitos recortes de jornal (alguns até em árabe). O mais antigo que consegui achar era de 1955! A grafia também é algo à parte. Vai uma chícara de assucar? Ah, esqueça de comidas leves. Algumas receitas pedem 24 ovos. Outras, mais de dois quilos de açúcar.

Reproduzi-las não é tarefa fácil. E nem sou tão habilidosa com confeitaria, o forte da minha tia. Mas o bacana é ler tudo, absorver e tentar fazer o que lhe dá vontade e com os seus instintos. Estes, aliás, precisam ser afiados. Muitas receitas não tem as quantidades dos ingredientes. Outras nem ensinam modo de fazer ou explicam tempo e temperatura do forno. Dá pra ouvir minha Tia Zequia falando do outro lado: “Se vira, bonita!”. 

De todo modo, recomendo muito que você faça o mesmo. Peça os caderninhos de avós, tias, madrinhas e mães.  É uma volta ao tempo. Às vezes, a um mundo sem leite condensado. Outras, ao mundo das gelatinas. Talvez vocês possam cozinhar juntas. E trocar experiências.

Dos caderninhos da minha Tia Zequia, divido uma receita com vocês. O “Medalhão de Frango” é, na verdade, uma braciola na Coca-Cola! Isso mesmo, eu fiquei intrigadíssima com o papel do refrigerante no prato, que já tinha visto numa receita de porco da Nigella, e resolvi testá-lo. Fiz algumas alterações e ajustes para a vida moderna. E troquei alguns ingredientes básicos por outros mais “mitidos”, como ela poderia ter dito.

Minha tia aconselha servi-los com batatinhas fritas e arroz. Mas eu, como sou moça que não gosta de duplicar os carboidratos assim descaradamente, fui só de batatinhas mesmo.  Fique à vontade. O resultado é BEM saboroso. Fica algo docinho, mas não com gosto de Coca-Cola. E isso bate muito bem com o bacon no recheio.

Medalhão de Frango da Tia Zequia

Rendimento: 6 porções
Tempo de preparo: 1h30

Ingredientes:

½ kg de peito de frango em filés
300 g de bacon em fatias
50 g cenoura baby
1 limão siciliano (vale o Tahiti também)
2 dentes de alho
½ lata de Coca-Cola 
1 cebola grande
2 colheres de sopa de manteiga
150 g cogumelos frescos do tipo Paris
1 caixinha de creme de leite
¼ de xícara de água quente
½ caldo de galinha em tablete
sal a gosto
cheiro verde
pimenta-do-reino preta moída a gosto

Modo de preparo: 

1. Se os filés não estiverem bem chatinhos, comece por achatá-los com um batedor de carne. Só os proteja com papel filme antes de começar.

2. Tempere os filés com alho socado, sal, o suco do limão e pimenta-do-reino. Deixe na geladeira por, pelo menos, uma hora.

3. Sobre cada filé, colocar fatias de bacon e a cenourinha cortada ao meio. Enrole e prenda com palitos.

4. Coloque os filés enrolados sobre um pirex e derrame a Coca-Cola por cima. Leve ao forno alto até que o liquido evapore. Nesse meio tempo, vire os filés para que todos os lados fiquem de molho no refrigerante.

5. Enquanto isso, pique uma cebola e fatie os cogumelos.

6. Doure a cebola na manteiga e quando estiver transparente, junte os cogumelos e salteie.

7. Dissolva o caldo de galinha na água quente e junte aos cogumelos e cebola.  Misture bem Acrescente o creme de leite em fogo baixo. Acrescente o cheiro verde. 

8. Ajuste sal e pimenta e reserve.

9. Retire os palitos do frango e corte as braciolas em fatias largas, três pedaços, mais ou menos.

10. Se sobrou alguma Coca-Cola no pirex, retire. Volte o frango cortado ao recipiente, cubra com o molho de cebolas e cogumelos e coloque no forno médio por mais 10 minutos.

Você ainda mantém o hábito do livro de receitas? Se sim, conte aqui pra gente nos comentários!

Gabriela Sampaio Fergusson, 34 anos, é jornalista especializada em Gastronomia e Tecnologia e mantém o tumblr Céu da Boca http://ceudaboca.tumblr.com
fechar