Tina Ramos levou a minissaia para a cena punk, encarou brigas de rua e lutou pela ideologia do movimento
A janela da casa na Freguesia do Ó, zona oeste de São Paulo, é a única pista de que ali, naquela rua calma, mora o punk brasileiro, ou boa parte do que o movimento representou. Adesivos de bandas e selos de punk rock colados no vidro fazem com que a reportagem da Tpm pense: “Deve ser aqui”. Quem atende a porta é Tina Ramos, 50 anos, conhecida como Tina Punk (o apelido “Tina” ela ganhou na adolescência, quando tinha o cabelo comprido como o da personagem de Mauricio de Sousa; o nome dela é Rosineide), acompanhada de Ariel Liana, seu marido há mais de 30 anos e vocalista do Restos de Nada, banda icônica do movimento. Tina é uma mulher de cabelos curtos, unhas pintadas de vermelho, mãe de dois homens – Eric, 28 anos, e Lery, 33 – e se prepara para ser avó.
Na casa onde moram dois “punks velhos”, como se autodenominam, estão guardados fanzines, discos, panfletos de show, memorabilia da época em que o movimento que veio da Europa musicando a liberdade estava começando no Brasil. Recentemente, o museu madrilenho Reina Sofía, que fez uma exposição sobre os anos 80 na América Latina, recorreu a Tina e Ariel para conseguir material sobre o punk em São Paulo.
Mas quem olha o casal pacato de punks maduros não imagina, por mais que a sala seja cheia de quadros ilustrados com caveiras, que Tina era a garota mais temida da capital paulista nos anos 80.
Um por todos
“Não tinha como ser mulherzinha: uma punk tem que ser forte, não pode ter frescura. Quando iam bater nos seus amigos você ia sair correndo e chorar? Não, você ia defender eles”, diz ela lembrando de uma época na qual o movimento usava a violência para protestar contra a ordem das coisas e contra todos os que pertenciam à caretice do mundo e das instituições. Tina, que foi mãe aos 16 anos (do primeiro relacionamento, do qual ficou viúva) casou com Ariel aos 20 e depois teve um filho dele, garante que nunca foi de bater. Mas Ariel conta que as meninas que queriam “andar com os punks” precisavam pedir autorização para ela. “Eu sempre deixava”, diz Tina, que já era punk quando conheceu Ariel, em 82. “A gente bateu o olho e ficou. Aí fomos em um show no Rio e passamos uma semana lá. Depois, fomos viver juntos.” Isso na casa da mãe de Tina. “Ela defendia o punk rock”, conta a filha, que foi criada longe do pai.
Para entender como as brigas estão presentes na história de vida do casal é preciso voltar no tempo. E lembrar que nos anos 80 o Brasil ainda vivia em uma ditadura militar e o punk já era visto como um movimento cultural que veio da música, era representado por gente como Iggy Pop e Ramones e se colocava contra o sistema e a favor da reflexão do que representava, afinal, a experiência humana. Mas, mais do que isso, tratava- se de um movimento que estimulava cada um a ser o que era e a não se curvar à ordem. Como qualquer ideologia em busca de espaço e personalidade, no começo as brigas físicas eram constantes: os punks se dividiam em gangues e saíam no braço. “Hoje as pessoas estão muito apáticas”, diz Tina. “A gente lutou por liberdade para que todo mundo ficasse em frente ao computador?”
Ela conta que as primeiras meninas punks participavam das brigas de igual para igual. “Você não ficava de fora só porque era mulher”, lembra. Passar noites na cadeia era corriqueiro. Eles eram bandidos? Não. Eram punks. E ser punk na época era perigoso. “Ser mulher e punk era muito difícil. Você vivia em um país sob ditadura, não podia se agrupar em dois ou três que já tomava geral. E por andar com um visual diferente, de minissaia, corrente, cinta-liga, era tirada de puta o tempo inteiro.” Tina não via motivo para se masculinizar. “Acho que a mulher é [antes de tudo] mulher. Não tem que ser machão só porque é punk. Dá pra ter um visual feminino. Mas na hora de ter atitude tem que ter atitude. Não importa se está de minissaia, de batom. O respeito vinha daí.”
“A gente lutou por liberdade para que todo mundo ficasse em frente ao computador?”
Tina Punk era uma das poucas meninas do movimento e, com os marmanjos, encarava também as gangues. “Eu era da gangue da Vila Carolina”, diz Ariel. “E a grande briga sempre foi entre os punks do ABC e os punks do subúrbio. Era briga por espaço. E esse espaço era o centro da cidade.” Tina, na época, era respeitada por todas as gangues. Mas as coisas pioraram na metade dos anos 80 com a chegada dos carecas, grupo que propagava ideias neonazistas e o white power, trazendo para a cena os canivetes, os revólveres e a intolerância. “Eles surgiram como uma gangue para acabar com os punks e aos poucos foram ficando ideologicamente de direita, com aquelas ideias horríveis de bater em gay e em nordestino”, diz Tina.
“Mão na cabeça!”
Nessa época, era comum para o casal mudar de endereço para fugir do assédio dos carecas. “O Ariel era um dos líderes do movimento, então era como se a cabeça dele valesse muito. Eles descobriam nosso endereço e começavam a rondar. Quando ficava insuportável, a gente mudava.” Pergunto se ela tinha medo e a resposta é automática: “Nunca tive medo de nada”. Em seguida, conta de uma briga em que se meteu quando estava grávida de oito meses e, num bar no bairro do Bexiga, enfrentou os carecas.
Foi nessa rotina de mudanças que seus filhos cresceram. Como a casa de Tina e Ariel era uma espécie de central punk em São Paulo, os meninos apenas se misturavam à bagunça. “Até hoje eles dizem que os punks eram as melhores babás que uma criança poderia ter”, diverte-se Tina.
Mas lembra dessa época como uma fase difícil. “Nós, meninas, muitas vezes carregávamos as armas porque era mais fácil um cara levar dura.” Mas jura que nunca precisou atirar: “A minha maior arma era a língua”. Tina lembra do dia que em estava com João Gordo no largo São Bento, no centro, e a polícia chegou: “Mão na cabeça!”. Tina respondeu: “Aqui não tem bandido, somos punks. Por que vou pôr a mão na cabeça?”. Os policiais não gostaram, arrancaram o cinto que Gordo usava e ele ficou parado segurando as calças. “Vão levar o cinto? Então quem está roubando são vocês. Me coloca no camburão que vou dar parte de vocês”, disse ela, para desespero de Gordo. Como não parava de falar, os policiais deixaram os dois para lá. “A Tina era a voz ativa. Não era a mais briguenta, mas ela batia boca mesmo”, conta João.
Nos anos 80, depois de amadurecer, o movimento se percebeu como uma ideologia de combate ao sistema que pregava a liberdade como única forma de autoconhecimento. Hoje, para Tina, muitos se venderam para o sistema e traíram o movimento. “O que mais tem é gente que arruma uma mulher careta e o fato de ter sido punk vira uma loucura da juventude”, ri Ariel.
Mas os dois, às vésperas de se tornar avós, ainda são punks. Ariel continua tocando e Tina produz shows e eventos, sempre ligados ao punk. Quando reclamam por não conseguir espaço para shows, falam: “Os políticos não se interessam porque punk não vota”, diz. Mas eles não parecem preocupados com os políticos, apenas em seguir lutando, desta vez sem armas. Tina e Ariel ainda são contra o sistema. E ainda querem mudar o mundo. Punk’s not dead, diz a máxima. O casal é a prova.